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Uma Eva eterna

Hoje, na Coleção Marcelo Del Cima, um grupo de amigos se reuniu para celebrar com muito carinho o centenário de nascimento de Eva Todor – Eva Todor Nolding. A tarde foi impecável – depois de um vídeo documentário com trechos de entrevistas, fotos, sequências de trabalhos da atriz, elaborado pela Coleção, apresentei um depoimento-afeto em memória de sua grandeza humana. Foi um ato de saudade, um ato de emoção, uma busca sentimental para materializar um tipo de grandeza que é a fortuna do teatro – a humanidade em estado puro. Transcrevo, a seguir, a minha fala, para fazer desta edição da coluna uma homenagem a esta atriz espetacular, referência luminosa para a arte do ator e da comédia, uma personalidade criativa que encantou o país por tantos anos.

Para falar da saudade

Coleção Marcelo Del Cima

Tania Brandão

11/11/2019

Procurei muito as palavras para este momento. Ingratas, elas fugiam, não queriam participar de um ato em que o ponto nevrálgico não está centrado no verbo, muito ao contrário. O ponto sob o foco é puro sentimento, coisa de pele, corpo, coração. Palavras para quê, quando o que se sente passa longe de enunciações segregadas pelo cérebro? Palavras para quê, quando tudo o que desejamos é reviver uma presença de rara intensidade emocional, alguém capaz de pegar a nossa alma, o nosso espírito, e embalar com as intenções de vida mais otimistas?

Não me rendi à covardia do verbo diante de uma praça que não era a sua. Insisti, garimpei, franzi a testa, afinei o olhar. Persegui livros. Consultei dicionários. Todos cheios de letras, vazios de existência.

Subitamente, lembrei dela.

Lembrei de toda a doçura que irradiava de sua pessoa ao conviver assim, assim, assim de graça – graça de espírito, graça da alegria humana mais profunda de estar junto. Graça de troçar de tudo – importâncias rasas, solenidades ocas, baboseiras adultas, vazias celebrações.

Era uma criança, ouso dizer. O espírito vivia repleto daquela pureza que faz a criança olhar ao redor e descobrir a fragilidade de tudo: é brincadeira, a vida é brincadeira. Nós, empedrados, embrutecidos, jamais entendemos.  Ao seu lado, eu me sentia menina, apenas uma menina, talvez querendo aprender a olhar ao redor. E nunca conseguia saber quem, de nós duas, era mais menina.

Fiquei extasiada quando descobri que a melhor homenagem para este encontro de saudade era liberar o fluxo singelo da emoção. Nada de teorias, nada de conceitos empolados, nada de explicações rebuscadas, nem mesmo enumerações pomposas de realizações sonantes, preocupadas em esconder o essencial, o amor que sentíamos por Eva Todor. Entendi que era preciso trazer os Beatles da minha adolescência para este lugar de encontro histórico tão curioso, em que uma menina, escolada na rebeldia dos anos sessenta e do iê-iê-iê, encontra outra menina, nascida em 1919, na distante Hungria, num frio recanto europeu cheio de pompa, circunstâncias e gente sisuda. Let it be, disseram os Beatles. Sim. Let it be.

Deixar rolar, deixar fluir, deixar correr, como o riso solto que tantas vezes professamos aqui, nesta casa, e lá, na rua Samuel Morse. Riso de bobeira mesmo, de verdade, riso de quem está preocupado em encontrar o melhor da existência, a leveza, o inefável, o que flutua livre sem rótulos ou delimitações. Riso libertário de quem decidiu flertar com o presente sem amarras.

Rua Samuel Morse. Samuel Morse – comunicação. Tudo o que eu quero hoje, aqui e agora, é reatar por alguns poucos instantes com a beleza intensa dos encontros que tivemos. A nossa comunicação.

