Uma rede de aço delicada, de micros tramas tecida, qual uma cortina-redoma de voile cor de rosa, separa a literatura da censura, a arte do interdito. Tentar rompê-la é o risco de um vôo cego, é uma temeridade. Lá, no seu interior, um continente palpitante se descortina, precisamente. Ele reúne desafio e ousadia, dilaceramento e gozo, coragem e medo, pulsão de vida e pulsão de morte. A aventura vale o percurso, pois o trajeto nos traz de volta vivificados, cientes de que as letras são apenas artifícios, artes de um ofício, um jogo da razão sensível que nos protege da irracionalidade de tudo.
Não se assuste, vá ver – esta será a sensação final de quem se deparar com o espetáculo O caderno rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst, uma montagem que é um fino presente para a alma daqueles que se comovem com a poesia e se intrigam com os sentidos que ela, a poesia – a poesia da pena do autor ou dos pés do passista – pode ter em nossas vidas. O trabalho é pulsante, corajoso. E pródigo em majestade, quer dizer, elegante, rico em um sentido teatral próprio do tempo contemporâneo, o desejo de falar ao outro, à alma de quem vive encapsulado nesta altura dos séculos.
Em português claro e objetivo, a peça em cartaz no Teatro Oi Futuro é um exemplar excelente de teatro do tempo presente, teatro do nosso tempo. Portanto, é mais um acerto na programação da casa, que pretende trabalhar com novas propostas, linguagens de ruptura e de transformação. Na verdade, trata-se de parte de um espetáculo duplo – “Solos Femininos”. E o acerto já se inicia nesta indicação de gênero, pois em nossa época é pertinente ligar feminilidade e libertação. Mas este é um detalhe, no final das contas; o que está no centro da cena é uma forma nova de teatro, ainda de gatinhas, que o teatro brasileiro do tempo presente tem pesquisado em diferentes vertentes e que, aqui, nesta montagem, adquire uma densidade importante.
Poderemos chamar este teatro de teatro da transubsliterariedade, ou da transubstanciação da literatura, ou da transformação pulsante, transgressiva, da palavra em cena. Outra denominação possível seria teatro transcendental. Esta seria uma discussão longa, o seu sentido aqui vai apenas esboçado. Não é, frisemos, teatro da narratividade. Não é aquele teatro contemporâneo que se convencionou chamar de pós-dramático. É a corporificação da palavra. O que está em cena é a palavra do sujeito – trata-se de um monólogo – e esta palavra é exposta como um drama interior. No caso, a concepção do espetáculo tomou como eixo o drama interior da autora, Hilda Hilst, diante da literatura, com certeza um dos dilemas que a levou a conceber a figura de uma menina – Lori Lamby – transgressora e inventiva, para falar desta inacreditável ousadia que a literatura é.
Mas a proposta, na literatura, apenas começa. Vale dimensionar o que acontece no palco. A invenção arrebatadora que constrói a cena foi arquitetada em múltiplos detalhes. O universo vertiginoso da arte acontece diante da platéia graças a uma alquimia diabólica da equipe de cena. São meandros de luz, panos, rendas, fitas, dobras, claro-escuros, sfumati, flores esmaecidas, bonecas insinuadas, gestos delicados, insinuações veladas, sugestões explícitas, cândidas declarações chocantes. Do ponto de partida – a menina que escuta, espreita, reina e escreve – ao desfecho, que inviabiliza leituras arbitrárias e fáceis do espetáculo, inclusive a atribuição equívoca de cálculos pornográficos, há um notável domínio do fazer, uma limpidez de proposta absoluta. A direção geral de Pedro Brício, a direção de arte de Rui Cortez e a iluminação de Tomás Ribas se articulam em uma engrenagem impecável, criam uma espacialidade e um ritmo substantivos.
No interior deste fluxo, é preciso destacar a atuação de Isabel Cavalcanti. Ela é a delicada senhoria da cena, uma mágica governante das palavras, alguém capaz de dosar o efeito de choque que a proposta provoca na platéia, capaz de conduzir a aventura ousada sem apelação ou histrionismo. Discretos recursos de caracterização vocal ou corporal apóiam o seu trabalho, na realidade um jogo de materialização do verbo, quer dizer, transubstanciação. Com certeza esta é a parte mais linda da montagem, ainda que toda ela seja muito bem sucedida. Revela uma atriz corajosa, forte, ousada, em pleno domínio de seus meios expressivos, capaz de ousar pesquisar e estudar, ousar propor. Não poderia pedir mais a rede rosa de aço que envolve a carne da literatura: o teatro agradece.
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