Pense na pureza mais intensa da alma humana. Talvez a resposta possa reunir muitas opções. Mas, será que ela pode ser simples e direta: a pureza maior da alma humana é a música? Pois esta é a proposta surpreendente da montagem de Rusalka, de Dvořák (1841-1904), criação assinada por André Heller-Lopes, em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Em cena, a jovem ninfa Rusalka, filha do espírito das águas, em lugar de viver num fantástico mundo aquático, habita um mundo objetivo, povoado por estantes de orquestra, vários instrumentos e referências musicais, quer dizer, o mundo da música. Além da concepção inovadora, é a primeira vez que a preciosa ópera é encenada na casa – portanto, é programa obrigatório para todos os que amam a bela arte.
André Heller-Lopes, foto Léo Aversa.
Vale, contudo, fazer logo a ressalva: há muito mais em pauta do que o ato de ousadia conceitual da montagem, uma coprodução com o Auditório de Tenerife. A lista das atrações em cena é imensa. No palco, brilham valores da terra verdadeiramente admiráveis, a começar pelos solistas escalados para a estreia, as impressionantes vozes de Ludmilla Bauerfeldt, Giovanni Tristacci, Eliane Coelho, Licio Bruno, Denize de Freitas, Geilson Santos e Hebert Campos.
A direção musical e a regência de Luiz Fernando Malheiro, intervenções precisas, conferiram um brilho singular à atuação da orquestra. Para completar, o coro do Theatro foi responsável por momentos cênicos de puro encanto.
Maestro Luiz Fernando Malheiro, foto de divulgação.
Encantamento, aliás, é uma qualidade fundamental para a fluidez da ópera tcheca. A obra, de 1901, materializa o grande sonho de Dvořák, a criação de óperas como veículos privilegiados de expressão nacional.
A busca da expressão nacionalista sob inspiração romântica, apesar da voga do verismo, era um valor forte na época, ambição partilhada pelas populações eslavas e nórdicas. A Tchecoslováquia, terra natal de Dvořák, sobreviveu durante séculos sob o domínio do Império Austro-Húngaro e só surgiu como país apenas após a primeira guerra mundial. A condição de terra frequentemente devastada pelo poder estrangeiro atiçou um clamor local com raízes históricas profundas.
Neste sentido, a ideia de ninfas, duendes e sereias, fossem criaturas mágicas ou espíritos, se tornou letra corrente para expressar um valor telúrico, romântico, capaz de afirmar uma força nativa, o próprio espírito da terra. Diferentes versões do tema surgiram em histórias populares, dando corpo a um vasto folclore. Com certa projeção política associável ao valor nacional, as lendas migraram para a literatura.
Obras literárias como Undine, de Fouqué, de 1811, e A Pequena Sereia, de Andersen, de 1837, alcançaram sucesso e inspiraram o dramaturgo tcheco Jarolav Kvapil para criar a sua lenda dedicada ao tema – Rusalka. Ao ler o texto, Dvořák encontrou no original ecos das histórias de sua cidade natal e o libreto que esperava para criar a sua obra-prima.
A esta altura, algum debate pode envolver a concepção de André Heller-Lopes, devotada à ideia da música como o tal lugar originário de pureza. Todavia, importa reconhecer que, ao fim e ao cabo, a música se projetou como impactante valor nacional, estrutura espiritual do país.
Se o achado inteligente do encenador for deixado de lado, os dados históricos a respeito da lenda podem despertar algum estranhamento diante da cenografia de Renato Theobaldo. Ela trabalha, de certa forma, com a materialização fria de um lugar de música, em substituição da magia de um recanto da natureza em que a floresta abraça o burburinho das águas, imagem indicada no libreto.
A sensação entre o metálico e o frio é acentuada pelos grandes globos metalizados suspensos no ar. A grande tela de projeção ao fundo – um imenso ciclorama branco – por vezes amplia a sensação de frieza; acalenta, porém, o impacto da força das águas a partir de belíssimas projeções de imagens aquáticas. E sublinha o impressionante tom soturno do final.
Assim, o primeiro ato se organiza ao redor de referências mais concretas do que fantasiosas, que abarcam desde indícios do lugar da música até o fluxo aéreo das águas. O segundo ato, ao contrário, no palácio, mergulha a percepção no jogo puro da fantasia. O espaço se transforma radicalmente, construído por deslumbrantes painéis de tecido pintado, como se fosse o lugar de um sonho – aliás, o sonho de Ruzalka. Finalmente, o terceiro ato retoma a cena orquestral do início, porém em estado de ruína, com imersão em tons sombrios, a imagem ao fundo evocando um naufrágio, móveis e instrumentos de orquestra desordenados no centro da cena.
Na verdade, trata-se da grande ópera, uma encenação de tirar o fôlego, marcada por muita teatralidade. Ruzalka corta a cena de bucólica alegria campestre, de abertura do primeiro ato, vestida de luto – ou com a roupa preta que impomos aos músicos nos salões…; surge imersa na sua paixão infeliz por um desconhecido, em lugar de aparecer triste, mas como fulgurante beleza vestida de água, segundo as versões convencionais. Das várias transgressões da montagem, nascem momentos de intensa reflexão.
Ao mesmo tempo, incontáveis são os instantes de beleza requintada, proporcionados pelo desenho da luz, de Gonzalo Córdoba, mais do que expressiva, e por figurinos de um artesanato esmerado simplesmente deslumbrante. Tecidos, corte, cores, movimento das roupas nos corpos são elementos certeiros para a fluidez da mágica história. O casamento entre a luz, o figurino e a movimentação cênica transforma a presença do coro, no segundo ato, num momento de arte inesquecível. A corte hierática celebra os votos de casamento do príncipe e insinua, ao mesmo tempo, a estranheza da gélida noiva, Rusalka.
