Homens banais de todo o mundo, uni-vos, correi, tomai de assalto o teatro. Uma nova era desponta diante dos nossos olhos: um tempo em que os seres humanos, cidadãos comuns, plebeus sem eira nem beira, camelôs do cotidiano, começam a enfrentar – e a pensar – a velha alta política, inimiga das gentes das ruas, inimiga da vida. O novo poder começou a surgir, está no ar, eletriza o planeta, incendeia as praças. Além das passeatas, das justas reivindicações por mudanças, do anseio por uma Humanidade nova, ele permite a criação de obras primas na arte, como este Palácio do Fim, de Judith Thompson. Nele, um texto de impacto, resultado de um novo formato de dramaturgia, alicerça uma encenação fenomenal, obra poética que integrará os compêndios de História de teatro do país.

 

Trata-se, portanto, de uma jóia absoluta, demonstração da mais requintada ourivesaria teatral, do texto aos mínimos gestos, aos menores filigranas de som e de luz. Todo brasileiro que se considera cidadão do mundo, hoje, tem um compromisso áureo consigo próprio: ver esta montagem. E vale frisar um detalhe importante – a explosiva alquimia de razão e emoção impõe ao figurino do espectador um acessório imprescindível, é essencial levar um lenço. Você vai chorar, mas não se assuste – é um choro límpido, de libertação, de entrega ao melhor do mundo, ao melhor teatro de nosso tempo. Comentar o espetáculo é uma tarefa extensa, a razão crítica necessita dimensionar a inteligência aguda exposta em cena, atestado de maturidade técnica e poética do teatro brasileiro.

 

Palácio do Fim se impõe como obra de excelência e a afirmação não pode figurar como simples operação retórica, significa reconhecer um redemoinho inacreditável de qualidades e acertos. De saída, a escolha da peça é um grande trunfo, o texto é uma amostra radical da melhor dramaturgia contemporânea naquilo que a dramaturgia precisa ser, ação e fala acerca de seu próprio tempo. A autora canadense, consagrada escritora e professora universitária, é uma intelectual sintonizada com as voltas do mundo hoje.

 

A fatura do texto foi concebida a partir de três eixos – a informação cotidiana disponível nos jornais, a ótica do homem comum diante das notícias e a hipótese de representação teatral do universo social da mídia em atrito com o jogo da História, a hipótese de um teatro novo. O procedimento técnico explorado foi a transformação de manchetes em monólogos teatrais, um formato de docu-drama peculiar, em que os fatos narrados e representados são pretextos – ou álibis – para a proposição de uma visão poética do mundo pertinente à vida do cidadão. Em pauta, um teatro político inteiramente novo, preocupado em questionar a estrutura sensível das pessoas e distante do engajamento/ação imediatos, ou seja, uma forma nova admirável de teatro revolucionário. O que se deseja é o diálogo sentimental com cada pessoa, a hipótese de perguntar sobre a sua transformação.

 

A direção de José Wilker – um histórico homem-revolução do teatro brasileiro, um dos esteios do Teatro Ipanema (1959-1979) – revela uma percepção aguda do sentido do texto. Em sua abordagem, a obra da dramaturga ganhou contundência ainda maior graças a uma nova combinação dos monólogos originais propostos; em lugar de seguirem em sequencia direta, os relatos foram mesclados com engenho e sensibilidade a um tal ponto que a pergunta básica da peça aflorou de maneira impactante. Quer dizer – ao fazer a cena girar ao redor de informações mais ou menos veiculadas a propósito da guerra do Iraque, sob três ângulos diferentes, em aparência descontínuos, em lugar de trabalhar com discursos contínuos encerrados em si, o diretor leva o espectador a se defrontar de forma decidida com os limites de sua percepção do mundo, a sua percepção racional e sentimental. Não há chance de um refúgio afetivo simples.

 

Automaticamente, surge a incômoda pergunta: o que o ser humano permite que se faça em seu nome e com a sua inteligência? Como se dá o uso criminoso da percepção comum, o uso dos cidadãos para fabricar o poder de poucos, instaurar a morte? O quê afinal cada um permite fazer com sua vida e a vida dos outros? A projeção em cena desta visão poética desconcertante foi obtida com olhos de cirurgião, um cálculo preciso para costurar firme os discursos das personagens e os devaneios da alma do mundo, atribuir-lhes um eixo comum.

