DEMOCRACIA, DEMAGOGIA E BIOGRAFIA
continuação
Portanto, há um valor extremo na Constituição Brasileira que é fundamental valorizar. Vale fechar esta busca em reconhecer a necessidade e o mérito do jogo político-legal conquistado por todo o país com uma observação simples. Proclamam aos quatro ventos que, de pois de mudar a Lei, todos os que se sentirem lesados, atingidos por mentiras e difamações, devem acionar a justiça (a lentíssima justiça brasileira, que levou tanto tempo para chegar à igualdade de todos), para cessar o ataque e estipular ressarcimentos. Mas… e quando a invasão da vida privada apenas revelar simplesmente a vida privada da pessoa, que não comete crimes previstos em lei, mas vive de acordo com valores liberais que podem ser avançados, discutíveis ou escandalosos para algumas formas de ver o mundo, para as Cajazeiras vestais de plantão? Por exemplo, os homossexuais? O consumo desbragado de drogas lícitas? A promiscuidade amorosa? Então o que se pretende é permitir ao biógrafo o direito de divulgar o estilo de vida privado, à revelia do biografado, revelar algo que o biografado não vê sentido em trazer – e nem deseja – para o público? Quantos artistas brasileiros gays levaram a vida posando como galãs irresistíveis para suas fãs? O biógrafo tem o direito de desvelar o segredo do galã, quebrar a imagem pública…? E o mesmo poderá ser feito em relação a todos os famosos: juízes, jogadores, jornalistas, intelectuais, políticos, capitalistas, modelos e manequins…?
Argumenta-se que o artista escolheu ter uma carreira pública e, por isto, não teria direito à defesa de sua privacidade, não pode ter privacidade. Por escolha própria, segundo este pensamento, o artista tornou-se refém da comunidade, exposto no tronco da opinião pública. Então deixou também de ter mãe, filhos, amigos? Eles também perdem a intimidade? Cria-se assim um estranho sacerdócio – que, aliás, deve ser estendido a todos os famosos, inclusive aos biógrafos ruidosos de sucesso – uma espécie de réplica-vodu mal alinhavada do velho sacerdócio católico, em que o padre só deveria ter direito à vida para Deus, conceito que, diga-se, está no fim de seus dias.
Vale citar o esplendoroso livro de Mario Vargas Llosa – O sonho do celta, prêmio Nobel de Literatura. É a biografia romanceada de Roger Casement (1864-1916), herói nacionalista irlandês, diplomata britânico de imensa coragem, decisivo para a conquista de dignidade para os povos da África, em especial para o Congo Belga, e da América do Sul, mais exatamente a luta contra a escravidão indígena e a exploração predatória da borracha na Amazônia Peruana.
Depois de servir na África e promover uma bela revolução humana, emocionante, Casement esteve rapidamente no Pará e no Rio, mas não se adaptou à atmosfera daqui. O mesmo Pará de assassinos de aluguel permanece em cartaz hoje, o mesmo Rio cortesão dissimulado anda nas rodas da cidade. Ele foi continuar sua grande obra humanista na Amazônia. Ao final, diplomata consagrado, em lugar de se aposentar, Casement se tornou um bravo lutador pela independência da Irlanda. Uma causa impossível. Em desespero, tentou uma equivocada aproximação com os alemães durante a primeira guerra em busca de ajuda para a causa. Foi fatal: apesar de Sir, tornou-se inimigo ao quadrado da Inglaterra, pela Irlanda e pela Alemanha. Preso, foi vítima de uma campanha pública de difamação, com o uso político de seus pretensos diários, escritos íntimos sobre a sua vida privada, os Diários Negros, relatos detalhados de seus encontros homossexuais reais e imaginários, publicados na imprensa para a execração da massa. Em resumo, um ato biográfico de linchamento moral, fundamento hábil para ser condenado à morte, apesar de todos os feitos e medalhas.
A pergunta, então, é esta: além do retrocesso no reconhecimento da identidade plena do cidadão brasileiro, uma dura conquista histórica, o que se pretende com a derrubada do direito à privacidade? O que se pretende com as afirmações dogmáticas absurdas de que proteger a privacidade é um ato de censura ao direito de informação e um atentado contra o direito de livre expressão? Será que ninguém se questiona profundamente a respeito destas inversões, pois, a rigor, a privacidade constrói a personalidade e a personalidade garante o direito de informação e de expressão?
Apenas um jornalista, de tudo o que pude ler nos jornais, ousou sugerir a hipótese de que há algo muito estranho nestes clamores das letras públicas. As observações lúcidas e ponderadas foram feitas pelo excelente Pedro Dória, colunista de O Globo, quando citou o caso recente da jovem cuja intimidade foi exposta na internet. As marcas da exposição pública indevida são violências difíceis de curar – não dá para saber se elas cicatrizam e não dá para esconder o que significam como aniquilação da pessoa, autoritarismo, poder arbitrário, liquidação do direito cidadão. Não vi nenhum outro jornalista, salvo erro meu, que se questionasse sobre este ponto fulcral: a comunidade tem direito pleno sobre a intimidade, a privacidade, como na Idade Média, como nas mais tacanhas seitas religiosas?
Pedro Dória escreveu também um livro fantástico para quem ama o Rio de Janeiro – 1565 Enquanto o Brasil Nascia. O texto, redigido em um tom jornalístico muito saudável, revela a nobreza dos serviços que os jornalistas podem prestar fora das páginas diárias, a favor de um conhecimento mais denso, para nós, da terra em que nascemos. Portanto, pode existir bom jornalismo, boa pesquisa, boa biografia – sem que se atinja o direito de cidadania, tão difícil de consolidar por aqui, uma história de agruras consideráveis, coisa que o livro de Pedro Doria ajuda, muito, a entender.
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