E dizer então bem transparente – D. Eva, eu entendi. Entendi as suas escolhas, grandiosas, a sua deliberação tranquila de engolir sapos, feliz,  mesmo que sonhasse com príncipes nunca materializados. Entendi a sua pressa de mergulhar na arte, no palco, fazer, encenar, estrelar tantos textos que eu, hoje, ainda nem cogito dizer quantos passaram por sua arte, pois impor ao mundo a sua lista de feitos era o que menos lhe importava. Viver travessa em estado de arte era tudo. Mesmo que o preço para este estado de iluminação humana fosse alto, fosse muito mais salgado do que as piadas que costumava conceber, atos de pura inocência rebelde. A rebeldia dos anjos. O resto não importava.

Eu entendi – entendi a família difícil, que a senhora amansou, entendi a ameaça da miséria, enterrada ao pé da arte, entendi a cena repleta de alfinetes e de vaidades mesquinhas, que se tornou o seu lugar de luz. Entendi o seu olhar, demolidor, preciso, repleto de ideias que as palavras não contém.  Entendi o seu riso, generoso, malicioso, belo, inteligente, livre. Tão amplo, D. Eva, que se transformou no meu riso.

E no riso de tantas mulheres valentes deste país, mulheres anônimas interessadas em tocar a vida, criar os filhos, aturar poderes ancestrais gangrenados nocivos, contrários ao ato simples de viver. Elas são a vida.

Eu não aceito mais – de jeito nenhum – que me venham falar da menoridade de sua arte, da grandeza de sua bilheteria, do tom avoado de seu trabalho. Para o inferno com estes doutos que sonham com a imbecilidade do público, a estupidez das mulheres e a superficialidade de obras que estão ali, na carne do momento, fuçando o lixo doméstico para transmudá-lo em luz.

Eu entendi, D. Eva, a nossa pequena revolução, o gosto intenso do nosso riso. Que eles todos se preocupem com tantas grandezas. Nós, na sala, na copa, na cozinha, prosseguiremos rindo, rindo o riso dos que sabem que a vida não cabe em palavras. E só se torna ideia se passa intensa pelo corpo, pela carne pulsante dos sentimentos.

Saudade, D. Eva, até um dia – riremos ainda muito aí no céu, o lugar dos anjos, que sempre estiveram de um lado, o lado seu.

Cronologia Oficial (resumida, provisória) da carreira de Eva Todor:

Teatro

Revista

1934

Há uma Forte Corrente – de Freire Júnior e Luiz Iglézias

Foi seu Cabral – de Freire Júnior

Flores à Cunha – de Álvaro Pinto e Mário Lago

Quanto Vale uma Mulher – de Luiz Iglézias

1935

Foi Ela… – de Freire Júnior e Luiz Iglézias

Cidade Maravilhosa – de César Ladeira

Da Favela ao Catete – de Freire Júnior e Joubert de Carvalho

Do Norte ao Sul – de Freire Júnior e Luiz Iglézias

1936

Co-co-ro-có – de Freire Júnior e Luiz Iglézias

Paz e Amor – de Freire Júnior e Luiz Iglézias

É Batata! – de Freire Júnior e Luiz Iglézias

1937

Mamãe eu Quero – de Freire Júnior e Luiz Iglézias

Rumo ao Catete – de Freire Júnior e Luiz Iglézias

1938

Boneca de Pixe – de Freire Júnior e Luiz Iglézias

1939

Entra na Faixa – de Freire Júnior e Luiz Iglézias

Camisa Amarela – de Eva Todor

Yes, Nós Temos Banana – de Alberto Ribeiro e Braguinha

Comédia

1940

Querida – de Paulo Magalhães

Leviana – de César Ladeira

Levadinha da Breca – de Abadie Faria Rosa

Eu, Tu, Ele

Aonde vais, coração? – de Waldemar de Oliveira

Feia – de Paulo Magalhães

O Troféu – de Armando Gonzaga

1941

Sol de Primavera – de Luiz Iglézias

Casei-me com um Anjo – de Janos Vaszary (tradução de Barrabás)

