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O que mantém o teatro vivo?

Tania Brandão

Quantas respostas existem para a pergunta? Para alguns, o palco sobrevive graças à rebeldia e à capacidade de apontar o dedo para o nariz do próprio tempo. Para outros, o segredo está no diálogo com os contemporâneos, construído por seu alegado poder para ler as almas ao redor.

Já os seres objetivos, seguem direto para uma visão capaz de incendiar polêmicas: não hesitam em afirmar que a vida do teatro nasce do dinheiro, das capital. Sem capital, não dá nem para ter uma tábua, que dirá as duas da tradição; e, sem tábuas, nenhuma paixão se alçaria aos olhos do mundo…

O debate pode ser qualificado como esforço ingênuo, nesta altura da história do mundo. Pois, afinal, o teatro nosso de cada dia existe como fato de mercado, cercado por tramas legais capitalistas bem claras. Portanto, para acontecer, como acontece em qualquer atividade produtiva, o ponto de partida seria o capital. Vale começar a tentar debater o problema espinhoso.

Então, vamos, ao ponto, se assim é, uma constatação se impõe: como o capital se constitui na prática da produção do teatro? Da bilheteria? O que significa a bilheteria, uma forma sofisticada de chapéu? Ou o capital vem da sociedade em geral?

Para responder, parece fundamental definir a função do teatro na sociedade. Na história do ocidente, a arte da cena se afirmou como uma forma vital de estruturação da sensibilidade coletiva. Desde as primeiras vivências escolares, a arte acontece, se impõe, atua a favor do desenho maior da expressão e da sensibilidade do cidadão. A partir da prática do teatro, as pessoas se tornam melhores.

Em decorrência desta realidade, o teatro se transforma, nas sociedades que o cultivam, em instituição – ele funciona como uma espécie de templo social, um lugar de encontro relevante para a comunidade. O debate, no caso brasileiro, começa a engasgar a partir daí.

Apesar da coqueluche teatral do século XIX, que sacudiu o mundo, apesar do país ter contado, na maior parte do século, com um governante definido como culto, não foi constituída uma politica cultural de Estado capaz de elevar o teatro (e outras práticas de arte) ao papel de instituição. O palco, bem como a cultura em geral, sobreviveu como atividade claudicante vinculada a públicos muito recortados, as famosas bolhas sociais brasileiras.

A condição deficiente tornou problemática a constituição de um capital estável para a atividade. O imperador, pressionado, liberava extrações de loteria (o vício do jogo, sim, se consolidou aqui como instituição social). A oferta podia favorecer um teatro ou uma personalidade, em estado de carência forte. A ideia de socorro emergencial – através de verbas, editais, subsídios – existe, portanto, desde então.

Apesar dos revezes, a dedicação da classe teatral à arte determinou o estabelecimento de uma estrutura produtiva, em especial no Rio de Janeiro, dotada de um mínimo de estabilidade. Uma atividade econômica em estado permanente de oscilação.

Talvez se deva falar numa estrutura a título precário, capaz de erigir ídolos e aclamar eventos, sem consolidar a prática social da arte. Diz-se, por exemplo, que Procópio Ferreira (1898-1979) acumulou e dilapidou três fortunas ao longo da vida, enquanto artistas característicos de seu tempo, coadjuvantes de alta qualidade artística, recorreram ao Retiro dos Artistas para não morrer de fome.

A impressão que se tem diante do panorama histórico é a de que existiu um processo capitalista fragmentário, incipiente, até o século XX. A partir da década de 1960, este chão entrou em colapso. Na realidade, tudo indica que o estrangulamento teria sido gerado nos anos 1950, no interior da guinada desenvolvimentista, e teria eclodido a partir de 1961. O ano, historicamente, assinala o início da Campanha Vá ao teatro – um apelo desesperado da classe ao poder desencadeou a formulação da campanha, de ingressos subsidiados.

