Um joão faz tudo sacode a cena e faz o povo levitar, sair da sintonia miúda cotidiana e viajar por mundos imaginários construídos por palavras. Não, quem está em cena não é o bardo inglês, mas sim, alguém como ele, um ator poeta, que nos lança livres na atmosfera de invenção mais deliberada, aquela que só o teatro, entre todas as artes, pode ousar. O seu nome, Gustavo Gasparani. A montagem, cartaz do Espaço SESC em Copacabana, é um dos melhores programas da cena carioca do momento: não deixe de ver, por nenhum motivo.
A cena é a mais completa ousadia, ato digno de quem se projetou a partir da tresloucada Companhia dos Atores, a sede da irreverência teatral nos últimos 25 anos. Em parceria com o jovem diretor Sergio Módena, um nome revelação que se consagra e se notabiliza por uma aguda inteligência teatral e requintado bom gosto, eles conceberam uma encenação de Ricardo III , de Shakespeare, para um só ator. A adaptação assinada pela dupla não mudou o texto original ou transformou o seu sentido profundo: apenas reduziu o fluxo dramático, condensou a trama de forma a obter um veículo para apena um ator – e que veículo, e que ator.
A rigor, o que se busca focalizar é o desmedido, o desvario daqueles que almejam o poder em função de si e não em um cálculo a favor da sociedade. A peça, um dos primeiros dramas históricos de Shakespeare, encenada pela primeira vez entre 1592 e 1593, relata as agruras de um momento tenso da história da Inglaterra, o nascimento de um despotismo moderno, em que a luta sanguinária pelo poder é retratada em uma linguagem de extrema beleza poética. Portanto, temas universais que permanecem atuais, urgentes na pauta de qualquer cidadão do mundo.
Na direção, Sergio Módena propõe a cena vazia e quase neutra, povoada por um cenário, de Aurora dos Campos, minimalista, clean, suporte para a narração e devotado a indicações sutis das situações e do desenho da trama, terreno livre para a exposição do ator. Trata-se de um cenário praticável, manuseável – revolucionário, ainda que muito simples.
Com absoluta maestria, Gustavo Gasparani brinca em cena como se fôssemos crianças impressionadas com a maldade do mundo. Concilia narração e representação, performance e exposição, em voo livre. A apresentação começa com uma exposição didática rápida, muito animada, das coordenadas históricas fundamentais para o entendimento da trama. Há um quadro de notas, destes escolares, ao lado de mínimos objetos: cadeira, canetas hidrocores, cabide, baldes, luminária. Na música, Marcelo Alonso Neves concebeu intervenções pontuais sutis, porém decisivas, expressivas. O figurino, de Marcelo Olinto, despojado e neutro, liberta os gestos e garante ampla movimentação. A direção de movimento de Marcia Rubin faz a palavra virar corpo, para instaurar a poesia em movimento.
Assim, em um piscar de olhos Gasparani se torna rei, rainha, nobres, conselheiros, dama, herdeiros. Com duas canetas e um foco ele materializa a Torre de Londres. Um meneio de corpo e se impõe como hesitante mulher. Uma ligeira torção no braço e surge o polêmico Ricardo III disposto a disparar sangrentos atos de morte ao redor de si. Uma luz sutil e bem desenhada, de Tomás Ribas, se projeta como coadjuvante do trabalho do ator, por vezes em intervenções de rara delicadeza, como o efeito vermelho nas cortinas de veludo.
A ação da peça está localizada no final da Guerra das Duas Rosas (1455-1485), disputa sucessória pelo trono entre dois ramos da Dinastia Plantageneta, os Yorks e os Lancaster. O futuro Ricardo III, Duque de Gloucester, rei efetivo da Inglaterra por um curto período, decide lutar com todas as armas pelo poder: traições, emboscadas, complôs, casamentos por interesse, assassinato de familiares são recursos que aciona sem medo para chegar a governar.
Em sua exposição, Gasparani gerencia o acúmulo de informações importantes com espantosa habilidade, a ponto de ensinar história a partir do palco. Esta qualidade transforma a encenação em excelente meio para a formação de plateia e para a complementação cultural da formação escolar. O joão faz tudo chamado Gustavo Gasparani brinca com o espaço e o tempo e nos obriga a sentir a força da poesia generosa de um dos maiores artistas de todos os tempos. E nos faz perceber que um único valor deve nortear a conduta de todos os homens – o caráter sagrado da vida, aquilo mesmo que a poesia nasceu para louvar.
Autor: William Shakespeare
Adaptação: Gustavo Gasparani e Sergio Módena
Direção: Sergio Módena
Ator: Gustavo Gasparani
Direção Musical: Marcelo Alonso Neves
Direção de Movimento: Marcia Rubin
Cenário: Aurora dos Campos
Figurino: Marcelo Olinto
Iluminação: Tomás Ribas
Produção: Coisas Nossas Produções Artísticas e Sábios Projetos
Espetáculo: Ricardo III
Local: Espaço SESC – Mezanino
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana/ RJ
Telefone: 2547-0156
Categoria: drama
Estréia: 11 de janeiro, sábado
Temporada: de quarta a domingo até 02 de fevereiro de 2014
Horário: de quarta a sábado às 21h, domingo às 19h30
Preço: R$ 20,00 inteira; R$ 5,00 associados SESC; R$ 10,00 estudantes e idosos
Bilheteria: terça à domingo das 15h às 21h
Duração: 90 min
Classificação: 12 anos
Gostei da crítica, fiquei curiosa para ver o espetáculo. Mas não entendi duas coisas: qual a razão de chamar o ator de joão faz tudo e por que falar em sacudir a cena?
Obrigada por seu comentário. Veja o espetáculo e depois comente, vou gostar de saber a sua opinião. A explicação sobre as duas expressões é simples – assim como Shakespeare escreveu obras de sucesso e irritou muitos contemporâneos, assim a ousadia desta montagem pode irritar pessoas com uma visão estreita do teatro. Para brincar com isto, usei duas expressões importantes nos estudos shakespearianos – “joão faz tudo” e “sacode cenas”.
Elas foram usadas pela primeira vez em sentido pejorativo contra Shakespeare, para falar de sua ousadia de atuar, escrever, dirigir, enfim, exercer plenamente o amor ao teatro. E… com sucesso, provocando os ressentidos, invejosos de pouco talento. Para tentar debochar dele, se fez uma brincadeira sonora contra o ator que escrevia (um faz tudo qualquer), shake scenes com Shakespeare. O texto de referência é um trecho do panfleto Groatsworth of Wit, de 1592, do contemporâneo Robert Greene (1558-1592):
“… há um corvo presunçoso, lindo, usando as nossas penas, que, com o seu coração de tigre envolto na pele de um ator, acredita que pode espoucar um verso branco como o melhor dentre vocês, e, sendo um absoluto Johannes Factotum (João Faz Tudo), é no seu conceito o único Shake-scene do país.”