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                  O mistério do teatro ou o teatro do ministério?

A semana se anuncia animada. Apesar da persistência da pandemia, a vida tenta voltar a acontecer livre, nos seus caminhos de sempre. Voltam as peças ao vivo nos teatros, o burburinho nas ruas surpreende. No entanto, as conquistas determinadas pela força do isolamento persistem.

Quer dizer – uma nova conexão humana entrou em cartaz, permitindo as conversas, os encontros, as trocas e as apresentações de arte à distância. Agora é possível dar uma aula ou mostrar uma peça e falar com o mundo, apesar dos limites ditados pelos fusos horários e pelos idiomas… Em suma, o andamento da Terra mudou.

Hoje mesmo foi iniciado um ciclo de celebração dos 85 anos de Eugenio Barba e de sua Antropologia Teatral: Encontros sobre o Terceiro Teatro. A atividade, proposta por centros de estudos teatrais do Brasil, acontecerá em conexão com vários lugares teatrais do exterior.  Trata-se de um fato notável, de grande alcance histórico: Barba, hoje, integra o saber teatral, na verdade, integra algo inédito, que poderíamos chamar de saber teatral mundial.

E é bem isto: o mundo ferve. A ebulição do planeta, apesar de tudo, se revela admirável. Ontem mesmo, em Nova Iorque, foram aclamados os vencedores do Tony. Na nossa pequena aldeia, quem quis pôde ver a festa. Vivemos juntos, ainda que distantes.

No caso do Tony, importa prestar atenção aos números: foi a 74a. edição do prêmio. Quer dizer, estamos diante de uma iniciativa que se tornou uma instituição da vida teatral. Uma instituição que, de alguma forma, ou de várias formas, une o mundo. Sim, vale ultrapassar os pequenos preconceitos e pensar um pouco a respeito.

Por exemplo – o  grande vencedor da noite, Moulin Rouge! The Musical, com dez premiações, dá o que pensar, pois afinal o Moulin Rouge foi uma criação francesa que encantou o mundo. Até na Praça Tiradentes existiu um Moulin Rouge…, muito embora naqueles tempos não ocorresse uma simultaneidade. Não existia nem um diálogo do mundo, nem um saber do mundo.

Vale a pergunta de raiz histórica. Quais os caminhos envolvidos nesta dinâmica? A primeira pergunta lógica decorrente desta constatação daria, no mínimo, um congresso de especialistas e um belo estarrecimento apoplético para muitos conservadores. La vai: até que ponto e em que grau os franceses foram os inventores do musical? Será que a Broadway-lar-dos-musicais é um filhote de Paris? Como era tecida esta conversa anterior?

Se a Inglaterra inventou a fuligem das máquinas que flutua nos ares do mundo, a França com certeza criou a cultura enquanto sistema de produção, duas estruturas de poder antagônicas. A transformação do teatro mambembe em teatro de corte aconteceu por toda a Europa, mas em nenhum lugar ela atingiu o grau de prática institucional consolidada proclamado em Paris. E tal se deu, aliás, com toda a área da cultura francesa, o que gerou uma máquina apta para viajar pelo mundo.

Um exemplo? Apesar de nosso amplo cultivo da ignorância, aqui no Brasil, um cultivo necessário por termos sido ferrenhos praticantes da escravidão e da humilhação humana generalizada, sem dúvida os franceses firmaram suas bandeiras neste solo.

A França se tornou a pátria cultural do Brasil no século XIX – criamos uma combinação estranha: liberté, égalité, fraternité et esclavage. A constatação é fundamental, mesmo que, sob o extenso peso de nossa ignorância, por vezes se torne difícil a fixação das matrizes da vida cultural nacional. Mas o mapeamento do campo é fundamental.

Vale ir um pouco adiante. Uma das mais belas notícias do momento nas praias cariocas é, exatamente, o anúncio da reabertura do Teatro Copacabana Palace – esta talvez seja a pedra mais preciosa da coroa da princesinha do mar. Trata-se de uma marco histórico absoluto.

E não há dúvida: só se pode entender o fascínio provocado pela velha casa, a lenda erguida ao seu redor, se o olhar contemplar uma francesa irresistível, uma dama sublime que encantou o país: Madame Henriette Morineau. Ela foi, simplesmente uma das maiores musas da cena deste país.

