A escolha é sua. Sempre se pode lutar ferozmente para viver bem mal. Ou não. Quem sabe uma luz perdida surge e espanta a mediocridade que atormenta os seus dias? Há uma saída sim, acredite. É Teatro. Grande Teatro. Não, não deixe de ver: será uma chance rara, em toda a sua vida: a chance de ser perdidamente encantado pelo palco. A mais fina poesia cênica está em cartaz no Mezanino do Sesc Copacabana, com as apresentações iluminadas do ator multiartista André Morais em Memórias de Terra e Água.
Sobre um chão que evoca uma terra vermelha flamejante originária da vida, inspirado por textos inefáveis de Mia Couto, o artista se apresenta multiforme – primeiro, ele se impõe como uma sugestão de oráculo, arauto da terra, suporte de um canto original. Depois, ele é barqueiro e singra as águas em estranha comunhão com o natural. A sugestão de ritual iniciático é forte, como se houvesse em cena um convite para, de verdade, contemplar a essência do viver.
Logo a presença do artista, num fluxo contínuo de criação, mas sempre telúrico, aciona uma vertigem de existências. Como se fosse possível plasmar um caleidoscópio da vida, ele surge homem, menino, mulher, paisagem, volteios do tempo, rumorejos da natureza, o rio, a enxurrada, o grito da terra. Letras e personagens do autor-poeta Mia Couto ganham o dom mais precioso que poderiam cogitar, a plena existência em arte viva, palpitante. A pouco e pouco, vão construindo um redemoinho existencial cada vez mais fundo. E a poesia se instaura como realidade…
Estruturado num crescendo como se fosse uma partitura musical, o espetáculo arrebata a plateia num voo poético irremediável. Na verdade, o que é doado à contemplação é a quintessência da pulsão de vida – ela se esgueira, descortinada sob as névoas das perdas, da morte, do luto, promove um reencontro com as emoções primeiras.
As imagens criadas, mágicas, impactantes, possuem uma espessura inacreditável – elas são, ao mesmo tempo, monolitos e aragem. Evocam a raiz terra-e-água de cada ser, como se fosse natural abstrairmos a história do mundo e mergulharmos numa poétioesfera – atmosfera poética – da áfrica primitiva, original, de todos nós.
O feito nasce da integração verdadeiramente arqueológica entre o corpo, a vontade e o cálculo do ator, com a malha requintada sugerida ao olhar pela luz, de Daniel Uryon, a sonoridade revolucionária dos tambores de Viktor Maqueba e os figurinos, legítimas peças de arte, de Suzy Torres. Uma geometria do sublime – se é que se pode dizer isto – instaura, volátil, o mais puro efeito sensorial do belo.
A direção cênica, de Lúcia Serpa e André Morais, em sintonia fina com a direção musical, de Viktor Makeba, ao harmonizar em profundidade o corpo, o movimento, a fala, o canto, o som, os panos e a luz, consegue desmaterializar a concretude da cena, levá-la a ser pulsação primordial. Sim, há um transe poético raro e único, um convite transcendental para que você, pobre cidadão do hoje, mergulhe nesta unidade arrebatadora que é o profundamente humano.
Pois é – a rigor, é difícil traduzir em palavras o que acontece no palco, difícil mensurar o grau de embriaguez poética que envolverá o ser de cada pessoa diante deste acontecimento teatral único, exemplar. A melhor lição do teatro poético é retomada aqui e eleva a uma potência inédita a voltagem de criação cênica. Traz à lembrança feitos notáveis, como a encenação de Besouro, Cordão de Ouro, direção de João das Neves, em 2006. Lá, contudo, havia uma poética envolvente, mas predominava a cena-relato, cartesiana. Agora, o que está em jogo é a poesia cênico-teatral em estado puro, simples, direta, intensa e sem adornos, bem mais cortante do que a navalha do velho capoeira.
A conclusão é natural – o espetáculo de agora não está fundado na compreensão da história dos seres ou da sociedade. Também não pretende envolver os contemporâneos no flerte com os valores correntes ou com alguma imagem de si. O que se oferece é uma especiaria rara, difícil de obter, o mergulho decidido na própria matéria da arte. É um convite à levitação poética, indicação universal para qualquer exemplar de homo sapiens.
Vale ir conferir – se a miséria mesquinha da vida moderna tem maltratado as delicadezas do seu jeito de ser, quem sabe você consegue a honra de respirar plena existência, usufruir o arrebatamento primordial que é o verdadeiro sentido da vida? Pois então, cuide-se, dê uma chance a você: vá ao Sesc conferir, abraçar um flutuar poético requintado, num balé iluminado com a vida.
FICHA TÉCNICA:
Interpretação e Dramaturgia: André Morais @andremoraix
Direção Musical: Viktor Makeba @viktormakeba
Direção Cênica: Lúcia Serpa @lserpa e André Morais
Desenho de Luz: Fabiano Diniz @fabmacedodiniz
Operação de luz: Daniel Uryon @danieluryon
Figurino: Suzy Torres
Produção Executiva: Joana Damazio @joanadamaziovargens @maquina.cultural
Assistência de Produção: Thamiris Vaz @thamirisvaz
Fotos: Bruno Vinelli
Uma realização: Luz e Mistério Produções Artísticas
Assessoria de Imprensa: Luiz Menna Barreto
SERVIÇO:
Memórias de Terra e Água
Baseado na obra de Mia Couto
Temporada Rio de Janeiro:
Mezanino do Sesc Copacabana @sescrio @sesccopacabana
De 21 de novembro a 15 de dezembro
Quinta a domingo às 20h30
Ingressos: R$ 7,50 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada), R$ 30 (inteira)
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro – RJ
Informações: (21) 2547-0156
Bilheteria – Horário de funcionamento:
Terça a sexta – das 9h às 20h;
Sábados, domingos e feriados – das 14h às 20h.
Classificação Etária: 12 anos
Duração: 1 hora
Sujeito à lotação
Gênero: Drama
Teaser do espetáculo: