O sentimento do mundo
Amor e humanidade: com certeza você já percebeu a urgência do momento, a necessidade de fortalecer estes dois sentimentos hoje, aqui e agora. E o motivo não é uma crise de pieguice, a catástrofe nacional ou um surto de amor à pele, mas sim a passada em que anda o planeta. Então, corra para ver Love Story, O Musical, de Erich Segal, Stephen Clark e Howard Goodall, em curta temporada no Imperator. Você vai sair do teatro com a alma lavada, fortalecido para persistir no sofrido caminho de cidadão do mundo contemporâneo. Leve um lenço: se você for uma pessoa normal, vai chorar. E muito.
A ação é a mesma do velho filme de 1970, que encantou plateias por toda a parte. A estrutura do texto segue os procedimentos de dramaturgia típicos da comédia sentimental ou lacrimejante. Um jovem estudante de Direito arrogante, herdeiro de uma família influente, se encanta por uma esfuziante garota de família modesta, estudante de música, e os dois se casam para viver o grande amor, contra as pressões da família esnobe. Um golpe drástico encerra o sonho. A tradução ágil, de Artur Xexéo, honra o original.
Mas há um pouco mais do que isto, há um verdadeiro musical, uma forma musical notável. Ela surpreende, pois a qualidade da música consegue adensar os sentimentos da plateia. Onipresente, a música se torna o veículo de condução da trama, a matéria prima do fluxo sentimental, um eloquente suporte cênico, graças ao desenho construído a partir do jogo entre teclado e cordas. A solução musical é eficiente, delicada e linda. E oferece a base para momentos cênicos inesquecíveis, como a cena do casal às voltas com a rotina da cozinha (a preparação divertida de um macarrão acrobático) ou a cena de Nova Iorque, para ficar em dois exemplos de indiscutível beleza teatral.
Há, portanto, ainda mais, logo se vê, há uma constatação obrigatória: a montagem é um acerto artístico importante, imperdível para quem gosta de musical e para a trajetória do gênero por aqui. Tanto a direção geral, de Tadeu Aguiar, como a direção musical, de Liliane Secco, e a coreografia, de Alan Rezende, são partes efetivas de um conjunto, surgem articuladas para a expressão límpida dos temas e da linha da ação.
Para a construção desta obra de arte fluente, plástica, em que a cena é movimento humano permanente, a cenografia de Edward Monteiro colabora com brilhantismo, em estreita parceria com a luz poética de Aurélio de Simoni e os figurinos expressivos de Ney Madeira e Dani Vidal. Você vai se surpreender com as mutações de cena rápidas e singelas, mas engenhosas, viabilizadas por um conjunto de painéis móveis, capazes de abrigar múltiplas sugestões de lugar, indicar interiores diversos, arquiteturas ousadas, arvoredos sob variações delicadas de luz.
Módulos praticáveis ajudam a compor a variedade de espaços com extrema agilidade – até um automóvel cenográfico cruza a cena com sucesso. Uma trama de efeitos se desloca no palco sutilmente, sustenta uma teia permanente de emoções, regida com encanto pelo pianista André Amaral, dançante nas cordas de Anderson Pequeno, Fabio Peixoto, Matheus Pereira, Leandro Vasques, Stoyan Gomide.
Além da beleza da materialidade da cena, amalgamada em texto, música e encenação, a montagem traz também um outro tom emocionante – o elenco de atores negros, coisa rara de se ter neste nosso imenso AfroBrasil. Não, não se trata apenas de um simples tópico do catecismo do politicamente correto ou mesmo do justo reconhecimento de talentos notáveis do nosso meio teatral. A cena plástica sentimental negra apaixona por uma maleabilidade dos corpos e das sensações muito especial – uma forma expressiva nova, incandescente, emergente, que precisa ser muito desenvolvida em nosso teatro, mas que se esboça aqui ainda de maneira discreta. A consequência natural é a voltagem acentuada do turbilhão de emoções.
Kacau Gomes doma o espaço, governa a ação e conquista almas e corações com a beleza de sua voz e a intensidade de seu desempenho. Ela se lança na trama e no jogo cênico sem barreiras, esfuziante, e a entrega lhe permite dimensionar o drama de Jennifer sem apelação ou nota falsa: com uma sinceridade cristalina, dispara o gatilho responsável pela comoção da plateia. Fabio Ventura, um tanto contido, traz um namorado compenetrado e sisudo, se afirma como apoio eficiente para a contracena, traz tons exatos para a revelação do drama sentimental. Os duetos do casal são momentos poéticos de grande beleza e, por vezes, de humor sofisticado.
Sergio Menezes traduz um divertido Senhor Cavilleri, o extrovertido pai de Jenny, e é o grande destaque masculino do elenco coadjuvante, um ator requintado na expressão física, vocal e sentimental. A voz de Ester Freitas dá um colorido transcendental à abertura e ao encerramento da ação, no papel de mãe da mocinha. Em desempenhos corretos, Flávia Santana, Rafaela Fernandes, Susana Santana, Ronnie Marruda, Raí Valadão, Emílio Farias e Caio Giovani completam o elenco.
Todo este edifício se articula num estado de rara felicidade para revelar uma história de amor singela. Mas não se iluda – o que está sob foco, exposto na inefável luz azul ou nos incontáveis semitons desenhados pelo engenho do grande mestre Aurélio de Simoni, não é um meio escapista para aliviar as nossas dores de existir. A rigor, a cena tem um sentido outro, poderoso, a demonstração de como é urgente cultivar os grandes afetos, amor e humanidade, para justificar nossa presença no mundo e mover a vida. Não, não hesite, não deixe de ver, é um dos grandes programas teatrais do ano.
História original: Erich Segal
Texto e letras: Stephen Clark
Música: Howard Goodall
Versão brasileira: Artur Xexéo
Direção: Tadeu Aguiar
Elenco: Kacau Gomes, Fabio Ventura, Sergio Menezes, Ronnie Marruda, Flavia Santana, Ester Freitas, Rafaela Fernandes, Suzana Santana, Raí Valadão, Emílio Farias e Caio Giovani.
Músicos: André Amaral [piano], Anderson Pequeno [violino], Fabio Peixoto [violino], André Dantas [violão], Matheus Pereira [violoncelo], Leandro Vasques [contrabaixo], Stoyan Gomide [viola].
Direção musical: Liliane Secco
Cenografia: Edward Monteiro
Figurinos: Ney Madeira e Dani Vidal nos figurinos
Coreografia: Alan Resende
Iluminação: Aurélio di Simoni
Desenho de som: : Gabriel D’Ângelo
Diretora assistente: Flavia Rinaldi
Fotos: Gustavo Bakr
Coordenação de produção: Norma Thiré
Produção executiva: Eduardo Bakr
Produção: Estamos Aqui Produções Artísticas.
LOVE STORY, o Musical
Imperator Centro Cultural João Nogueira
Capacidade 642 pessoas
Rua Dias da Cruz 170 Méier – RJ – 21 2597 3897
100 minutos Classificação 10 anos
Preço R$ 60
Sexta e sábado 20h; domingo 19h
www.imperator.art.br
www.ingressorapido.com.br
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