Aqui está um esboço rápido, singelo, do tema, um convite para pesquisas e debates. O assunto surgiu agora não apenas gerado pelo estado de crise permanente vivido pelo teatro nacional, mas a partir da leitura, por acaso, de um programa de sala de 1963, de uma das montagens históricas brasileiras mais monumentais vistas por aqui. A encenação de Um bonde chamado desejo, de Tennessee   Williams, pela companhia Teatro Maria Fernanda, direção Flavio Rangel.

Logo na primeira contracapa do programa, há um anúncio curioso a respeito da construção do Teatro da Praia. Segundo algumas notas dos jornais da época, um dos entusiastas do projeto foi Paschoal Carlos Magno, que chegou a oferecer jantar em sua residência aos incorporadores.

O caso merece um estudo detalhado, a história do teatro ainda não foi escrita, dá uma ótima pesquisa. De imediato, o que se pode destacar parece algo de extrema importância – a existência de um dialogo – ou a tentativa de um diálogo – entre a classe teatral e a sociedade.

Observe-se por exemplo que, para viabilizar a fundação do Teatro dos Sete, um pouco antes, os seus promotores de maior projeção social, Fernanda Montenegro, Sergio Britto, Fernando Torres, Italo Rossi, iniciaram uma campanha  junto ao público de teleteatro para a compra de assinaturas, quer dizer, investimento na organização do conjunto em troca de ingressos futuros.

Com certeza este tipo de campanha só pode alcançar sucesso se existe, na sociedade, uma difusão do gosto pelo teatro, como acontecia no pais, em especial no Rio e em São Paulo, na primeira metade do século XX. O dificultador é óbvio, como diria Nelson Rodrigues: no fundo, todo e qualquer ser humano adora teatro, mas não pratica a devoção, por não ter tido a chance de conhecer a arte… A proposta fracassou, morreu na praia?

Afinal, o que aconteceu com esta sociedade peculiar proposta pelos construtores do teatro? Quem eram estes homens e por que formularam uma campanha tão diferenciada ao redor da casa?

Pessoalmente, nunca tinha ouvido falar em tal projeto e até morei em frente ao teatro. Na época, ele estava em franca decadéncia e mesmo as peças infantis eram de uma fraqueza espantosa… Existe esperança para o teatro aqui, quando se olha este caso? Há o que fazer hoje, para aproximar teatro e sociedade?

Pode ser, não? Então, ações urgentes precisam ser postas em prática. De saída, o teatro necessita de projetos culturais de inserção da arte na sociedade. O município, o estado e a federação devem ser instados a promover práticas de difusão teatral nas escolas, junto a professores e estudantes. São inúmeras as peças, a cada temporada, de extrema importância para este tipo de projeto.

Uma outra ação estratégica surge nítida no velho projeto do Teatro da Praia – a promoção de cursos de divulgação e de formação básica na arte. Ainda neste campo, uma política de edição, semelhante às tradicionais cartilhas do antigo SNT, parece ser iniciativa complementar valiosa.

Há ainda a possibilidade de um interessante intercâmbio internacional.  Seria a reprodução por aqui do projeto argentino de clubes de espectadores, associações muito eficientes, dinâmicas, a favor da expansão social do teatro. Nestes clubes, em sintonia com as escolas da arte, existe uma rotina de idas ao teatro, debates, leituras, difusão de informação. De certa maneira, são vans refinadas, não apenas voltadas para as velhinhas das vans e para as noites no teatro.

Claro que o financiamento a juros baixos de construção de casas de espetáculos para grupos e companhias também teria um efeito de forte impacto econômico sobre a atividade teatral. Torna-se inusitado pensar em atividades econômicas sem domicílio. A existência de uma sede muda tudo.

O ponto nevrálgico em debate fica, então, nítido: continuar a ‘socorrer’ a atividade com injeções localizadas de recursos, prática em vigor desde o século XIX, parece ser um procedimento paliativo ou inócuo. O foco precisa ser deslocado para a estruturação do mercado, quer dizer, a constituição do capital.

