Tania Brandão apresenta Eneida de Alencar, carnavalesca vitalícia, cadeira cativa na avenida.
Deslumbrante o desfile de escolas de samba de 2012. Apesar de tudo, do novo sambódromo inacabado e com os defeitos de sempre – em especial o som detestável – e até do novo sacolé criado para os ingressos, responsável por uma montoeira absurda de lixo, foi lindo. Lindo, lindo, lindo, ‘inda que efêmero, marca passageira nos corações. Neste primeiro texto, vale uma geral, uma lufada de confete, um vôo de granizeta, a ave do carnaval – depois, em outro texto, tento explicar o que é isto.
Primeiro, o mais importante: o palpite. A Escola de Samba é prima do jogo de bicho, para muita gente, bloco em que me incluo. Sem medo do mico, que não existe na cartela do jogo tradicional brasileiro, eu aposto que vai ser o seguinte resultado: Salgueiro, Vila, Beija Flor, Unidos da Tijuca, Portela, São Clemente/União da Ilha. Depois, Mangueira, Mocidade, Imperatriz, Grande Rio (o que foi aquilo? gente, luxo e chororô não fazem bom carnaval). Caem Renascer e Porto da Pedra. Sobem Império Serrano ou Viradouro – mas, vamos combinar, que lindeza irresistível a Inocentes de Belford Roxo, que impacto a Acadêmicos de Cubango, que surpresa o Império da Tijuca. E a favorita para cair, uma tristeza, o Estácio.
A lista é palpite. E discutível, claro. É resultado de observação pessoal, um olhar de foliã apaixonada que acompanhou tudo da pista, na barra, olho no olho dos desfilantes. Só pintou desânimo com a Grande Rio, uma exumação melancólica, chatíssima, dos antigos ranchos e grandes sociedades que desfilaram outrora para os meus sonolentos olhos infantis. As antigas moças da sociedade foram substituídas por patéticas estrelas globais, múmias carnavalescas que também não sabem cantar a música, também jogam beijinhos para a platéia, também não sabem sambar, também entregam na alegria forçada e em certo ar de desconforto e tédio que nem gostam de carnaval…
Mas não é isto o que importa: o carnaval some no tempo, mas o tempo faz justiça, abriga em seu andor obras monumentais de sensibilidade. E o tempo não vai apagar algumas cenas grandiosas, absolutas. Foram muitas as cenas arrebatadoras. Vale ensaiar um rol, ainda que ele não seja tão completo como os escritos em letra tremida pelas lavadeiras antigas, agora presentes em diferentes alas de homenagem aos degraus de Bonfim. Nossa, quanta Bahia, este ano…
Então, a lista das coisas inesquecíveis. A mulata dançante aérea do Lan, na São Clemente, ajudou a levantar os espíritos para o mais alto astral da folia logo na abertura do desfile de segunda. O babalorixá de Milton Gonçalves, na comissão de frente da Portela. A bateria de pincéis coloridos da Mocidade. A serpente encantada da comissão de frente da Beija. Os inacreditáveis navios negreiros da Beija, emocionantes, mais eloquentes do que qualquer aula que se possa imaginar sobre os horrores da escravidão. A inefável elegância de Selmynha Sorriso e Claudinho na condução da bandeira da Beija. A delirante ala rodopiante da Cidade dos azulejos da Beija. A inacreditável cena africana imortal da comissão de frente da Vila. O indescritível impacto de palha, madeira e luxo da Vila. A comissão de frente de extrema ironia elegante, surpreendente, irresistível, maravilhosa, hilária, da União da Ilha – com Maria Augusta, eterna rainha do carnaval carioca, ao lado de Renato Sorriso, nosso amado rei gari, e fiéis guardiões divididos entre a sisudez britânica e o rebolacho carnavalesco carioca.
E tem mais: o colorido transcendental do Salgueiro, oferenda sublime ao olhar, paleta inusitada tecida a partir do branco-e-vermelho-salpicado-de-dourado. E a ideia e conceito orgânico de desfile de Renato Lage/Marcia Lávia, do Salgueiro. E as baianas-Salgueiro Maria Bonita de trabuco nas costas. E a dona morte dos cordéis, eterna foliã do carnaval, recriada em desenho salgueirense de impacto. E a ala – e tudo o mais do velho bloco esquecido – do Bafo da Onça da Mangueira – afinal, muito mais apaixonante do que o Cacique monocórdio. E a ala de calar a voz e tirar o fôlego dos bonecos de barro de Mestre Vitalino, da Unidos da Tijuca. E a incorporação do real e do cotidiano – afinal! – ao imaginário delirante de Paulo de Barros. E os passistas da Unidos da Tijuca travestidos de Assum Preto. E Gonzagão pairando no ar da avenida como uma benção para quem gosta de arte popular…
No mais, algumas observações curiosas são fundamentais. Em primeiro lugar, para evitar qualquer suspeita de partidarismo, vale registrar que torci para a São Clemente. Sou uma carnavalesca do Grêmio Unido da Vira-Folha; no momento, meu coração está na praça, sem camisa. Já fui Portela, já fui Mangueira, arrastei a asa da alma para a Vila. Sou Império e sou Mocidade em algum lugar do meu espírito. Sou São Clemente de vez em quando, já tentei casar com a escola, mas não consegui nem mesmo atar o namoro. Detestava o Salgueiro de graça e me rendi completamente aos encantos da vermelho e branco. Saio do sério quando a Beija-Flor entra na avenida. Vejo sempre na Imperatriz um charme suburbano diferente, leopoldinense, atraente para quem tem mais intimidade com a linha da Central… E assim vai um coração saltitante, incapaz de indiferença diante do que passa em desfile.
E ainda: é inegável que existe um diálogo forte entre as escolas. Elas se espionam, se copiam, disputam em tom de surdo e cuíca. Em resumo rápido, considere-se neste carnaval alguns itens: as alegorias vivas nos carros, ampliadas por Paulo de Barros e agora incorporadas e recriadas por todos, às vezes de forma tediosa e fraca, mal feita; os orixás, presentes até mesmo ali onde eram deslocados do fio central do enredo; os dragões e os carrosséis…
Para dimensionar o grau de resguardo dos segredos do carnaval, vale um elogio à equipe da São Clemente. A mulata inflada da escola, criação de Gringo Cardia, proposição de um novo tipo de alegoria, a alegoria de vento, foi preservada quase integralmente. Vazou um mínimo para outra escola – vale comentar em outro texto, a seguir. Mas não foi nada – o segredo garantiu um grande feito para a escola, que marcou um ponto forte na história do carnaval e ajudou a tornar o ano de 2012 de valor histórico para qualquer antologia da festa.
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