Há uma nota fundamental quando se pensa em escrever a respeito do ano de 2013 – neste ano, o povo brasileiro foi para as ruas, por todo o país, nem sempre de forma pacífica e cordata, como sempre se esperou que fosse o jeito de ser do povo brasileiro. E parece justo afirmar que o povo foi para as ruas por uma razão simples e aguda – ninguém aguenta mais viver no vazio. Muito se escreveu sobre este movimento surpreendente – ao menos para os políticos – e renovador. Mas faltou pensar algo mais. Podem ser estabelecidas conexões entre este quadro e o teatro de 2013? O que se pode pensar a respeito?

Ruas fervendo, viver no vazio

 

Sim, o povo brasileiro vive no vazio, está condenado a existir no vazio, uma espécie sádica de limbo social. Os séculos passam e o vazio persiste. Não é que o povo seja uma massa de desocupados… muito pelo contrário. O povo brasileiro – inclusive a parcela que vive no Rio de Janeiro, envolta em um mito de boa vida – trabalha como escravo, pois os direitos gerados pelo trabalho são tímidos, ao menos no que se refere ao valor social de remuneração do trabalho. Quer dizer – os salários são baixos. E trabalha-se muito. Portanto, existe ocupação, sem compensação proporcional.

 

E mais: o horizonte de vida que envolve o povo, o universo social em que ele circula além do trabalho e que compõe o quadro fundamental da existência de cada um, é o vazio. O povo trabalha e trabalha. E não tem direito à saúde, à educação e à cultura, a menos que se disponha a pagar, e bem, por estes bens imateriais essenciais para a qualidade de vida mínima. Por isto se pode falar em viver no vazio. A educação no Brasil não é um direito da criança, é uma luta. O professor não é o profissional engajado na construção do futuro do país, mas sim um miserável sacerdote mal pago que precisa ser um guerreiro para ter o que ensinar. As escolas são o lugar do precário – as escolas públicas e mesmo uma larga faixa dos estabelecimentos privados, em especial os de caráter popular.

 

Se a educação é terra de ninguém e de vale tudo, o que se pode esperar da cultura? Há uma lógica envolvendo a precariedade do universo social do indivíduo no Brasil? Educação, saúde e cultura são referências fantasmas para o poder. Como alguém pode se tornar cidadão em tais condições? O cálculo estruturante do vazio é o desejo de constituir uma população descartável, impossibilitada de exercer plenamente a sua cidadania, submetida à indigência mais ampla possível no seu universo social. Neste jogo, a contenção do acesso à informação e o embotamento da sensibilidade são ferramentas prioritárias. E o teatro surge como atividade incômoda, prática de arte que importa negligenciar.

 

Assim, a atitude do poder em todas as esferas – federal, estadual e municipal – é de indiferença absoluta ao teatro. Dilma Rousseff, Sergio Cabral e Eduardo Paes escolheram não mudar nada deste quadro em 2013. Sim, pululam planos de apoio e de fomento, existem auxílios–montagem, existem teatros públicos, mas todas as atividades são acidentais, fragmentárias, não configuram projetos efetivos de mudança de visão do teatro – e da cultura – no sentido de pretender um novo universo social para o cidadão brasileiro.

Um teatro paradoxal

 

Se avaliarmos o ano teatral de 2013, duas constatações são imediatas – ele se manteve no interior desta conjuntura, aconteceu como teatro em crise, na verdade o seu estado permanente. Mas, ao mesmo tempo, em um desenho paradoxal, é notável a sua vitalidade, condição surpreendente, gerada por obra e graça da classe teatral. O teatro brasileiro, mais exatamente o carioca, existe por milagre e o santo milagreiro é conhecido: é o povo do teatro. Houve um dinamismo de produção acelerado, um crescimento do mercado, uma nota que persiste desde o início deste século XXI, com profusão de gêneros e de formatos, variações de dimensões de elencos e de linguagens. Foram tantos os cartazes que se tornou impossível, objetivamente, que uma pessoa pudesse ver todos os trabalhos apresentados. Nem os críticos, em tese obrigados a ver todas ou quase todas as obras, conseguem mais cogitar ver um percentual próximo do “tudo”.

