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Martins Pena: palhaços históricos

 
Você já viu a certidão de nascimento do brasileiro? Não? Está lá no teatro. O assunto não é fácil: é para rir muito, mas há um pendor coletivo forte para a mentira, a falsidade, o desejo descarado de enganar o próximo. E dói. Portanto, um riso rascante e doloroso. Não, não é a república das mentiras eleitoreiras, pedaladas e roubalheiras estrondosas, é apenas a sociedade brasileira do século XIX, na hora em que ela nascia. Somos palhaços históricos.

 

A montagem de O Pena Carioca, cartaz do Teatro Leblon, povoada por uma multidão de figuras assombrando a cena, parece proclamar: somos todos século XIX! De lá, não passamos. Mas, sob a aparência amarga, cortante, acredite, dá para ativar o pensamento livre, graças a uma comédia irresistível, brilhante, do texto à encenação.

 

Também não poderia ser diferente, quem está no palco é a esfuziante Companhia Atores de Laura. Não deixe de ver: se você perder, vai ser uma lacuna grave na sua vida de brasileiro. Afinal, não fica bem desconhecer a própria certidão de nascimento, documento nobre, em especial para nós, adeptos de uma vida de aparências e falsa ostentação, aliás, formas deliberadas de enganar o próximo.

 

O espetáculo nos traz em boa hora um dos maiores autores teatrais brasileiros de todos os tempos – Luís Carlos de Martins Pena (1815-1848). Carioca, inteligente, comerciário e depois diplomata, culto, estudioso, ele está comemorando duzentos anos de nascimento com poucas homenagens – um absurdo total para o tamanho de sua genialidade. Ao menos, porém, esta celebração assinada pela Companhia Atores de Laura é histórica, absoluta, de excelente qualidade.

 

O acerto começa na cena nua, povoada por seres entre o fantasmagórico e o manequim de vitrine, autômatos. Há um painel humano, com atores e cabides-bonecos misturados. Estão vestidos com roupas teatrais de evocação do século XIX, de Antonio Guedes, e nos rostos sobressai a maquiagem farsesca, numa unidade de concepção marcada pelo visagismo de Diego Nardes.

 

A direção de Daniel Herz estabeleceu com o cenário de Fernando Mello da Costa um espaço para a representação impressionante, pois o que se sugere em cena é um jogo desconcertante, um exército de corpos, vazio de almas, contundente deserto humano. A luz de Aurélio de Simoni destaca o conceito geral de multidão e desenha o plano particular dos indivíduos, ao sublinhar as cenas isoladas e o jogo entre os atores. Assim, a tensão histórica permanente, brasileira, entre o coletivo e o indivíduo esvaziado, predador, estrutura a cena.

 

O ambiente abriga três peças curtas de Martins Pena, três pequenas joias da dramaturgia brasileira no século XIX, capazes de demonstrar como é justa a aclamação do autor como iniciador do teatro brasileiro. A comédia não era considerada um gênero nobre na época, a sua função era a de complementar o programa teatral da noite de espetáculo, cuja grandeza era coroada por dramas ou tragédias, situação que explica a predominância das obras em um ato no repertório do autor.

 

Tratadas pelo diretor e pelo elenco segundo a linguagem peculiar do grupo, as três peças se projetam como se fossem atos de um espetáculo, com as passagens entre cada uma coloridas por falas impactantes, extraídas de vários outros textos do autor. O recurso permite construir um painel curioso do século XIX e da cabeça do brasileiro, pois um bocado de coisas ainda não mudou e outras estão na origem de males atuais. A acuidade do olhar de Martins Pena para as mazelas do jovem país se projeta vivamente. O resultado é uma homenagem à apurada percepção do escritor, bem expressa no título O Pena Carioca – o espírito livre do Rio de Janeiro nasceu aqui.

 

Os três textos escolhidos ilustram um pouco a trajetória da dramaturgia do comediógrafo: A família e a festa na roça, de 1840, O Caixeiro da Taverna, de 1845, e O Judas em sábado de Aleluia, de 1844. O primeiro texto é do início de sua carreira e tem a estrutura mais simples, com jovens enamorados desejosos de casar, acionando uma trama hilária para enganar o pai da moça, um pequeno fazendeiro, e obrigá-lo a dar o seu consentimento.

 

O segundo, o mais denso, traz a vertigem de ambição de um caixeiro, pobre diabo português capaz de um sem número de pequenas espertezas e falcatruas para agradar a dona do armazém, tentar agarrá-la e subir na vida. No último texto, um tesouro de truques cômicos, o fervilhante caldeirão urbano da corte do Rio de Janeiro revela duas irmãs em idade de casar, uma namoradeira e a outra casta, num sábado de aleluia, pretexto para fazer desfilar pecados, burlas, pequenos vícios e contravenções da baixa classe média urbana.

