Crítica de Estamira – Beira do Mundo – versão II
Mundo, violento mundo, sem rima e sem solução: talvez uma das imagens mais brutais da nossa barbárie esteja nos lixões, lugares em que multidões sobrevivem como se fossem lixo, restos sociais. Lá elas rastejam blindadas por nossa indiferença, como se esta situação não fosse um problema de todos, como se gente – e lixo – não fossem responsabilidade social. Uma avalanche de perguntas brota destas constatações: Estamira – Beira do Mundo se estrutura ao redor desta vertigem de perguntar. A cena deseja saber a espessura da nossa indiferença, a qualidade do nosso olhar cidadão para o mundo, em que grau estamos, dentro de nós, comprometidos com a delicadeza da vida.
Vale a pena ver. Se em nossa época está nascendo um ser humano novo, disposto a lutar, em paz, para melhorar a sociedade, a encenação sintoniza com esta nova ordem até na linguagem teatral adotada. A base para a construção da cena é um artifício caro à arte contemporânea, a pergunta sobre a ilusão e a verdade, a mistura de referências. São dois pontos de partida – a biografia de Estamira, do filme de Marcos Prado, e a personalidade da atriz Dani Barros. O roteiro do filme foi trabalhado com a diretora sob a luz da memória afetiva da intérprete. Construiu-se assim uma ousada mistura de relato, memória, documentário, ficção, vida e arte.
Estamira existiu, a atriz decidiu conhecê-la. Foi uma mulher real, massacrada pela indigência da sociedade brasileira. Nasceu em um campo em ruínas; liquidada pelo horizonte familiar de miséria e prostituição, violada e usurpada em seus direitos mínimos, migrou para a cidade e acabou sobrevivendo graças à exploração do lixo depositado em Jardim Gramacho. Tornou-se uma louca social, alguém que precisou escolher a desrazão para sobreviver em uma sociedade indiferente ao terror da miséria. A sua fala, registrada no filme, proclamava a fragilidade da vida. Dilacerante, o delírio da mulher-lixo revela uma lógica constrangedora: a defesa da integridade do ser humano feita por uma pessoa atropelada pela existência.
O desenho da montagem, intimista, traz uma outra dimensão: a possibilidade de entendermos que somos também Estamira, ela não é um ser distante, estranho, é produto do nosso lixo, do lixo que somos. A mistura de realidade, loucura e miséria norteou a criação do figurino (Juliana Nicolay) e da cenografia (Aurora dos Campos, Beatriz Sayad e Dani Barros), caracterizações simbólicas inspiradas pelos catadores de lixo e pelos espantosos depósitos sanitários que povoam nossas cidades. O espaço exíguo da semi-arena é um mar de sacolas cotidianas de plástico colorido. A luz e os efeitos sonoros reforçam climas e mudanças da ação. Sob a direção sutil de Beatriz Sayad, Dani Barros se mostra como pessoa, história de vida, filha de uma mulher marcada por um quadro de doença mental, conta como conheceu Estamira. E se apresenta como atriz, uma intérprete sensacional, capaz de se transmudar inteira em sentimentos, percepções, emoções: Estamira está diante de nós. A coragem da cena é impressionante, o cálculo do trabalho é ousado – pretende indicar um teatro novo, para um novo tempo, tempo de dialogar com as sensibilidades e sugerir a transformação das pessoas, com a esperança de que a poesia traga delicadeza, a melhor arma contra a violência do mundo.