À frente dos Artistas Unidos, uma companhia diferenciada dedicada ao teatro de qualidade, Madame marcou época. Projetou nomes, consagrou personalidades artísticas ímpares. O seu repertório era composto por uma linha média, o que se poderia chamar de “bom teatro”, nacional e internacional. Aquele bom teatro de mercado

Pode ser difícil explicar hoje, não há nada comparável na nossa prática teatral para exemplificar. Mas há o lado humano. Na sua empresa, Fernanda Montenegro e Fernando Torres iniciaram carreira. Adquiriram grande projeção nomes tais como Laura Suarez, Theresa Amayo, Adriano Reys, Maria Pompeu.

E aí, uma outra pergunta nasce deste outro fluxo de informação – se, ao norte, a influência francesa, ao lado de outros vetores,  resultou na institucionalização do teatro, e lá surgiu a Broadway, o que aconteceu aqui? Qual o mistério que explica por que a lição tão forte de Madame esvaneceu? Sumiu? Não vingou?

Ao mesmo tempo, vale apontar uma outra curiosidade importante do noticiário da semana – vale ampliar a discussão acerca da celebração da obra de Eugênio Barba, que envolve o debate a respeito do conceito de terceiro teatro e da Antropologia Teatral, exatamente o citado evento que começou nesta segunda-feira, Encontros sobre o Terceiro Teatro.

 Trata-se de uma iniciativa de excelência. Há, aí, no entanto, uma surpresa: a festa  acontece sob um foco restrito, preso a um universo delimitado de grupos.   Se o conceito de terceiro teatro se prende diretamente à questão do teatro de grupo, remonta em particular à invenção poética dos anos 1970, se a festa aponta para a comemoração de 85 anos de um grande criador, a programação do evento envolve um recorte bem pouco generoso da prática de grupo existente no país. A moldura história e o inventário do campo são tímidos.

Afinal, a rigor, o teatro que mais acontece no Brasil é o teatro de grupo. O fato gera duas grandes dificuldades – programar um evento para abordar o assunto exige a adoção de uma visão universalista, de grandes dimensões. E ao mesmo tempo está em pauta um terreno muito movediço. A realidade em si do teatro de grupo se torna um desafio para a arte, pois o teatro neste caso tende a se tornar uma ocupação diletante, juvenil, passageira – as pessoas fazem teatro até encontrarem uma profissão efetiva, pois se torna muito difícil sobreviver da arte. Em lugar de teatro estável, há um teatro flutuante.

Surpreende, então, para quem examina a programação do encontro, um fato incômodo. Coletivos de primeira importância ficaram de fora – a ausência não abrange só fortes coletivos do Rio, por sinal a praça mais prejudicada, e de São Paulo. Falta gente de todo o país na lista. Minas Gerais, um estado em que o teatro é decididamente movido por grupos, está com uma representação mais do que tímida.

Assim, há uma pergunta um tanto ácida para fazer diante  do encontro dentro destes limites, sem que se cogite empalidecer a grandiosidade do evento – a poética do Terceiro Teatro 2021 é uma poética  de exclusão? Terceiro teatro, ao fim e ao cabo, significa estar em conexão com determinadas linhas de trabalho muito específicas, pessoas, focos de poder?

Se a poética de grupo, ao contrário da linguagem do mercado e do sistema teatral, se define por ser libertária, libertadora e por proclamar a celebração da liberdade enquanto plenitude humana, a possibilidade de um fechamento não tornaria o terceiro teatro mais excludente do que o próprio mercado? Então, afinal, o que pretende o terceiro teatro?

O perigo que ronda a trama precisa ser olhado de perto. Uma estranha peculiaridade brasileira, um comportamento profundamente nosso, ao que tudo indica, ronda o tema. Este comportamento estranho – que talvez possamos nomear de “síndrome da exclusão compulsiva do outro” – provavelmente explica porque o teatro não consegue se afirmar no país como prática cultural corrente.  Nos movemos no interior de uma moldura histórica desfavorável ao pleno exercício da arte.