Atividades de expansão do universo intelectual do teatro, oportunas ofertas de ampliação da fortuna cultural da arte, também precisam figurar como prioridades. Um exemplo simples, mas funcional?

Sonia Rodrigues, foto Fabio Rossi, divulgação.

Nesta terça, na Livraria da Travessa de Ipanema, Sonia Rodrigues e Sacha Rodrigues – filha e neto de Nelson Rodrigues (1912-1980 ), o maior dramaturgo da história do teatro carioca,  estarão lendo trechos dos livros Nelson Rodrigues Por Ele Mesmo e A Mentira, com direito a debate das obras. Também autora, Sonia Rodrigues divulgará no evento o seu livro mais recente, Freud em Madureira.

Sim, importa reconhecer um outro lado: a perspectiva da criação. E isto ainda que o ato simples de criar não consiga viabilizar a sobrevivência do teatro no jogo social. A necessidade de ser coletivo, de acontecer em permanente fluxo de troca, faz com que o teatro exista sob a obrigação de ser gregário. Ao contrário da maioria das artes, que podem acontecer e sobreviver na solidão, o teatro é desde sempre uma arte da sociedade.

No entanto, casos curiosos acontecem. A pandemia e o isolamento promoveram fatos criativos impactantes – claro, depois da criação, as obras precisaram do mercado e do compartilhamento. É o caso da última peça criada pela companhia Dos à Deux, Enquanto você voava, eu criava raízes.

Cia Dos à Deux, foto Nana Morae, divulgação.

 O conjunto franco-brasileiro dedicado ao teatro gestual apresentou o trabalho numa primeira temporada, no Teatro Oi Futuro. E esta semana a montagem retorna ao palco, no Teatro Firjan SESI Centro. Devotada a uma pesquisa de linguagem muito densa, marcada por uma corporeidade que se combina com uma forte percepção do espaço e da visualidade, a companhia representa uma referência teatral obrigatória.

 Os seus dois integrantes, André Curti e Artur Luanda Ribeiro, conquistaram, exatamente, uma situação de estabilidade para o trabalho. Deram um passo fundamental. Reformaram um velho cortiço de 1846 na Glória, transformado em sede da companhia e âncora para múltiplas atividades de criação e intercâmbio.

 Na solidão do seu abrigo, durante a pandemia, os artistas puderam se dedicar a uma imersão profunda no seu trabalho; a liberdade criativa levou à exploração de um amplo universo de sentimentos e emoções. O resultado é uma obra de tom ritualístico, de sintonia intensa com os arquétipos do teatro, atenta ao ser no espaço, sem uma dramaturgia linear.

Cia Dos à Deux, foto Nana Morae, divulgação.

A cena se move entre o onírico e a realidade, carregada de símbolos. A demanda é a entrega do público, para a fruição sem travas das sensações fundantes do presente. Há, nas declarações dos artistas, uma sinalização clara a respeito da transformação poética de seu trabalho: a partir da pressão dilacerante da crise do presente, tudo indica que a sua partitura cênica se tornou mais emancipada, menos literária, mais livre.

A crise pode, justamente, trabalhar a favor da arte para a descoberta de caminhos de crescimento. Dois planos interligados são tocados por ela – a materialidade da produção, sujeita às exigências e às necessidades do capital, meios fundamentais para o teatro acontecer na sociedade, e a força criativa da pulsão poética, razão de ser do artista.

O artista existe para criar. Ele nasceu para isto. Não importa discutir a natureza deste “dom”, a sua origem ou estrutura. Basta frequentar uma escola de arte – onde muitos estudantes, aliás, nem são artistas, mas aprendizes, muitos sequer seguem no caminho árduo da criação – para conhecer e constatar a força da pulsão da arte. O artista é um ser que comove a sociedade e deve ser aclamado por isto.