Carneiro de Batalhão – de Viriato Correia

A Revoltosa – de Paulo Magalhães

A Mais Bela Mulher de França – de Verneuil e Berr (tradução de Luiz Peixoto e Batista Júnior)

1941/1942

Chuvas de Verão – de Luiz Iglézias

1941/1942/1945

Colégio Interno – de Ladislau Todor (tradução de Luiz Iglézias)

1942

O Nazismo sem Máscara – de Lourival Coutinho

Escândalo! – de Janos Vaszary (tradução de Luiz Iglézias)

Crescei e Multiplicai-vos – de Alcides Maciel e Sílvio Fontoura

1942/1947

Bicho do Mato – de Luiz Iglézias

1943

O Mundo é uma Bola – de Birabeau (tradução de Isa Silveira Leal)

Julho 10 – de Maria Castelo Branco e Maria Albuquerque

Copacabana – de Mário Domingues e Mario Magalhães

A Pupila dos Meus Olhos – de Joracy Camargo

A Mulher que eu Sonhei – de Erico Cramer

A Costela de Adão – de Barry Conners (adaptação de Luiz Iglézias)

1943/1948

Maria Fumaça – de Ladislau Fekete

1944

Querida Maluca – de Aladar (adaptação de Eurico silva)

O Príncipe Encantado – de Ary Pavão

O Bico da Cegonha – de L. Johnson (adaptação de Luiz Iglézias e Formaneck)

Nós, as Mulheres – de Joracy Camargo

Cavalinho de Pau – de Ladislau Todor (adaptação de Barrabás)

1944/1948

À Sombra dos Laranjais – de Viriato Correia

1945

Maria Vai com as Outras – de Rui Costa

Estão Cantando as Cigarras – de Viriato Correia

Bonita Demais – de Joracy Camargo

BAbalu – de Luiz Iglézias

1945/1948

Joaninha Buscapé – de Luiz Iglézias

1946

Uma Mulher Livre – de Dennys Amiel (tradução de Brício de Abreu)

O Pecado de Madalena – de Ernesto Andai (tradução de Luiz Iglézias)

Cláudia – de Rose Franken

1946/1949

Cândida – de Bernard Shaw (tradução de Menotti del Picchia)

1947

Se Eu Quisesse – de Paul Geraldy e Sptzer (tradução de Celso Kelly)

Mocinha – de Joracy Camargo

A Carta – de Somerst Maughan (tradução de Brício de Abreu)

1949

Tu És Meu – de Bockay (adaptação de Luiz Iglézias e Irmãos Galhardo)

Os Gregos Eram Assim – de Luiz Iglézias

Não Brinques com o Amor

Lili do 47 – de Joracy Camargo

Helena – de Machado de Assis (adaptação de Gustavo Dória)

Apartamento Sem Luvas – de Joseph A. Fields e Jerome Chorodov, baseado no livro de Ruth Mckenney (tradução de Raimundo Magalhães Jr.)

1950

Maria João – de Paulo Magalhães

História de uma Casa – de Calvo Sotelo (tradução de Brício de Abreu)

Ai, Tereza – de Bekeffi (adaptação de Luiz Iglézias)

A Felicidade Vem Depois – de Dario Nicodemi (adaptação de Luiz Iglézias e Carlos Lage)

1951

Iaiá Boneca – de Ernani Fornari

Bagaço – de Joracy Camargo

1952

O Freguês da Madrugada – de Ladislau Todor (tradução de Luiz Iglézias)

Chiquinha Fubá – de Tonado (adaptação de Luiz Iglézias e Wanderley)

A Mancha – de Pedro Bloch

A Amiga da Onça – de Bekeffi e A. Stella (tradução e adaptação de Luiz Iglézias e Formaneck)

1953

Viver é Fácil – de Lazos Zilahy (adaptação de Luiz Iglézias e Formaneck)

Larga Meu Homem – de José Wanderley e Mário Lago

A Milionária – de Bernard Shaw (tradução Raimundo Magalhães Júnior)

1954

A Rainha do Ferro-Velho – de Garson Kanin (tradução de Raimundo Magalhães Júnior)

