Este drama é das mulheres?
Um estudo comovedor da alma feminina – esta pode ser uma definição para o belo espetáculo assinado por Sandra Pêra, Orgulhosa demais, frágil demais, texto de Fernando Duarte, escrito a partir do romance de Alfonso Signorini, cartaz de verão no Centro Cultural dos Correios. Ou não: o espetáculo pode ser um pouco mais do que isto.
Em cena, dois dos maiores mitos da feminilidade do século XX: Marilyn Monroe, a mais absoluta encarnação da carência afetiva, e Maria Callas, uma voz de diamante em forma de mulher. Apesar das diferenças abissais entre os dois mundos, perceptíveis de imediato, a mesma prisão sombria as aproxima, a dificuldade de se afirmar com autonomia em um mundo controlado pelos homens e a impossibilidade de encarar a vida sem afeto.
A dramaturgia, masculina, revela um tom sensível surpreendente. Algumas falas, em especial no início do diálogo, soam artificiais, mas logo se estabelece um fluxo progressivo de revelações capaz de desencadear uma atmosfera de profundo sentimento de compaixão por parte da plateia. A intimidade das divas, em lugar de suscitar o voyeurismo, demonstra a colossal solidão feminina em um mundo de cálculos, de materialismo e de indiferença racional.
O resultado conseguido surge em grande parte da direção de Sandra Pêra, centrada na valorização do desempenho das atrizes. Vale a contracena, digamos, sem dispersões ou efeitos decorativos. E tal se tornou possível em virtude da qualidade das intérpretes. Rita Elmor, experiente operária do teatro, erigiu uma Callas que é requinte sentimental, rapidez de percepção, refinamento cultural, inteligência afetiva e aguda generosidade. Samara Felippo, um nome mais frequente na televisão, não se intimidou diante do desafio – criou uma Marilyn palpitante, infantil, sensual, um perfil de esfuziante erotismo, aliado a uma aguda inteligência prática.
A cena é despojada, desenhada por uma luz eficiente, de Renato Machado. Nem sempre a convenção sugerida, a separação entre camarim e auditório, fica bem resolvida. Os figurinos são poéticos, traduzem com rigor e beleza as duas personalidades antagônicas, o cenário é singelo e funcional. A assinatura é de Desirée Bastos. A situação em cena é simples – no Madison Square Garden, em Nova Iorque, a celebração do aniversário do presidente John Kennedy atraiu grandes nomes do mundo das artes para a festa.
Maria Callas, a maior soprano do mundo, cantou Habanera, de Carmen, uma forma de agradar ao marido, o despótico armador Onassis, que desejava se aproximar de Kennedy. Marilyn, a maior estrela do cinema, sexy symbol inconteste, incapaz de conquistar uma vida afetiva estável, era o caso rumoroso do momento do presidente galã. Callas se ressentia da perda recente do filho bebê, que escondera do mundo por imposição do marido. Marilyn se tornaria a fofoca do momento depois de cantar um sussurrante parabéns em um vestido vamp – e morreria três meses depois em condições obscuras.
O espetáculo explora, graças ao duelo verbal entre as duas deusas, o drama feminino dos tempos recentes, a divisão entre afeto e realização, o conflito diante do papel a desempenhar em um mundo ainda regido pelos homens. A partir da diferença inicial, ilusória, entre os dois perfis – a intelectual e a sensual – o espetáculo desnuda, com humor, ironia e deliciosas sutilezas de raciocínio, o drama único que envolveu muitas mulheres em nosso tempo.
A ação, imaginada a partir de fiapos de realidade, é um pretexto eficiente. Mais do que falar de Callas ou de Marilyn, ela fala de nós, hoje. Ela funciona a favor de uma defesa da humanidade cotidiana, aquela que, em geral, atribuímos às mulheres, afinal um valor a cultivar. Não fala, portanto, apenas de figuras célebres: este drama está na esquina dos dias de todos os que enfrentam a luta da vida. Se as possibilidades deste quadro novo dizem algo ao seu coração, não perca, corra para ver.
Ficha Técnica:
Elenco: Callas – Rita Elmor / Marylin – Samara Felippo
Direção: Sandra Pêra
Cenário / Figurino: Desirée Bastos
Iluminação: Renato Machado
Design Gráfico: Jaqueline Sampin
Administração /Assistente de produção: Antonio Camões
Produção executiva: Luis Fernando Bruno e Valério Lima
Direção de produção: Beta Leporage
Realização: Voleio Produções
Mídias Sociais: Agência Chermont br
SERVIÇO
Até: 02 de fevereiro
Teatro: Centro Cultural Correios
Endereço; Rua Visconde de Itaboraí, 20, Centro, Rio de Janeiro
Tel: (21) 2253-1580
Classificação indicativa: 14 anos
De quinta a domingo – às 19h
Preços: R$ 20 – Inteira / R$ 10 – Meia-entrada
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