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A rampa em caracol enovelava a sensibilidade. Uma vertigem leve nascia no percurso, sugeria a passagem para um outro mundo, acolá e aqui mesmo. Logo um aroma inconfundível de livros novos completava a transmutação – de seres comuns, passava-se para a condição de seres-em-letras. A descoberta, a um só tempo sensorial e intelectual, nascia da Leonardo da Vinci, durante décadas a melhor livraria da cidade do Rio de Janeiro.

Lembro do primeiro dia, da primeira vez, como se fosse o nascimento de um amor juvenil, que se tornou eterno. Eu já conhecia algumas livrarias da cidade, frequentava assiduamente a Civilização Brasileira, na Rua Sete de Setembro, e vasculhava os sebos do Centro com desenvoltura. Eu era jovem, entrara cedo para a faculdade, adorava livros e, de traça de bibliotecas, me promovi a garimpeira de livrarias.

Amei a Livraria Francesa, no prédio da Maison de France, foi  amor à primeira vista. Mas era um corredorzinho tímido, ocupado por uma gente antipática, capaz de reduzir a estada na loja a um mero tilintar de moedas. Quer dizer, um amor de desilusão, sofrido, puro desencanto. Na Civilização Brasileira, a recepção era de outra ordem: dava para se perder na exploração das estantes e prateleiras, vasculhar livros escondidos nas filas duplas e testemunhar com  olhos arregalados as aventuras inacreditáveis do livreiro belga esfuziante. Mas era uma livraria de textos nacionais e naqueles tempos as edições locais sofriam de uma timidez mortal.

De repente, na Leonardo da Vinci, o mundo estava diante dos olhos, numa curiosa assembleia de letras. Para quem estudava História e flertava com Arte e Filosofia, era de virar a cabeça. Todos os autores, todos os editores, todas as lombadas desejadas apareciam ao alcance da mão. Se por acaso não figurassem nas prateleiras, a encomenda acenava com ares de promessa rápida, ao menos para a lonjura tropical.

Logo nas primeiras visitas descobri um vendedor – Sérgio Dortas, não sei por onde andará – apaixonado pela casa e íntimo dos títulos mais cobiçados por jovens estudantes. Diante do êxtase provocado por tantos volumes, uma tentação cara para bolsos estudantis, logo a novidade: abrir uma conta. Era o ano de 1970, eu estava dentro da livraria-mito do mundo intelectual em que desejava ingressar, o fato foi revolucionário – me tornei a feliz beneficiada da conta 101.

O ato solene marcou o início de uma paixão para sempre. A identificação com a livraria fez com que ela se tornasse uma espécie de segunda casa na minha vida. Ou mais.  Adorava ficar por lá, logo fui conhecendo muitos dos frequentadores mais fiéis, um rol ampliado ao longo do tempo: Manuel Motta, Manuel Maurício de Albuquerque, Severino Cabral, Drummond, Costa Lima, Roberto Machado, uma enxurrada de professores, intelectuais, advogados retumbantes, pesquisadores aflitos, amigos estudantes, raros políticos discutíveis. A Leonardo da Vinci era o lar intelectual de todos.

No centro de tudo, D. Vanna. Alegre, espirituosa, inteligente, corajosa, dona de um senso de humor imbatível, profunda conhecedora do mundo dos livros, perspicaz analista do mercado livreiro, ela irradiava uma energia intelectual límpida, arrebatadora. Conseguia ser objetiva, pragmática, e sonhadora. A própria forma de arrumação da livraria provocava êxtase em quem gostava de livros e, até involuntariamente, consagrava a sua imagem. Atrás de sua mesa de trabalho, como se fosse um altar requintado, numa parede-estante de prateleiras repletas, ficavam os preciosos exemplares da Pléiade, grossos volumes em papel Bíblia encadernados para a vida eterna. Mais tarde ela se deslocou para uma outra mesa – a da foto – na sala dois.

Ao redor e por toda a parte – a livraria oscilou de tamanho ao longo de sua história e chegou a contar com cinco salas, quatro interligadas – paredes forradas de livros. Apesar da excelência da seleta francesa, eram livros de todas as partes do mundo, de todos os temas, de todos os formatos, sugerindo um labirinto borgiano no qual se perder era a suprema delícia.

A minha primeira compra, uma relíquia pessoal guardada até hoje, foi a Histoire Universelle, da Pléiade. Para o meu orçamento estudantil, o preço rondava a estratosfera. Consegui comprar os três volumes graças à conta. E me tornei frequentadora assídua, como se a livraria fizesse parte da minha rotina, do meu cotidiano. Estudante, simplesmente eu gostava de ficar por lá. Convivia com sábios, poetas, intelectuais, mas sempre reservadamente, segundo um código rígido: nenhum frequentador podia perturbar a devoção do companheiro de culto.

A belíssima parede-altar de livros sagrados na verdade funcionava como uma divisória, atrás dela havia uma sala reservada. Nela podíamos examinar – e comprar – obras especiais, depois de ultrapassar uma inacreditável porta-cortina de contas de vidro. Eram os livros proibidos: todo o pensamento contemporâneo mais avançado, todos os grandes clássicos da esquerda, todos os livros-denúncia ou mesmo os mais fortes livros panfletários do momento ficavam por lá, apesar de expostos também numa mesa-vitrine do salão principal. Tempos sombrios, tramas corajosas.