1954/1957

História Proibida – de George Manour e Armand Verhille, extraído de um conte de Decameron, de Bocacio (tradução de Miroel Silveira)

1955

Um Casal de Morte – de Rossin (tradução de Raimundo Magalhães Pinto)

Sabrina – de Samuel Taylor (tradução de Al Neto)

Fronteira – de Menotti del Picchia

1956

Vê se me Esqueces… – de Raoul de Prazy (tradução de Mário da Silva e Renato Alvim)

Anastácia – de Marcelle Maurette (tradução de Guilherme Figueiredo e Mário da Silva)

1956/1957

Lotária – de Luiz Iglézias

1957

Valsa de Aniversário

1958

Timbira – de Luiz Iglézias

En Garde – de Lili Hatvany (tradução de Luiz Iglézias

1959

Play-boy – de Luiz Iglézias

1960

Quem Conhece as Mulheres? – de Halasz Imre (tradução de Luiz Iglézias)

Amor em Hi-Fi – de Barrilet e Gredy (tradução de Mário Silva e Renato Alvim)

1964

Moral do Adultério – de Luiz Iglézias

Comédia, drama, teatro moderno

1965

As Viúvas do Machado – de Machado de Assis

1966

Senhora da Boca do Lixo – de Jorge Andrade

1967

Padre à Italiana

1968

A Celestina

1969

Olho na Amélia – de Georges Feydeau

1970

Em Família – de Oduvaldo Vianna Filho

1972

O Dia em que Raptaram o Papa – de João Bethencourt

1973

Os Efeitos dos Raios Gama nas Margaridas do Campo – de Paul Zindel

1974

Chiquinha Gonzaga – de Elza Pinho Osborne e Carlos Paiva

1976

O Rendez-Vous – de Robert Thomas

1977

Quarta-Feira sem Falta, lá em Casa – de Mario Brasini

1978

O Doente Imaginário – de Molière

1981

Essa Gente Incrível – de Neil Simon

1988

Lily, Lily – de J.P. Grédy e Pierre Barrilet

1989

Como se Tornar uma Supermãe em Dez Lições – de Paulo Fucs

Cinema

1960

Os Dois Ladrões – de Carlos Manga

1964

Pão, Amor e… Totobola – de Henrique Campos

2002

Achados e Perdidos – de Eduardo Albergaria

2003

Xuxa Abracadabra – de Moacyr Góes

2006

Meu Nome não é Johnny – de Mauro Lima

Televisão

1961

As Aventuras de Eva

1970

E Nós aonde Vamos?

1975

A Gata Comeu

1977

Locomotivas (Kiki Blanche)

1978

Te Contei? (Lola)

1979

Memórias de Amor (Agripina)

1980

Coração Alado (Hortência Alencar)

1982

Sétimo Sentido (Santinha Rivoredo)

1983

Sabor de Mel

1984

Partido Alto (Cecília)

1987

O Outro (Liúba)

1989

Top Model (Morgana)

1992

De Corpo e Alma (Carolina ´Calu` Pastore)

1993

Olho no Olho (Veridiana)

1994

 Incidente em Antares (Venusta)

1995

Malhação (Isaura)

Você Decide: episódio Agora ou Nunca

Você Decide: episódio A Dama de Ferro

1996

Você Decide: episódio A Pequena Herdeira

Anjo de Mim (Cotinha)

Quem É Você? (Augusta)

1997

Você Decide: episódio Preconceito

1998

Hilda Furacão (Loló Ventura)

Você Decide: episódio Desencontro

1999

Suave Veneno (Maria do Carmo)

2000

O Cravo e a Rosa (Josefa Lacerda de Moura)

2001

Brava Gente: episódio Os Mistérios do Sexo

2004

A Diarista: episódio Parece Mas não É

Sob Nova Direção: episódio O Casamento do Meu melhor Inimigo

2005

América (miss Jane)

2007

Amazônia: De Galvez a Chico Mendes (Branquinha)