Quer dizer, de nada adiantou cultuarmos os franceses, importarmos as suas criações e até mesmo alguns de seus grandes criadores. De nada adiantou aclamar a grandeza artística de Madame. Pois lemos todo este acervo com lentes de uma visão de mundo de castas, profundamente hierarquizadas, justamente algo oposto à ideia de liberdade, igualdade, fraternidade.

Neste jogo, o teatro precisa acontecer como fato episódico, localizado, não pode nem deve ser uma prática universal. Vive como uma ocupação de nichos. O palco deve sobreviver como ritual de iniciados, quase uma espécie de sociedade secreta. A cultura vira moda, epiderme social descartável.

Naturalmente, o mercado teatral desponta, nesta visão, como algo abominável: pois o mercado, no fundo, dá acesso universal aos bens, desde que se pague. E no entanto o mercado põe a cultura em circulação geral, ainda que ela se torne produto: lá, ela fica disponível para todos e, nos grandes teatros, para muitos. Demonizar o mercado significa, então, privar os “não iniciados” do acesso aos bens culturais. Significa fazer cultura nos castelos, nos átrios de uma nobreza iniciada nas práticas conventuais.

Mesmo uma proposta irreverente, demolidora, como a ideia de Antonio Abujamra de organizar uma trupe de fodidos privilegiados – portanto gente devota ao teatro, mas decidida a conseguir viver de bilheteria – pode ser uma proposta indigesta. Ela fica atravessada na sacristia.

O que surpreende na programação dos Encontros é, portanto, a ausência da riqueza de nomes. Vários grupos, alguns dotados de uma interface forte de diálogo com o mercado, outros bem experimentais, não constam da programação. Um rápido inventário pode apontar os coletivos Armazém, Atores de Laura, Cia dos Atores, Amok Teatro, Companhia Dos à Deux, Grupo XIX de Teatro, Grupo Tapa, Grupo Ponto de Partida, Grupo Bagaceira, Grupo Clowns de Shakespeare, Studio Stanislavski… a lista pode se tornar bem longa.

A surpresa nasce justamente do fato de que Eugenio Barba, antropologia teatral e terceiro teatro se tornaram parte do saber teatral de hoje. Ele conta tanto para a formação de atores, como para a estruturação de grupos, passando pelo alfabeto do palco atual.

Destacar este limite da proposta não é diminuí-la, mas exercer o pensamento crítico para jogar o foco sobre o abismo que envolve o teatro no país. Este abismo torna o teatro e a sua gente um continente frágil, posto que dividido, estruturado em ilhas, mas voltado radicalmente para si, como se fossem freiras de uma congregação de estrutura hierática devotadas às suas rezas. Então, só na aparência o continente se irmana sob o rótulo de classe teatral.

Com certeza o terceiro-mundismo, com o seu elenco devastador de miséria e a sua estrutura binária de pensamento, arrasta cada pessoa para uma guerra pessoal desesperada por afirmação de si e sobrevivência. Contudo, no campo da arte, notadamente numa arte coletiva como o teatro, a percepção desta miséria social imposta é um ponto de partida fundamental. É o único meio para buscar a sua superação.

Mais do que qualquer arte, o teatro é produção social e advoga a harmonia universal. Para a sua plenitude, ele precisa ser coletividade. Por isto, precisa ser multiplicidade, variedade, diferença, ao fim e ao cabo, reconhecimento do outro. A rigor, trata-se da verdadeira condição de sobrevivência da arte – a chave para que a arte não aconteça como um mistério de iniciados, e se torne, antes, um outro ministério. Daí a importância decisiva dos encontros do terceiro teatro: há uma esperança ao redor da cena. Ela integra todos os verbetes de uma antropologia teatral do nosso tempo.

FOTO 1: A Poltrona 47. Teatro Copacabana, 1951. Com Jardel-Filho, Armando Braga, Armando Rosas, Beyla Genauer e Henriette Morineau, fotógrafo não identificado.

Odin Teatret, Foto Fiora Bemporad.

Terceiro Teatro e a Antropologia Teatral – Encontros sobre o Terceiro Teatro

FICHA TÉCNICA

Coordenação geral: Ricardo Gomes (UFOP)

Coordenação e curadoria: Ricardo Gomes (UFOP), Gilberto Icle (UFRGS, UnB), Fernando Mencarelli (UFMG)

Produção: Multicultural Produções Artísticas

Programação visual: Éden Peretta

Assessoria de comunicação: Bremmer Bramma e Fredda Amorim

Tradução: Patrick Campbell, Maria Duarte, Priscilla Duarte, Ricardo Gomes, Douglas Oliveira, Adriana La Selva

PROGRAMAÇÃO

1ª SEMANA – SETEMBRO: TERCEIRO TEATRO

SEGUNDA – 27/9

9h – ABERTURA: Renata Guerra de Sá Cota (Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação – UFOP) e Alex Beigui de Paiva Cavalcante (Coordenador do Programa de pós-graduação de Artes Cênicas – UFOP)

Coordenadores do evento: Ricardo Gomes (UFOP), Gilberto Icle (UFRGS e UnB), Fernando Mencarelli (UFMG)

9h30 – CONFERÊNCIAS: Eugenio Barba

(Odin Teatret – Dinamarca)

O teatro é política com outros meios*

Mediação: Ricardo Gomes (UFOP)

* A palestra será em português

14h – RODAS DE CONVERSA COM GRUPOS DE TEATRO:

1987: 1o encontro do Brasil com a Antropologia Teatral

Carlos Simioni (Lume Teatro – SP)

Caterina Scotti e Tiziana Barbiero (Teatro Tascabile di Bergamo – Itália)

Daniela Regnoli, Nathali Mentha e Pino Di Buduo (Teatro Potlach – Itália)

Mediação: Júlio Adrião, Ricardo Gomes

Tradução: Priscilla Duarte

TERÇA – 28/9

9h30 – CONFERÊNCIAS

Mirella Schino (Università degli Studi Roma Tre – Itália)

O Terceiro Teatro na Itália

Mediação: Ricardo Gomes (UFOP)

Tradução: Priscilla Duarte

14h – RODAS DE CONVERSA COM GRUPOS DE TEATRO: Grupo Galpão (Belo Horizonte – MG) E Grupo Teatral Moitará (Rio de Janeiro – RJ)

Mediação: Gilberto Icle (UFRGS e UnB)

QUARTA – 29/9

9h30 – CONFERÊNCIAS: André Carreira

(UDESC – Florianópolis – SC)

O Teatro de Grupo no Brasil

Mediação: Paulo Maciel (UFOP)

14h – RODAS DE CONVERSA COM GRUPOS DE TEATRO: Grupo Teatro Andante (Belo Horizonte – MG) e Usina do Trabalho do Ator (Porto Alegre – RS)

Mediação: Tânia Farias (Ói Nóis Aqui Traveiz)

QUINTA – 30/9

9h30 – CONFERÊNCIAS: Tatiana Chemi

(Aalborg Universitet – Dinamarca)

A criatividade nos grupos de teatro

Mediação: Tatiana Cardoso (UERGS)

Tradução : Maria Duarte ou Adriana La Selva

14h – RODAS DE CONVERSA COM GRUPOS DE TEATRO: Piollin Grupo de Teatro (João Pessoa – PB) e Lume Teatro (Campinas – SP)

Mediação: José Tonezzi (UFPB)

SEXTA – 1/1

9h30 – CONFERÊNCIAS: Marco De Marinis (Università degli Studi di Bologna – Itália)

Barba e a invenção do Terceiro Teatro

Mediação: Priscilla Duarte

Tradução: Ricardo Gomes

14h – RODAS DE CONVERSA COM GRUPOS DE TEATRO: Mundu Rodá (São Paulo – SP) e Oposto Teatro Laboratório (Presidente Prudente – SP)

Mediação: Narciso Teles (UFU)

SERVIÇO

Terceiro Teatro e a Antropologia Teatral Encontros sobre o Terceiro Teatro

  • primeira semana: 27, 28, 29, 30 de setembro e 01 de outubro;
  • segunda semana: 25, 26, 27, 28, 29 de outubro;
  • terceira semana: 22, 23, 24, 25 e 26 de novembro.

Evento online gratuito no canal do YouTube “Terceiro Teatro 21”.