 

Mas o mais importante a destacar é o que foi feito, afinal, com os textos. O palco povoado por sugestões de figuras humanas, vazio de cenografia convencional, é esculpido pelos atores em expressão brasileira pura, pulsante, sensacional em todas as acepções da palavra. Impressiona a harmonia do conjunto, a multiplicidade de efeitos corporais, interpretativos, cênicos, sonoros e visuais construídos pela equipe, desde os ruídos dos animais na roça à janela urbana essencial para a garota namoradeira, das deformações físicas à tradução debochada de qualidades morais discutíveis.

 

Há um equilíbrio notável na distribuição, uma dedicação emocionante do elenco, um tesouro de desempenhos equilibrados e limpos. O pulso da direção se faz sentir nas caracterizações ousadas, arriscadas até, mas que jamais resvalam para o exagero, nas marcações, concebidas numa geometria limpa, nas intenções precisas das contracenas. O desenho dos gestos, sob a direção de movimento de Duda Maia, obedece a uma partitura rigorosa, mas muito ousada, inclinada a explorar o sentido das tramas sem constrangimento.

 

O texto cênico construído pelo conjunto a partir de Martins Pena, sob a direção de Daniel Herz, atesta a conquista de uma identidade límpida para a equipe. A sua marca é uma sofisticada performise – uma performance, ação plena, regida pela teatralidade, a encenação, a mise en scène dos franceses. Há em cena a obra de arte calcada na transformação da palavra em realidade cênica total. Trata-se de teatro de grupo de qualidade absoluta, em situação de maturidade e de pleno domínio dos recursos expressivos.

 

Ainda que a nota mais importante da montagem seja o conjunto, o resultado fulgurante de um elenco coeso, impressiona a intensidade corporal do desempenho de Ana Paulo Secco, em especial na Dona Joana, hilária caricatura de roceira, e na doce Maricota, jovem recatada da cidade. A figura patética e desesperada do Manuel caixeiro, um prodígio de ganância traduzido no colorido do verbo e em pequenos detalhes gestuais, faz de Paulo Hamilton um vertiginoso senhor da cena, em especial depois de sua apresentação, no primeiro ato, em travesti rocambolesco impagável, na divertidíssima Dona Angélica Curandeira. O requinte do trabalho de Paulo Hamilton, pura filigrana, comove quem ama teatro. Contudo, a bem da justiça, todos os atores, Leandro Castilho, Anderson Mello, Gabriela Rosas, Marcio Fonseca, Luiz André Alvim, assinam tipos notáveis, bastante diferenciados, a cada texto.

 

Ou seja: importa ir ao teatro para constatar, com esta montagem, o longo caminho humano a percorrer ainda, por aqui, para que se chegue a uma autêntica plenitude cidadã. A nossa certidão de nascimento depõe contra nós. Talvez herdeiros da cobiça colonial, talvez apegados demais aos valores humanos mais baixos, ditados pela pulsão mais primitiva de sobreviver, o fato é que desde o século XIX convivemos com uma concepção de vida em que o outro é multidão informe, povoada por pequenos nadas, meros cabides, pobres otários, pessoas inferiores, passíveis de uso e descarte, nos mais variados graus. Dá para rir muito, claro – mas impossível deixar de pensar, na saída do teatro, nos caminhos possíveis para que se conquiste, afinal, a passagem sublime: de bonecos inertes, meros cabides, chegar a ser gente de verdade.


Ficha Técnica
 
Texto: Reunião de três obras de Martins Pena: ‘A família e a festa na roça’, ‘O caixeiro da taverna’ e ‘O judas no sábado de aleluia’ .
Direção: Daniel Herz
Elenco: Ana Paula Secco, Anderson Mello, Gabriela Rosas, Leandro Castilho, Luiz André Alvim, Marcio Fonseca e Paulo Hamilton
Iluminação: Aurélio de Simoni
Cenário: Fernando Mello da Costa
Figurino: Antonio Guedes
Trilha sonora original: Leandro Castilho
Direção de Movimento: Duda Maia
Projeto Gráfico:Maurício Grecco
Direção de Produção: Renata Campos
Consultoria Psicanalítica: Evelyn Disitzer
Assistente de Direção: Tiago Herz
Assistente de Produção: Thaisa Areia
Assessoria de Imprensa: MNiemeyer
Fotos de Divulgação: Paula Kossatz
Assistente de Figurino: Renata Mota
Direção Artística da Cia Atores de Laura: Daniel Herz
Realização: Cia Atores de Laura

Serviço
O Pena Carioca
Temporada 1: 04 de setembro a 25 de outubro. Teatro Poeira.
Temporada 2: 05 de novembro a 20 de Dezembro.
Local: Teatro do Leblon (Sala Marília Pêra)
Endereço: R. Conde Bernadotte, 26 – Leblon, Rio de Janeiro
Telefone: (21) 2529-7700
Sessões: Quinta, sexta e sábado às 21h / Domingo às 20h
Classificação: 12 anos
Gênero: Comédia
Preço: Quinta e sexta: R$70, (inteira) e R$35, (meia) / Sábado e domingo: R$80, (inteira) e R$40, (meia)
Duração: 90 minutos
Capacidade: 432 lugares