A festa da rua e a festa da cena
Diário do Festival de Teatro de Curitiba – parte II
Não há dúvida: o nosso tempo é privilegiado. Ao menos segundo o ponto de vista daqueles que amam teatro. Pois é bem certo que nunca antes em toda a história houve uma época em que o palco aconteceu sob tamanha variedade de formas. E a agenda do 23º Festival de Teatro de Curitiba comprova a assertiva à exaustão. Nas ruas, em lugares específicos, em salas, galpões, auditórios e em múltiplas formas de palco lá está o teatro, apaixonante e apaixonado, uma beleza de ver.
E isto sem falar nas variações de linguagem e de estilo. Um espetáculo surpreendente, que causou bastante polêmica e vai deixar uma herança importante para a reflexão foi o espetáculo de rua chileno, El Hombre Venido de Ninguna Parte, direção Mario Soto. Terceira montagem da companhia La Gran Reyneta, grupo criado em 2004 pelo criador da companhia francesa Royal de Luxe, a obra é teatro de rua, gratuito, de bastante complexidade formal.
Diante de seus efeitos, a um só tempo singelos e complexos, elaborados, rústicos e funcionais, não dá para calar o espanto. E não dá para esquecer que nós, senhores de escolas de samba e de Parintins, mourejamos em um teatro de rua de extensa pobreza de linguagem: ignoramos nossos saberes espetaculares paralelos. A peça chilena, ao contrário do padrão dominante em nosso teatro de rua, não tem texto, quer dizer, não tem falas.
São ações vigorosas e eloquentes, preocupadas em ironizar cruelmente um ser humano que se espalha pela sociedade sem criar vínculos, como se fosse uma praga devastadora, mesmo que acabe sendo a sua maior vítima. Para dizer tudo o que querem, no grupo, não há economia: recorrem a um tablado móvel que se transforma em diferentes lugares, usam uma mão mecanizada gigante que tenta sem sucesso dar uns toques humanitários no personagem devastador, provocam explosões, chuvas e torrentes de água, tempestade de papel picado, manipulam um ovo gigante que se transforma em vários meios de transporte… Enfim, um extenso rol de procedimentos manuseados à vista da platéia sem que o foco da história se perca.
Ao mesmo tempo, brincadeiras com a linguagem da arte foram apresentadas sob um outro prisma – em 2 x Matei, de Matéi Visniec, autor romeno que começa a se projetar no Brasil, o alvo é o teatro em duas vertentes. São dois textos corrosivos, unidos num espetáculo pelo diretor e cenógrafo Gilberto Gawronski. Em O último Godot, o autor ironiza tanto o desenho do texto famoso de Beckett quanto a situação de crise do teatro em nosso tempo. Godot aparece em cena e, ao lado do autor, é o último espectador, presente apenas para cobrar do parceiro infiel a sua exclusão da cena.
A seguir, com ligeira transformação do cenário, nem tão eficiente para responder a tal desafio, O Rei, o Rato e o Bufão do Rei lança perguntas ácidas a respeito da arte áulica, da relação entre arte e poder, instrumentos certos para a liquidação da pessoa. Em uma cadeia moderna, um rei antigo, despótico, encarcerado junto com seu fiel bufão, aguarda a hora da execução e fala aos ratos, seus derradeiros súditos. Nos dois textos, Guida Vianna e Gilberto Gawronski assinam desempenhos irreverentes e humorados, pontilhados por tiradas criativas notáveis, como o discurso em latim criado pela atriz, merecedor de aplausos em cena aberta.
Outro tanto de verve inventiva sacudiu o palco do Guairão – para comemorar os 450 anos do nascimento de Shakespeare, alguns textos do bardo foram incluídos na grade oficial. E um Otelo chileno bastante transgressivo impressionou a plateia. Sob a direção de Jaime Lorca, também adaptador do texto e ator, ao lado de Teresita Iacobelli, a montagem acentuou a fragilidade do ser humano, refém de seus sentimentos, ao jogar o drama do mouro em cena sob um mecanismo especular, de representação da reprresentação.