Cabe à sociedade constatar a força deste fluxo criativo e, para o seu próprio benefício, assegurar a existência do espaço social de criação. Quando se constata a existência de um caso como o do Teatro da Praia, no qual houve um movimento da sociedade e do capital a favor da prática da arte, não dá para evitar a pergunta: o que foi que aconteceu com a sociedade brasileira? O Teatro da Praia, no Posto Seis, virou templo religioso.

Em resumo, qual teria sido a nossa fratura? Por que a especulação imobiliária, ali mesmo nos anos 1960, se tornou desenfreada, predatória, destruiu muito da paisagem do Rio, instaurou uma sociedade com uma estrutura social violenta, compartimentada, repleta de guetos, e ofereceu limitadas conquistas culturais para a sociedade?

O Teatro da Praia foi um fato isolado. Nunca surgiu aqui uma política de construção e de preservação das casas de espetáculo. No mesmo período, destaque-se, várias favelas da Zona Sul estavam sendo removidas para bairros distantes da cidade. Será que esta geografia insípida, que demole teatros e bairros pobres, tem uma logica anticultural profunda? Talvez seja a hora de pensar detidamente nestes temas. E agir.

Roda de Leitura de Nelson Rodrigues:

SERVIÇO:

Sonia Rodrigues e Sacha Rodrigues e convidados.

Dia 18/10, às 19h.

Entrada Gratuita.

Livraria da Travessa

Rua Visconde de Pirajá, 572, Ipanema.

Tel: (21) 3205-9002 –

Livro: 

Sonia Rodrigues

Freud em Madureira 

Editora Batel, 150 páginas.

Sugestão de preço: R$ 59,00.

 Enquanto você voava, eu criava raízes 

FICHA TÉCNICA

Direção, dramaturgia, cenografia, coreografia e performance: André Curti e Artur Luanda Ribeiro

Música original: Federico Puppi

Iluminação: Artur Luanda Ribeiro

Cenotecnia: Jessé Natan e VRS

Assistentes de cenotecnia: Bruno Oliveira, Eduardo Martins e Rafael do Nascimento

Criação de objetos: Diirr

Criação videográfica: Laura Fragoso

Imagens: Miguel Vassy e Laura Fragoso

Figurino: Ticiana Passos

Operação de som e vídeo: Gabriel Reis

Operação de luz: Denys Lima

Contrarregragem: Iuri Wander

Preparação/criação percussiva: Chico Santana

Costura da caixa preta: Cris Benigni e Riso

Costura dos figurinos: Atelier das Meninas

Assessoria de imprensa: Paula Catunda e Catharina Rocha

Mídias sociais: Mariã Braga

Designer gráfico: Bruno Dante

Fotos: Nana Moraes e Renato Mangolin

Coordenação administrativo-financeira: Alex Nunes e Patrícia Basílio

Produção executiva: Ártemis e Alex Nunes

Direção de produção: Sérgio Saboya e Silvio Batistela – Galharufa Produções

Realização: Cia Dos à Deux

Site: www.dosadeux.com

Instagram: @ciedosadeux

Facebook: dosadeux  

  SERVIÇO: Espetáculo: Enquanto você voava, eu criava raízes. Temporada: de 21 de outubro a 06 de novembro de 2022. Local: Teatro Firjan SESI Centro (Av. Graça Aranha, 1 – Centro). Informações: (21) 2563-4163 Funcionamento Bilheteria: segunda a sexta das 12h às 19h. Sábados, domingos e feriados, duas horas antes do início do espetáculo. Dias e horários: quintas e sextas, às 19h. Sábados e domingos, às 18h. Capacidade: 338 lugares Classificação etária: 18 anos Ingressos: R$ 40 (meia) e R$ 20 (inteira) Venda de ingressos: na bilheteria do teatro, de quarta a domingo; e pela plataforma Sympla (https://bileto.sympla.com.br/event/77092).    
Cia Dos à Deux, foto Nana Morae, divulgação.