 

A direção artística da equipe estruturou-se sob uma arquitetura minuciosa e objetiva. De saída, uma direção de ator rigorosa, fundada na exploração intensa do sentido das palavras, fez com que a fala impregnasse os corpos e desenhasse diferentes pulsações da vida no espaço, sempre em sintonia estreita com o verbo, mas em curiosa gradação. A cenografia de Marcos Flaksman dispôs os intérpretes sobre uma espécie de tablado-palanque-palafita do mundo, fechado no fundo por um simulacro de telão-out-door, decorado por discretos objetos simbólicos de cada personagem: um capacete e um fuzil, um chapéu e uma bengala, uma pirâmide de terra. Criou, assim, a partir da sugestão e do despojamento, um lugar evocativo para que se veja em um relance a emoção, o verbo, as entranhas da vida. Cenógrafo histórico, mestre e senhor da invenção rigorosa, Marcos Flaksman aciona a memória afetiva do espectador histórico de teatro ao evocar com o desenho da cena cenários de outrora, de Flávio Império, as cenografias em platôs que viram o sujeito-moderno pessoa comum nascer no palco nacional sob a direção de Flávio Rangel, em um diálogo de arte precioso.

 

Mas a espessura inquietante da cena de Wilker-Flaksman não teria tanto impacto se não contasse com o desenho de luz notável de Maneco Quinderé. A partir de penumbras, focos, linhas e rajadas de luz, ele acentua climas, situações, ideias e conceitos, em escolhas formuladas com extrema sutileza. Sob o palco, há um efeito-constelação emocionante, luzes subterrâneas capazes de sugerir a hipótese de o palco flutuar, simular a projeção da cena para um não-lugar, um lugar fora da História, um lugar-afeto. As soluções de luz ampliam a força dos figurinos de Beth Filipeck – além de adequados aos perfis dos personagens, eles trabalham em uma paleta de cores realistas e terrosas, um colorido pastel estratégico que aponta a Terra, reforça a indicação para olhar a vida no mundo. A criação musical de Marcelo Alonso Neves, um exercício sofisticado em torno dos rumores, ruídos e sonoridades da vida atual, da guerra e da exaustão, burila a intensidade dos tons da cena, determina uma sinuosa modulação sentimental.

 

Em cena, desenhados a partir de relatos verídicos, em especial a partir de manchetes dos jornais, estão três personagens. Recortes do real, eles representam uma gente que, saibamos ou não, mudou a vida das pessoas em determinado momento da história recente. E mais: eles foram produzidos pela história, a marcha do mundo fez com que fossem alçados do anonimato para a fama. A mesma marcha, contudo, triturou-os, tratou de reduzi-los a pó. Resta perguntar qual o sentido, qual a razão de seu aniquilamento. Na peça original, eles foram retratados em três “contos”, formas narrativas monologais breves: “Minhas Pirâmides”, “Colinas de Horrowdown” e “Instrumentos de Angústia”. A primeira figura a surgir em cena é a oficial americana Lynndie England, grávida do ex-namorado, também militar, presa por ter participado da desumana tortura de presos iraquianos na prisão de Abu Ghraib; além das notícias de jornal, a personagem incorporou a atmosfera de misoginia e ódio que cercou toda a sua projeção na imprensa e no senso-comum, pois ela foi linchada pela opinião pública.

 

Camila Morgado é Lynndie e revela um rigor de representação notável, em um papel de extrema dificuldade. A sua Lynndie impressiona por traduzir, com ousadia, o que se poderia chamar de “paradoxo do exército” elevado à máxima potência – mostra uma pessoa comum, entregue aos valores impostos por seu tempo e por sua sociedade, cooptada para a estranha ideia de defender a pátria e punida exatamente por exteriorizar aquilo que lhe foi doado por sua vida social e institucional. De certa forma, o soldado é um agente cego de um poder que desconhece, é um ser desumanizado com o consentimento da sociedade. Camila Morgado concilia a ingenuidade, o tom efêmero, o tom feminino e o doce ar de mulher com os valores banais de uma classe média oca, a brutalidade estúpida, o preconceito, a incompreensão e a violência gratuita. Os seus gestos são registros eloquentes da dualidade do soldado – o ser mortal matador, cidadão erigido em fera para o bem de todos. Atriz estudiosa e disciplinada, ela vai mais adiante, combina a esta mistura a plerplexidade do nobre selvagem social desautorizado, atônito, destituído da licença para ser brutal que fora a sua razão de ser.