O ponto de partida era um casal que via um dramalhão inspirado em Otelo na TV, em parte representado no palco pelo casal, ao lado da representação por bonecos, o que significa três instancias diferentes de representação. O ponto alto, além da força interpretativa do casal, era o domínio da manipulação de bonecos e a destreza na exploração de truques simples mas vigorosos, como a televisão simulada no mero jogo de luz.
A ideia contemporânea de que o teatro é uma convenção e precisa da liberdade de deslizar entre recursos cênicos ou formas de enunciação para registrar a pulsação de nosso tempo também aparece com força em Contrações, de Mike Bartlett, direção inspirada de Grace Passô. O texto é quase uma alegoria a respeito da supressão dos direitos do indivíduo frente ao grande capital e diante das corporações multinacionais. Com excelentes desempenhos de Deborah Falabella e Yara de Novaes, competente cenografia e adequados figurinos de Andre Cortez, o espetáculo acompanha o confronto entre uma RH e uma funcionária, numa grande empresa em que se tornou proibida a relação de afeto entre funcionários.
E desempenhos comoventes também foram o eixo do Ricardo III, de Shakespeare, direção de Marcelo Lazzaratto, obra inicial de uma aventura memorável, o programa de montagens SHAKESPEARE – Projeto 39, dedicado a encenar as 39 peças do bardo nos próximos 10 anos. A julgar pelo primeiro resultado, o empreendimento vai ser um feito histórico de primeira grandeza.
Pois o que impressiona na cena é a grandeza conquistada na interpretação, atos sublimes de poesia. Chico Carvalho desenhou um Ricardo III de intensa dissimulação e vilania, máxima comunicabilidade, materialização requintada do mal. O elenco, por vezes dobrando papéis, é um todo muito bem orquestrado, mas Renata Zhaneta provoca arrepios na espinha com o seu desespero, Mayara Magri e Imara Reis comovem ao materializar, sutis, a fragilidade e o poder profundo das mulheres.
A primeira semana contou ainda, entre tantos cartazes, com duas imagens da Argentina importantes de considerar. De um lado, o estranho Spam, uma linha de espetáculo performático, tecnológico, quase um one man show de Rafael Spregelburd, um conceito verborrágico de encenação na linha explorada no Brasil, com mais carisma, por Michel Melamed. Um programa longo, dispersivo, rapsódico e pós-moderno, adequado a sensibilidades ousadas, talvez preocupadas com a morte do teatro.
E o ato de teatro absoluto, arrebatador, assinado por Daniel Veronese – Sonata de Otoño, de Ingmar Bergman. Em uma cena tornada mágica graças a uma cenografia simples, centrada na mobília tinta de branco, e uma luz capaz de fazer do palco uma névoa de sonho, outonal, os atores presidem um ato transcendental, de revelação de sentimentos a um só tempo abissais e redentores.
Sim, o teatro é uma profunda sabedoria humana. Sim, a cena consegue transformar as pessoas e é impossível sair da representação desta Sonata de Otoño sem ser tocado profundamente. A trama densa, mítica, gira ao redor do retorno da mãe, Charlotte, uma mulher em aparência vitoriosa em sua carreira de pianista (a deslumbrante Cristina Banegas), decidida a passar uma temporada na casa da filha Eva (a visceral María Onetto), a qual não vê há sete anos.
Ao lado de Viktor, o marido dedicado (o sutil Luis Ziembrowski), e de Helena (a detalhista Natacha Cordova), a irmã doente crônica, Eva, a filha que se sentiu sempre rejeitada, revela os seus ressentimentos, passa em revista sentimentos profundos, universais, dores primordiais, em um ritual teatral de rara beleza. A cena de Cristina Banegas no chão, entregue a um desconforto existencial pleno, surpreende e comove, sugere o ídolo deposto por si, submerso em dores impossíveis de dissolver. Em resumo, a história do teatro agradece a dimensão sublime desta criação.
Portanto, diante de múltiplas correntes criativas que cortam os espaços da cidade, Curitiba tem razão de sobra para comemorar mais esta edição de seu festival de teatro. Afinal, não é pouco o que acontece: contar com a chance de apreciar como anda muito da sensibilidade humana hoje. E Curitiba toca, assim, algo do coração delicado do mundo.
Crédito imagens: Daniel Sorrentino, Humberto Araujo e Annelize Tozetto
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