Se você gosta de samba, amor e musical, não deixe de ver – a peça é toda sua. Quando a gente ama, de João Batista, cartaz do Teatro Ginástico, explora o velho sentimento irresistível seguindo notas de composições inspiradas, sucessos amados pelo povo, assinados pelo grande mestre Arlindo Cruz com parceiros célebres. O desejo da cena, dá para adivinhar, é propor caminhos novos para o musical brasileiro. Só esta intenção já vale a noite, não perca o ritmo e vá ao teatro conferir.
O projeto singelo é marcado por aguda inteligência: duas vertentes valiosas são exploradas em cena com resultados de grande interesse teatral. De um lado, um roteiro de pequenas dramatizações, quadros rápidos, sugeridos ou inspirados pelos sucessos musicais selecionados, livre da obsessão biográfica. As cenas são desiguais, nem sempre são bem resolvidas, apresentam uma grande variação técnica, como dramaturgia e como forma de introdução das músicas. Mas são sempre divertidas, inspiradas ou ao menos revelam imagens eloquentes das tramas de afeto de nosso tempo, em particular das camadas populares.
Ao mesmo tempo, João Batista escolheu desenhar uma cena negra. O elenco é negro, nas mais diversas gradações da negritude, coisa rara de ver nos nossos palcos. O saldo é gratificante, conta muito para o debate sobre o musical. Há um jogo de corpo, uma ginga, uma energia e uma fortaleza de alma e de sentimentos responsáveis por uma atmosfera muito original. A palavra, o som e os gestos seguem um contorno sinuoso, apresentam um cálculo expressivo denso, exploram uma comunicabilidade que se poderia qualificar como brasileira, algo que emana da rua e dos jogos populares de dança e religião com um agudo sentido telúrico.
A cena é despojada, evoca de longe o espaço de uma roda de samba. A cenografia de Doris Rollemberg brinca com a ideia de terreiro (de samba e de macumba) e de espiar, ver através, graças ao uso de imagens de cobogó – aqueles elementos vazados bastante usados na arquitetura popular. A luz de Renato Machado valoriza a solução cenográfica e os jogos de cena, estes feitos de representações deliberadamente teatrais e coreografias sugestivas, de Dani Cavanellas. Marcelo Alonso Neves assina a direção musical sob um tom vibrante, de batuque. O figurino de Mauro Leite funciona melhor quando explora o lado festa da cena, perde força quando tenta insinuar uma coerência realista.
Os atores assumiram o projeto com muita garra. Cris Vianna estreia no teatro como uma deusa da cena, assina um belo desempenho – apesar da inexperiência, a sua presença alcança um impacto notável, graças à empatia, ao magnetismo e à sua dedicação. A limpeza dos gestos, a intensidade da emoção arrebatam a plateia. Édio Nunes é o galã brasileiro malandro, matreiro e mulato em todos os meneios. Patrícia Costa e Vilma Melo são um caleidoscópio de tipos femininos e de maneirismos sentimentais e musicais, competentes no canto e na representação. Milton Filho irradia simpatia e naturalidade mesmo em cenas musicais desafiadoras. Wladimir Pinheiro é uma voz que toca a alma. Os jovens Jéssica Moraes e David Júnior têm desenvoltura para acompanhar o elenco mais experiente e a juventude artística não ofusca o forte potencial de galã do ator. Para um povo afetivo como o brasileiro, a linha de musical sugerida por João Batista abre uma vertente importante. Ela consegue unir a arte mais amada pelo povo, o samba das ruas, com o nosso jeito desabrido de amar, explodir o coração, pois quando a gente ama, brilha mais que o sol, como já ensinou a canção.
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