 

O nome seguinte é o de um cientista britânico renomado, Dr. David Kelly, o inspetor de armas britânico que se omitiu a respeito da existência de armas de destruição em massa no Iraque – e o relatório que defendia a existência das armas foi o pretexto para a invasão do país. Ao ser descoberto como a fonte secreta da BBC para desmascarar a mentira do relatório, o cientista se tornou um inimigo público execrado e, segundo a versão oficial, se matou. Trata-se portanto de um perfil bastante polêmico, a respeito do qual ainda não existe uma visão histórica nítida. Mas a personagem funciona com brilho para lançar no ar a grande pergunta em pauta desde Galileu, a respeito do verdadeiro sentido do saber e da ciência e da relação do conhecimento com o bem estar social. Em cena, o cientista está diante de sua morte e expõe as suas razões para o suicídio, o extenso rol de destruição que instaurou com a sua omissão.

 

Antonio Petrin tem um desempenho comovedor, uma performance entre o relato e a representação de extrema sutileza, capaz de indicar o patético, a lucidez, a comoção e a eloquência, uma gama intrincada de sensações diante da vida e do poder, sem gratuidades. Majestoso, carne vibrante de dor moral intensa, a sua escolha de gestos e de expressões é de uma precisão arrebatadora, revela um ator maduro no pleno domínio de sua arte. O seu trabalho promove um deslizamento, flui para um grau acima de estilização e de simbolismo, a partir da crueza de razões trabalhada por Camila Morgado. Traz a luz da crise e da razão, como se fosse um ponto de passagem para um terceiro argumento, formulado a seguir por Vera Holtz.

 

A trindade sublime é encerrada por Nehjas Al Saffarh, ativista iraquiana membro do Partido Comunista, um olhar maduro para o ato de existir, um outro ângulo da tragédia humana corrente no mundo atual. Torturada ao lado dos filhos pela nefasta polícia secreta de Saddam Hussein, ela sobreviveu a horrores absurdos no Palácio do Fim. Esta representação-relato, portanto, estrutura a peça, dá o título e a chave de leitura da obra. A força dos que resistem faz a vida andar para a frente e o desempenho de Vera Holtz parte desta sabedoria. Funciona como amálgama, fio condutor, linha de força capaz de expor o sentido último do que cada ator propõe na montagem. Mais, até: o desempenho de Vera Holtz é magistral, total, impressionante, substantivo – é algo que não se pode traduzir em adjetivos. Quase estática em cena, senhora de uma partitura de gestos rigorosa e densa, Vera Holtz estabelece um fluxo de emoção transcendental, uma forma absoluta de ser. A violência e a omissão adquirem uma cara, a cara serena dos que foram obrigados a sofrê-las e que sabem que é fundamental bani-las do horizonte social. Transmudada em efígie sob um jorro de luz fulgurante, com um olhar intenso, registro de dores indizíveis, a atriz se transforma em uma imagem-ícone em que emoção, razão, percepção da grandeza da vida, piedade e coragem para lutar são um convite para o encontro de almas a favor de algo maior do que tudo e do que todos. No palco.

 

No palco acontece, então, o teatro mais verdadeiro e pleno, puro esplendor humano. A montagem seca, essencial, contundente, nos leva para um continente novo, o antigo casamento grego entre cena e plateia, lá onde o teatro era o verdadeiro instrumento de libertação humana. Aqui a nossa mitologia é a mídia. E a cena sabe disto, trabalha com isto de forma ácida, sem clemência. Então, é ir ver. E torcer para que este seja o primeiro elo de um novo ciclo, um ciclo em que, nós, homens comuns cidadãos banais, tenhamos no teatro o grande aliado para a transformação da vida, para a invenção de uma nova forma muito mais humana de estar no mundo.