Na plateia, há um outro clima – a trama de cores sombrias faz com que todos rusalkem, se apaixonem pela cena, sobretudo sob o encanto das vozes magistrais reunidas na encenação. A ninfa mergulhara num desvario de amor pelo príncipe, que costumava se banhar no lago do bosque; a voz de puro cristal de Ludmilla Bauerfeldt clama pela realização plena deste amor impossível. O seu desempenho na Canção da Lua figura como um rito maior de plena emoção de amor.
Em desespero, ela pede ajuda ao seu pai, Vodnik, representado como esteio inconteste do império das águas por Licio Bruno, uma presença lírica de alto impacto. Diante dos fatos – uma verdadeira maldição contra a natureza do reino das águas – a única saída é o recurso à feiticeira Jezibaba, cujas artes são honradas com primor por Denize de Freitas, a ponto de enfeitiçar também a plateia.
A jovem encantada, de saída destinada ao fracasso, perde a linda voz, a sua inefável roupa de água e a parceria das ninfas-irmãs, representadas em voz, corpo e movimento por Carolina Morel, Mariana Gomes, Lara Cavalcanti, todas em estado de graça. Rusalka deve seguir o portentoso príncipe, o canto profundamante amoroso de Giovanni Tristacci, mas perdeu a voz para a feiticeira e é gélida como as águas.
Logo a verdade dos seres que invadem a natureza sem constrangimento se revela como alma e pecado; a Princesa Estrangeira arrebata a atenção do príncipe, na figura icônica de Eliane Coelho, imbatível como a voz da traição. Assim, a falta de sintonia entre a natureza verdadeira da terra e o caráter volátil dos homens sela a sorte de Rusalka.
No fundo, esta ópera tem um segredo invencível, propício para nos fulminar sem clemência, ágil para se sobrepor a todos os que se exponham à sua arte cortante. Trata-se de um canto de amor desmedido a favor de valores inegociáveis, etéreos, quase indizíveis, os valores primeiros do espírito da terra. Por isto, diante dela, nos julgamos abrigados e protegidos.
Se o encanto do estrangeiro pode macular o espírito da terra, o feito deixará cicatrizes profundas na terra violada. Contudo, o sacrifício nunca será em vão; derrotado pelo pecado contra a pureza, o conquistador jamais reencontrará a sua paz, perderá o governo de sua alma, encontrará a morte. Para o público, encerrada a função, vale transportar a própria alma, de repente pura e leve, acalentada por valores profundos, para casa: a alma segue livre, refinada pelo melhor da música.
PARA SABER MAIS:
Filme de 1960 para a televisão tcheca, roteiro e direção Ilja Hylas:
Vídeo do Metropolitan Opera House, 2014. Com Renée Fleming. Piotr Beczala, d Dorola Zajick, John Relyea, Emily Magee; direção Yannick Nézet-Séguin – produção Oto Schenk.
FICHA TÉCNICA:
Rusalka
Solistas:
Ludmila Bauerfeldt (dias 14, 16 e 24) e Paolla Soneghetti (dias 13 e 22) – Rusalka
Giovanni Tristacci – Príncipe
Eliane Coelho ((dias 14, 16 e 24) e Tati Helene (dias 13 e 22) – Princesa Estrangeira
Denise de Freitas (14, 16, 22 e 24) /Fernanda Schleder (dia 13) – Jezibaba
Licio Bruno (14, 16 e 24) e Murilo Neves (dias 13 e 22) – Vodnik
Carolina Morel, Mariana Gomes e Lara Cavalcanti – Três Ninfas
Geilson Santos – Vaňku
Hebert Campos – Jářku
Coro e Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Cenografia: Renato Theobaldo
Iluminação: Gonzalo Córdoba
Figurinos: Marcelo Marques
Concepção e Direção Cênica: André Heller- Lopes
Direção Musical e Regência: Luiz Fernando Malheiro
Direção Artística TMRJ: Eric Herrero
Fotos: Daniel Ebendinger.
Serviço:
Rusalka, de Antonín Dvořák; libreto de Jarolav Kvapil
Coro e Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Datas: 14/11 (estreia), 16/11 e 22/11 – 19h, 24/11 – 17h
Projeto Escola – 13/11 às 14h
Local: Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Endereço: Praça Floriano, s/n° – Centro
Duração: 2h30 + intervalo
Classificação: 12 anos
Ingressos:
Frisas e Camarotes – R$90,00 (ingresso individual)
Plateia e Balcão Nobre – R$80,00
Balcão Superior e Lateral – R$50,00
Galeria Central e Lateral– R$20,00
Ingressos através do site www.theatromunicipal.rj.gov.br ou na bilheteria do Theatro a partir do dia 5 de novembro, às 14h.
Haverá uma palestra gratuita no Salão Assyrio uma hora antes do início de cada espetáculo.
Patrocinador Oficial Petrobras
Apoio: Livraria da Travessa, Rádio MEC, Rádio Paradiso Rio, Fever, Consulado Geral da República Tcheca em São Paulo, Consulado Honorário da República Tcheca no Rio de Janeiro, Compatriotas e Amigos da Tchéquia no Rio de Janeiro
Realização Institucional: Associação dos Amigos do Teatro Municipal, Fundação Teatro Municipal, Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa e Governo do Estado do Rio de Janeiro.
Lei de Incentivo à Cultura
Realização: Ministério da Cultura e Governo Federal, União e Reconstrução