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O corpo falante e a libertação do homem comum

 
O corpo fala, tem autonomia e idioma próprio. A prova está em cena, bem ao seu alcance, no delicioso Prá Mim Chega, espetáculo solo de Miguel Thiré, cartaz do Teatro Leblon, Sala Fernanda Montenegro. É ir ver. O espetáculo cativa por sua leveza: é para rir, para olhar o presente, para saber ser urbano hoje. O que significa riso inteligente, sofisticado, e, de quebra, inteiramente apegado ao jeito carioca de ser.
 

Em cena, com um figurino de trabalho neutro assinado por Maria Whitaker e luzes objetivas, Miguel Thiré desfila tipos emblemáticos da vida carioca hoje – a furiosa e célebre velhinha da fila, o trombadinha dimenor da praia e da rua, o gay cristalizado por manias e superstições, o caixeiro folgado. O lugar da ação é a cena urbana cotidiana, Copacabana e Arpoador em particular, mas tudo pintado com algumas cores ácidas, da farsa, dentro do espírito de que tudo por aqui acaba em carnaval.

 

Se, para o público anônimo em geral, a proposta é irresistível por ser divertida e por compensar, com inteligência, o estresse nosso de todo dia, para o povo do teatro ela traz uma contundente amostra do poder do palco contemporâneo. De saída, a importância teatral do trabalho é a sua assinatura cênica. A plateia se vê diante de uma obra de arte autoral, basicamente uma performance, uma criação. O ator não representa um papel, mas sim realiza ações, inspiradas em figuras cotidianas, porém muito mais reveladoras de sua arte do que exatamente do recorte temático que ele criou. O ponto de partida é a palavra, a história contada, encadeada, com princípio meio e fim. Mas logo tudo se torna uma questão de expressão total do intérprete, uma arte dele, subversões cênicas.

 

A rigor, uma galeria infinita de tipos de hoje, das ruas, poderia ocupar a cena, pensados e criados pelo ator. No caso, são apenas quatro tipos principais, com discretas intervenções de alguns coadjuvantes, pessoas de suas relações, chamadas pela trama. O sentido dos quatro, porém, permite falar em multidão, como se tentará demonstrar adiante. E esta tese pode ser sustentada a partir da qualidade da atuação do artista, ampliada na dramaturgia graças à colaboração de Carlos Artur Thiré e no acabamento formal da cena, através da supervisão de direção, de Igor Angelkorte e Samuel Toledo.

 

Através de pequenos efeitos expressivos do corpo, com gestos bem desenhados e intensos, coloridos bastante matizados da voz, muitas onomatopeias e traduções vocais de fatos e ações, Miguel Thiré indica de imediato a identidade de quem está em cena. A movimentação cênica e os gestos largos no ar desenham situações, ações, diálogos e interlocuções. A maestria chega a um resultado muito sofisticado, o bastante para deslocar a definição da sua arte, do continente da mímica tradicional para a performance, pois o gesto ganha autonomia, não é nem serviçal da palavra, nem o seu substituto. Além e ao lado da voz, o corpo fala e se impõe.

 

Vale perguntar para onde este corpo falante nos leva – um lugar divertido, sem dúvida, porém um lugar de acerto de contas com o estresse cotidiano. Somos todos em um só, como o ator, num passe de mágica, seres vagantes do nosso tempo, banais, descontentes, reclamões, desajustados, fios partidos de uma ordem urbana caótica, incapaz de nos manter em harmonia com o ato de existir. Difícil de entender? Nada disto: é simples.

 

Assim como todo teatro é político, porque acontece entre seres humanos, todo teatro é conceitual, porque contém alguma intencionalidade, queira-se ou não. O mais informal dos atores está exercitando um vínculo com a mente, com a representação. Para romper com isto – era o programa de Artaud – é preciso conquistar uma extrema pulsação da carne. Não é o objetivo aqui e você vai saber disso ao sair do teatro, mais leve, um tanto apaziguado com a balbúrdia carioca ao redor.

 

Para envolver a plateia neste divertido triturador de tensões, Miguel Thiré narra e representa modestas ações rotineiras dos personagens, atitudes comuns, ordinárias mesmo, mas peculiares. A velhinha acorda no seu quitinete emparedada na voragem de Copacabana, envereda por rituais cotidianos, assim como o gay maníaco, o pivete, o balconista folgado da padaria. Cada um narra e representa a sua rotina de migalha humana.

 

Contudo, há sempre um tom ácido, uma ênfase, um deslocamento cômico nos retratos pintados – algo que atrai e repele, diverte e corrói, aproxima e distancia. Para adensar a identidade urbana do relato, Miguel Thiré optou por fazer com que os personagens, isolados e independentes, chegassem a algum tipo de aproximação, por acaso. As trajetórias se cruzam, se articulam – acenam, portanto, com a possibilidade simbólica de se chegar a todos e qualquer um, como se a malha da cidade fosse um só tecido.

 

Assim, percebemos o nosso tempo e a nossa vida em cena: se tudo se articula, fazemos parte deste fluxo. Além do aspecto farsesco dos tipos, a possibilidade de participarmos da mesma família, humana, se insinua. O inusitado do fato, o grotesco, os tons fortes nas caracterizações, a brincadeira com temas atuais provocam o riso. A meta teatral está atingida, vale ter um corpo flexível para conviver com a selva urbana de todo o dia, bem vindo o desabafo corporal.

 

Neto de uma atriz célebre por sua capacidade de encantar e seduzir, a diáfana Tonia Carrero, impressiona ver como Miguel Thiré consegue transmudar o potencial de sedução, essencial na arte do ator, em doação corporal plena. Numa subversão deliciosa, ele transforma o corpo em palavra: a liberdade que ele traz para nós nasce aí, no prazer imenso de contemplar um corpo falante, capaz de escravizar a palavra e libertar o sentimento. A temporada vai ser curta, corra para ver.


Ficha Técnica
 
Idealização, criação e performance: Miguel Thiré
Co-autoria:– Carlos Artur Thiré
Co-direção: Igor Angelkorte
Diretor Assistente: Samuel Toledo
Figurino: Maria Whitaker
Programação Visual: Carol Fanjul
Mídias SOciais: Patricia Vazquez
Assessoria de Imprensa: Nova Assessoria e RP
Registro Videográfico: Eduardo Chamon
Fotos: Faya
Produção: Norma Thiré

Serviço
Teatro Leblon/Sala Fernanda Montenegro
Rua Conde de Bernadote, 26
Tel: 25297700
Terças e Quartas às 21h
Preço: R$ 60,00 Duração: 60 min 14 anos
Temporada: de 13/10 a 18/11