Expansão de mercado: ator-motor

 

Vale enumerar as características básicas do teatro do ano. A cena foi ocupada por produções comerciais de porte considerável, principal situação a considerar para apontar a existência de uma expansão de mercado crescente, com redução dos monólogos e do empreendedorismo isolado, do ator solitário e com poucos recursos (capital), muito embora o motor dos projetos continue a ser predominantemente o ator. Os destaques aqui foram Quem tem medo de Virgínia, Woolf, Vermelho, Incêndios e Rain Man. Desempenhos notáveis de Daniel Dantas, Zeze Polessa, Antonio Fagundes, Marieta Severo e Marcelo Serrado trouxeram à baila a reflexão sobre os valores da interioridade e da presença na arte da interpretação.

 

Mesmo um trabalho de composição, como o desempenho de Fagundes em Vermelho, contou com um tom de tal excelência detalhista que se tornou um procedimento orgânico, uma atuação arrebatadora. O emocionalismo a um só tempo intenso e contido de Marieta Severo (Incêndios) também deve ser destacado. Mas não vale fazer notas particulares para cada um: as peças enumeradas denunciam a sofisticação da arte dos atores brasileiros, a presença requintada na abordagem de textos densos, indicam a conquista de um degrau novo – a desenvoltura crescente dos intérpretes no drama, em uma cena devotada ao cômico ao longo da história.

 

Ao mesmo tempo, a arte do ator no monólogo contou com fortes contribuições de viés autoral e histriônico, com Heloisa Perissé (E foram quase felizes para sempre), e de colorido corrosivo, ainda que no interior do cômico, com Bruno Mazzeo (Sexo, Drogas e Roc’n’roll). Produções médias, independentes, alcançaram elevado nível de solução artística (A Arte da Comédia, Vênus em Visom, A Porta da frente.)

Experimentação, pesquisa e invenção

 

Ao seu lado, o teatro de pesquisa, o teatro experimental e de grupo ofereceram um ritmo intenso de trabalho. A linha dominante de linguagem e pesquisa persiste basicamente a mesma, a intersecção entre vida e arte, documentário e invenção, performance e representação. Os grandes destaques do ano foram Conselho de Classe, da Companhia dos Atores, e As Horas entre Nós, da Companhia Dragão Voador Teatro Contemporâneo.

 

Contudo, ainda que não tenham assinado trabalhos com projeção ou impacto suficientes para figurar na lista dos melhores do ano, importa destacar a continuidade de trabalho de grupos de pesquisa e experimentação sérios, dotados de bela força propositiva. Persistiram em atividade conjuntos tais como Armazém, Atores de Laura, Companhia Omondé, Nós do Morro, Pequod, Studio Stanislavski, Cia Teatro Epigenia, Os Dezequilibrados, Teatro Inominável, Companhia Aberta, Companhia Sala Escura de Teatro. Responsáveis por belas criações cênicas, estes conjuntos mereciam contar com espaços próprios, para a ampliação de seus projetos, situação que privilegia uma minoria entre os integrantes dos conjuntos. Em uma cidade em que a mudança do perfil urbano está em pauta, não seria difícil favorecer a criação de centros culturais que fossem gerenciados por tais equipes.

A nova era do musical

 

A maturidade crescente do cenário é perceptível também a partir da expansão da cena musical – tivemos tanto o grande musical (Elis – a musical, Como Vencer na Vida sem Fazer Força, Cazuza) como o musical de bolso, compacto, sempre marcados por um padrão técnico requintado (Jim, Pacto – as relações podem ser fatais, Clementina – Cadê você, Quando a gente ama).

 

Continuaram em cena os musicais à la Broadway (Como vencer na vida sem fazer força, Pacto – as relações podem ser fatais), em montagens sensacionais. Mas vale destacar ainda a prevalência dos musicais biográficos, de muito agrado junto ao público carioca, mas com nuanças interessantes – ao lado da cronologia da carreira, opção escolhida para falar de Elis Regina, houve a escolha de uma visão da trajetória, estratégia adotada na abordagem da vida de Cazuza, vista sob os olhos de sua mãe.

 

Em relação a Elis Regina, uma curiosidade: a esperta ruptura com o enfoque documentário, no segundo ato, em favor de uma imersão sentimental na personalidade da cantora. Funcionou. No impressionante Jim, muita criatividade, nada de biografia: Jim Morrison, o irresistível músico-poeta-crooner rebelde, insinua aparecer em cena na pele de um fã devoto, em um ritual de iniciação existencial – de arrepiar.

