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Reviravoltas da vida, volteios do mundo: de repente você cai num abismo infinito. Verdades, mentiras, amor, ódio, justiça, injustiça… Atônito, você vai ter que tentar entender quem é, afinal, esta criatura contida no seu corpo. Quem é você? A peça A Sala Branca, de Josep Maria Miró, novo cartaz da Sala Multiuso do SESC Copacabana, explora com intensidade impressionante este desafio.

A rigor, talvez não se possa falar de peça no sentido clássico convencional da dramaturgia. O texto sugere ser mais um dispositivo dramático de remota inspiração pirandelliana. Todos os elementos do drama tradicional – personagens, ações, conflitos, peripécias… – estão em jogo. Mas eles oscilam, se contradizem, se entrechocam, um pouco como se não se existisse uma verdade, apenas valesse a busca mais profunda da verdade de cada um, o conhecimento maior de si.

A situação básica parece simples: uma velha professora, Senhorita Mercedes (Angela Rebello), especialista na arte da alfabetização, reencontra, quarenta anos depois, alguns de seus alunos. Carlos (Sávio Moll), Laia (Isabel Cavalcanti) e Manuel (Daniel Dias da Silva) não se viam faz tempo e sequer possuem vínculos fortes. Até as memórias comuns e de cada um são bastante fluídas. 

O reencontro pode parecer casual – será mesmo?  As explicações flutuam, se contradizem, quer dizer, não importam. Na verdade, o encontro revela-se um engenhoso artifício do autor para lançar perguntas contundentes a respeito das formas de vida em nossa sociedade. A partir da sala branca da alfabetização, descortina-se um caleidoscópio vertiginoso de formas de ser, de não ser e de vir a ser. 

No entanto, a trama não se estrutura como relato afetivo ou sentimental, não se impõe como fatia de vida ou panfleto ideológico, ainda que sofrimentos introjetados na infância, derivados da rigidez da sociedade, povoem a cena. O texto é uma legítima ousadia teatral. Lança no palco uma ciranda de perguntas sobre a própria estrutura da vida, desvela os caminhos capazes de engessar a liberdade de ser, mas sem sectarismo, sem fechar questão.

A direção de Gustavo Wabner é corajosa, mas cede aqui e ali a algum apelo sentimental, escolha que prejudica um pouco o ritmo do dispositivo dramático, pois dilui a progressão impressionante da tensão poética. A escolha da belíssima música de Paulinho da Viola, Sinal Fechado, para a abertura da ação demonstra este desvio – aponta para um tom afetivo que não valoriza a secura inventiva da peça.

Isabel Cavalcanti, Savio Moll, Daniel Dias da Silva, Angela Rebello. Foto Wesley Sabino.

Os atores lidam com o desafio desconcertante do texto com bastante desenvoltura. Apoiam-se especialmente nas definições básicas de suas personalidades cênicas. Angela Rebello criou uma velha professora entre o desamparo da velhice, uma ousadia remota e a solidez de certezas antigas. Sávio Moll é o policial às voltas com o pavor do desemprego e a profunda incerteza de si. Isabela Cavalcanti se lança na euforia da mulher bem-sucedida pretensa senhora do mundo. Daniel Dias da Silva divide-se entre o cansaço do vencedor e o desejo de manter calados medos remotos sufocados.

A cenografia transparente, frágil e bastante etérea de Sergio Marimba funciona, sob a luz precisa de Vilmar Olos, como abrigo eficiente para o devaneio existencial surpreendente criado pelo dramaturgo. Trata-se de uma peça “perturbadora” no sentido mais saudável do adjetivo – não é uma aula de filosofia, nem muito menos uma sessão de terapia, mas dá para sair do teatro às voltas com as incertezas mais profundas que cada um é obrigado a conter em si. 

O espetáculo é absolutamente sedutor para a plateia amante do teatro. Em particular para o espectador que teima em se perguntar a respeito do papel que a velha arte pode desempenhar hoje. Se o mundo se tornou uma aventura vertiginosa capaz de desorientar cotidianamente o cidadão, vale a pena contar com o apoio do teatro – para descobrir que, afinal, o fundamento de tudo é apenas e sempre uma impressionante vertigem, a própria natureza do existir.

Ficha técnica 

Texto: Josep Maria Miró

Direção: Gustavo Wabner 

Elenco: Angela Rebello, Isabel Cavalcanti, Sávio Moll e Daniel Dias da Silva

Cenografia: Sergio Marimba 

Figurinos: Victor Guedes 

Iluminação: Vilmar Olos

Visagismo: Fernando Ocazione

Fotos e Programação visual: Vitor Hugo Ceccato

Trilha sonora: Gustavo Wabner

Assistente de Figurino: Carol London

Produção Executiva/Operação de Som: Bruno Jahu 

Operador de Luz: Pedro Carneiro

Contrarregra e camareiro: Cleiton Belmiro

Assessoria Contábil: Sesan

Assessoria de Imprensa: Catharina Rocha e Paula Catunda 

Mídias Sociais: Rafael Teixeira

Direção de Produção: Daniel Dias da Silva e Cacau Gondomar

Coprodução: CLG – Canteiro de Ideias

Um espetáculo da Territórios Produções Artísticas 

e Lunática Companhia de Teatro

SERVIÇOEspetáculo: “A Sala Branca”
Temporada: de 19 de setembro a 20 de outubro de 2024
Dias e horário: de quinta a domingo, às 19h
Não há apresentação entre os dias 3 e 6/10 devido às eleições municipais
Local: Sala Multiuso do Sesc Copacabana(Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana)
Ingressos: R$ 7,50 (credencial plena Sesc), R$ 15 (meia), R$ 30 (inteira) e gratuito (público cadastrado no PCG)
Informações: (21) 2547-0156
Horário de funcionamento da bilheteria: de terça a sexta, das 9h às 20h. Sábados, domingos e feriados, das 14h às 20h.
Classificação indicativa: 12 anos | Duração: 80 min.Instagram: @asalabranca