Se alguma vez você já sentiu nos lábios e na alma a estonteante sensação de ser livre, por palavras e pensamentos, se você já se surpreendeu em algum instante a contemplar os seres, as coisas e o mundo como se estivesse diante da mais pungente poesia, não hesite, corra, vá ver Quase normal, no Teatro Clara Nunes.

 

Trata-se de um espetáculo histórico, de saída por sua esplendorosa defesa de uma visão humanista absoluta da vida. E ainda por outras razões: a qualidade da montagem brasileira, a ecoar a densidade da proposta original e, logo,  internacional, a beleza e o rigor da direção de Tadeu Aguiar, a maestria do elenco escalado, a força expressiva única de Vanessa Gerbelli e, afinal, a radical inventividade da proposta do espetáculo em sua tessitura melo-dramatúrgica.

 

A história é forte, mas é um pretexto para a realização de duas façanhas surpreendentes – permite abordar a plenitude do humano, defender o amor integral à vida, e  desenhar no palco um legítimo espetáculo musical, um musical total, em que a cena acontece como canção. A trama, um drama familiar pungente, fala de uma família dilacerada pelo desequilíbrio mental da mãe (– e afinal, não só da mãe, pois ninguém enlouquece sozinho…), acionado por uma seqüência de acontecimentos sentimentais  bastante fortes, mas um tanto triviais em nosso tempo. Um romance juvenil se transformou em casamento precoce por força de uma gravidez inesperada, à qual se seguiu a morte do bebê, talvez causada pela inexperiência dos jovens pais (Diana e Dan Goodman). Uma outra filha foi gerada (Natalie), para tentar dissolver o vazio, mas o fantasma do filho perdido (Gabe) se instalou no lar.

 

Para resolver a crise, o casal busca atendimento médico, psicanalítico e psiquiátrico (Dr. Fine, Dr. Madden), e chega ao limite da violência institucional consentida, o tratamento com drogas violentas e eletrochoque, para tentar uma solução. A aceitação da dor, da fratura, das memórias ácidas, da condenação a ser quase normal, é a pequena grande conquista obtida ao final da trama. No universo da expressão das paixões e da linguagem teatral, no entanto, há uma vitória abissal:  a defesa do humanismo mais pleno possível, vital para os tempos em que vivemos, e a demonstração áurea de que o teatro musical é a forma mais perfeita de arte cênica de que dispomos para revelar o perfil de nossa sensibilidade hoje. Em cena, os atores, livres, perfeitas partículas líricas do universo, conjugam um outro verbo ainda não inventado, um verbo que não é mais os verbos contracenar, representar; eles cantam, dançam e interagem imersos em música.

 

De saída, emociona na montagem a sua plenitude, o acabamento conquistado enquanto obra de arte. Isto significa reconhecer que o texto, isto é, o conjunto formado por música, texto e letras, foi traduzido em construção cênica minuciosa, da cenografia à luz, passando pelo figurino e pelos desempenhos de atores, músicos e contraregragem. O palco, na cenografia de Edward Monteiro, se revela uma casa com sótão, em tons acinzentados, preto, branco e amadeirados; a presença de gradeados pintados em telões evoca teias, sugere ao longe o confinamento da prisão. Algumas ilhas com móveis sublinham a condição do lar que flutua à deriva. A palheta sombria e apagada da cena se prolonga nos figurinos adequados, bem concebidos (Ney Madeira, Dani Vidal e Pati Faedo), mas é rompida nas roupas de Diana (Vanessa Gerbelli), tradução perfeita de seu estado de alteração mental. O desenho de luz de Rogério Wiltgen é sempre sublime, em particular ao ressaltar a estrutura da casa, no momento de clímax dramático.

 

Notáveis e comoventes são os desempenhos dos atores, todos hábeis nas contracenas, nas falas, no canto e nas coreografias. Vanessa Gerbelli materializa em espirais sentimentais a delicadeza do ser humano exposto aos abismos da própria mente. Seus gestos, sua movimentação física, a expressão do seu rosto conduzem a percepção do público para as perguntas mais radicais a propósito do sentido da vida. Ela está magistral. Cristiano Gualda impressiona ao defender o parceiro perfeito, complementar, o companheiro de aventura presente e distante, leal e traiçoeiro, personagem que revela os torvelinhos da família e desencadeia novos fluxos de expressão. André Dias traduz as soluções, as arbitrariedades e os impasses da medicina e da sociedade diante dos desvarios da razão, materializa com fina ironia a arrogância institucional diante do indivíduo. Carol Futuro desenha a filha rejeitada, sem cor, em tons requintados de submissão e rebeldia, aponta com eficiência a busca de seu próprio espaço e a quebra da prisão. Olavo Cavalheiro seduz como o filho perfeito, constrói uma efígie de impacto, é um fantasma denso, impositivo. Victor Maia, namorado de Carol, define com nitidez os limites externos da família.

 

A obra é um sucesso internacional, acumulou diversos prêmios, mais do que merecidos – ir ao teatro é também uma oportunidade para constatar as qualidades de uma criação capaz de encantar o mundo. E uma oportunidade excepcional para pensar as razões eficientes para explicar o fato. A versão brasileira, assinada por Tadeu Aguiar, responsável tanto pela tradução como pela direção geral, faz justiça à trajetória vitoriosa. Impressiona a maestria do diretor para sustentar o fluxo de emoção que impregna a cena, em todas as suas variações, pois são vários os momentos de humor, ao lado de uma sensação dramática muito sofisticada. Não é o caso de um melodrama, de um desfile de pieguices ou de emoções baratas: a cena tem uma nobreza impressionante, não menospreza a capacidade nossa de sentir; na verdade, ela pretende nos auxiliar a conquistar um salvo-conduto, um passe para contemplar com maioridade a vida, o mundo.

 

A qualidade da exposição emocional resulta da qualidade da música (Tom Kitt), traduzida com eficiência por Liliane Secco, responsável pela direção musical. A tessitura da música com as letras e a ação (texto e letras de Brian Yorkey) revela o nascimento de um formato teatral novo do musical, revolucionário,  em que há ousadia diante das soluções usuais do gênero. Apesar do verdadeiro musical supor o desenvolvimento da ação em música, aqui acontece uma simbiose vertiginosa entre música, palavra, ação e sentimento,  sob uma arquitetura muito sutil. A cena é, digamos, diabolicamente, “quase normal”, como se pudesse ser, de repente, apenas teatro dramático ou singelo musical. Trata-se de um brincadeira com esta hipótese. No fundo, estamos diante da excelência de uma proposição inusitada, o convite para aceitar uma dose de loucura da cena, uma cena em que o ser humano desfila em liberdade total, capaz de falar dos seus sentimentos e delírios mais íntimos, seus sonhos absolutos, capaz de cantar, dançar e expor sua loucura transcendental.  Enfim, foi inventado  o teatro de um homem novo, com suas normalidades e maluquices, o homem livre. Nem pense: seja um cidadão do seu tempo, corra, vá ver.