Teatro, o senhor do mundo
Só existe uma forma absoluta de liberdade: o teatro. A tese foi uma lei de vida para a atriz Myrian Muniz (1931-2004). E a sua lei, sublime, arrebata a plateia durante a apresentação do espetáculo Eu não dava para aquilo, de Cássio Junqueira e Cássio Scapin, cartaz do CCBB/RJ até março. De verdade: imperdível. Corra para ver. As feras primordiais arquitetas da alma estão todas em assembleia no palco.
A direção de Elias Andreato traduz com maestria a essência do texto, obra de poetas preocupados em revelar uma vida de arte. Os autores buscaram indicar o caleidoscópio existencial que foi a vida de Myrian Muniz, sem enveredar por uma biografia careta, banal. O diretor apostou na escolha: a cena alterna ritmos, movimentos, intenções, expressões, sempre com extrema sutileza, alcança uma contundência comovedora, a partir de um desenho estético fluente. Myrian Muniz, dispersa em fatos e memórias, se transforma em excelente pretexto para uma aula de direção de cena e de direção de ator.
O feito aparece amplificado para a plateia graças à luz de Wagner Freire, renascentista, divina e diabólica, em planos e focos eficazes para fazer do indivíduo o eixo vital da cena. Para acentuar a densidade da construção, em algumas marcações o intérprete sai do foco e joga com a luz, brinca com a trama de claro-escuro tecida sobre a cena.
Mas o mérito não cabe apenas ao iluminador, aqui um artista no rigor da palavra: o cenário e o figurino, de Fabio Namatame, se articulam de forma visceral ao conceito da montagem. O desejo não é a caricatura ou o mimetismo, nem mesmo a representação imitativa mecânica. Num jogo de véus, cortinas transparentes pretas e brancas, hábeis para a construção de diferentes planos de cena, sem resvalar para uma composição simplista de fundo e figura, a cenografia trabalha com as ideias de desvelar e ocultar, mostrar e narrar, atrair e afastar. No centro, um pequeno palco e uma cadeira giratória, a indicação de que o foco é a velha arte da representação, ator e plateia. O figurino atende a esta visão com impacto – uma veste preta, como se fosse uma malha de ensaio, uma manta-véu preta praticável, de múltiplas funções. Vale se comover com as incontáveis formas sugeridas para o véu, graças ao trabalho do ator.
E – por Téspis!∗– que ator a plateia tem o prazer de ver em ação. Cassio Scapin revela com brio o que pode ser um ato de entrega ao teatro, no sentido exato defendido por Myrian Muniz ao longo de sua vida. A partir de citações discretas, elegantes e perspicazes, dos jeitos da atriz – a voz, a postura física, os meneios de mão, os tremores, o pigarro, a tosse, o humor, a ênfase, a inteligência – Casio Scapin aborda algo da biografia da estrela, algo de suas vivências e dos seus sentimentos profundos, algo da sua concepção de vida, do mundo e do teatro. Chega mesmo a brincar com o público de forma direta numa inusitada – e muito bem pensada – aula de teatro. Ser ou não ser é o fundamento de tudo o que devemos fazer. Não dá para levar os dias sem paixão. E a paixão transparece também no uso da música, em que se canta desde a alegoria da pátria até Elis Regina, uma trilha sonora de Jonatan Harold.
O resultado é devastador: percebemos sob o jogo claro-escuro, treva-e-luz, como a vida pode ser uma escolha radiosa, como a tapeçaria bordada multicor do final. Uma escolha veemente, como as muitas que a atriz fez, impactantes como os brados dos ladrões – escolhas aptas para mudar valores, criar caminhos, propor para a existência a melhor das revoluções. A revolução que nos fará para sempre livres, sempre proposta pelo teatro, a revolução de fazer da Humanidade o valor fundamental para tudo. Portanto, cuide de sua liberdade neste mundo traiçoeiro: vá ver.
∗ Não sabe quem foi Téspis? Ora, como diria Mirian Muniz, vá pesquisar. Por Zeus! E para Zeus, siga o mesmo raciocínio!
Fotos: Produção
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