 

Outros caminhos novos também romperam com o sentido de relato biográfico, decididamente – para falar de Clementina, buscou-se o espírito e a energia da dama. Para louvar o grande Arlindo Cruz, o caminho foi a dramatização de cenas singelas de amor.

A contemporaneidade se faz conceito: salve o autor

 

No que se refere aos conceitos e ideias veiculados nos projetos, salta aos olhos a preocupação com a contemporaneidade em um sentido imediato. A montagem de clássicos e de textos de época foi bastante reduzida e a releitura atual dos originais foi nota frequente. A cenografia limpa, despojada, voltada para a invenção, distanciada da ideia de ambientes e construções familiares, foi um índice claro desta sintonia.

 

A opção dominante foi por uma comunicabilidade direta, imediata, permeada por valores do momento – o que indica a existência de uma luta surda do palco por aceitação. Sem um lugar de conforto na sociedade, o teatro não pode enveredar por buscas metafísicas. A elaboração da linguagem, que precisa acontecer como diálogo contínuo, somatório, deixou de ser um valor sonante, para fluir como referencia acessória.

 

Ao mesmo tempo, como parte deste diálogo quente, o autor nacional foi muito contemplado, em geral encenado pelo próprio autor e/ou associados. Uma lista alentada de dramaturgos nacionais ocupou as cenas – Jo Bilac, Júlia Spadaccini, Walter Daguerre, Pedro Brício, Diogo Liberano, Alcione Araujo, Nelson Mota e Patricia Andrade, Aloisio de Abreu, Artur Xexeo, Iuri Kruschewsky, Renata Mizrahi, Rodrigo Portella, Flavio Marinho, Mário Prata.

 

Neste caso, trata-se de uma recuperação do teatro, um indicador de saúde, pois o autor tem sido, historicamente, o elo frágil do teatro brasileiro. E o novo ritmo é tão impressionante que autores como Júlia Spadaccini (A porta da frente, Aos domingos, Um dia qualquer) e Jo Bilac (Conselho de Classe, Fluxorama, Caixa de areia) alcançaram o mérito de encenar vários originais ao longo do mesmo ano.

Leis, para quê? Fazer o quê?

 

Um debate urgente parece saltar da temporada, além do tema da meia-entrada. A reflexão a este respeito, pela sociedade, urgente, avançou um tanto ao longo do ano: a situação das leis de fomento. A Lei Rouanet é, de certa forma, o molde geral seguido nas diferentes instâncias de poder. E o caminho proposto pela lei, de apoio à produção, parece problemático demais, hoje, pois não se viabiliza a manutenção das peças em cartaz, o cotidiano da prática teatral, o diálogo essencial entre obra e sociedade.

 

O teatro se tornou evento, digamos. As peças nascem com atestado de óbito, pois o tamanho dominante nos teatros atuais, no Rio de Janeiro, a maioria de pequeno ou médio porte, não garante a continuidade de trabalho apenas a partir da bilheteria. A situação explica a rotatividade das montagens, perecíveis, a nova condição episódica das peças de teatro, que correm o risco de serem transformadas em rascunhos cênicos. Ou em acontecimentos descartáveis do marketing das empresas. Se a Lei de Fomento foi concebida para comover os empresários e levá-los, em certo prazo, de forma espontânea, a apoiar o teatro (– e a cultura –), este resultado transforma a Lei Rouanet em um dispositivo bastante discutível, pois o resultado teria sido mais favorável às empresas do que à cultura.

 

Assim, parece urgente, para 2014, lutar por mudanças de alcance institucional. Seria importante levar o poder a conceber e implantar projetos culturais mais densos, voltados para a celebração dos valores maiores do indivíduo e da cidadania, sem cálculos eleitoreiros e de pequena política. Neste quadro, seria oportuno contar com medidas estruturantes, fundantes da arte, em lugar de medidas paternalistas, imediatistas. A construção de casas de espetáculo de grande porte, o financiamento de teatros próprios para artistas, grupos e companhias, as políticas efetivas de formação de plateia e de ampliação de plateia, a estruturação de redes teatrais dignas do nome seriam fundamentais, deveriam ser pensadas adiante de leis de subsídio pontual à produção.

 

A urgência é clara e simples – tirar o teatro do limbo, da ação no vazio, e assegurar ao cidadão brasileiro referências concretas para a construção de sua identidade. No mais, um 2014 de felizteatro, é o que se pode desejar.