Assim comprei a minha edição francesa de O Capital, alguns títulos preciosos de Lênin, o essencial manual popular de introdução ao marxismo que todos da minha geração lemos – Los Conceptos Elementales del  Materialismo Historico, de Marta Hanecker. E podíamos evitar sermos surpreendidos folheando os textos: não faltaram nunca patrulhas fascistas contra a livraria.

D. Vanna importava tudo o que considerava significativo para a vida intelectual de uma grande cidade, uma grande capital, sem censura ou travas mentais. Para ela, o acesso ao conhecimento era uma lei humana fundamental. E ela lidava com as vertentes políticas e de pensamento com uma inteligência aguda: ela não fazia proselitismo qualquer, o seu partido era o partido do saber humano, muito embora fosse de esquerda e olhasse o mundo sob um cálculo humanista libertário.

Lembro do meu fascínio juvenil com o maoísmo. Comprei na livraria o livro-panfleto La Moitié du Ciel, de Claudie Broyelle, de 1975. Li o volume de um mergulho só. Ao comentar animada com D. Vanna aquilo que eu pretendia ver como as conquistas exemplares da sociedade chinesa, ela me olhou de forma penetrante, totalmente cética, e, cortante, sentenciou algo inesquecível.

A seu ver, disse, talvez não fosse adequado falar em libertação humana numa sociedade na qual todos deviam usar o mesmo terninho e vegetar sob individualidades altamente contidas, vigiadas. Eu, que acabara de sair de uma adolescência rebelde, de rock e jovem guarda, de guerra aos uniformes, nunca superei o argumento. Na fala simples, nitroglicerina existencial pura. Contudo, no ambiente da livraria, em que trabalharam funcionários tratados como familiares, como Jorge Chaves, e os próprios filhos de D. Vanna, Milena e Florin, o tom soava como um carinho intelectual esperto…

D. Vanna e Milena, fase final da história da livraria.

Mas não era só isto.  A Leonardo da Vinci da D. Vanna era muito mais: lá estudei literatura francesa e literatura mundial, filosofia, artes plásticas, livros-arte, dicionários, música, Rio de Janeiro e Brasil, além de história e teatro, campos em que me especializei. Lá, pousados nas prateleiras ou dependurados do teto, conheci ninhos de passarinhos de uma engenharia surpreendente. Tomei café com rum. Brindei o fim do ano com panetones que eu adorava levar para festejar a livraria. Comprei irresistiveis bolos ingleses de frutas com uísque, cds raros, velas de cera de um artesanato requintado…

Não existiu no país nunca nenhuma outra livraria comparável, nem mesmo a nobre Livraria Argumento, também uma livraria de livreiro, mas mais especializada. Nem sequer a sua sombra pode ser comparada ao monumento paulista chamado Livraria Cultura, sempre impessoal demais, comercial demais, fria demais. E nem em sonho a Leonardo foi ombreada pela excelente Livraria da Travessa, um emaranhado comercial em que não se vê nem o dedo nem o cérebro de um livreiro. A questão soa objetiva, portanto: a Leonardo da Vinci foi a maior livraria brasileira, obra de uma livreira sensacional.

O maior exemplo? A grandeza da Leonardo da Vinci se torna muito palpável quando se pensa no incêndio que a destruiu em  1973. Queriam acabar com a casa, a exemplar residência da cultura no país, logo ali quando ela completara 21 anos. Promoveram um incêndio criminoso, responsável pela morte de um funcionário; provocaram um trauma violento na vida intelectual do país que os amantes da livraria trataram de superar.

A reação aconteceu à altura da paixão dos devotos. Quem tinha conta tratou de pagar a dívida arredondando para mais, para o valor mais alto que pudesse suportar, e, logo a seguir, renovou o laço: reabriu a mesma conta com um saldo futuro, a favor, a ser retirado em livros. Quem tinha móveis e estantes disponíveis, cedeu. E à frente de tudo estava D. Vanna, à cavaleiro do movimento solidário e sábia o bastante para captar apoios de peso. Para tormento das mentes obscuras, o templo encantado retornou. E ficou mais forte ainda.

Sem dúvida a história da Leonardo da Vinci precisa ser escrita e tomará páginas e páginas. Ela importa para o conhecimento da história do país. Não há uma alma sonante para a cultura brasileira na segunda metade do século XX e no primeiro quartel do século XXI que não tenha uma dívida pessoal direta, imensa, em letras de livros, com a casa. 

No meu caso, a relação foi sempre muito profunda por uma razão acidental – nascemos, a livraria e eu, na mesma data, 15 de abril de 1952, data afirmada por convenção como data de aniversário de Leonardo da Vinci. Por isto, confesso: me senti desde o primeiro dia em que entrei na loja filha de D. Vanna. Uma filha em letras, um bocado autista, muito reservada, voltada ao convívio espiritual.  Agora, fiquei órfã. A dor que eu sinto é uma dor sentimental imensa.

O meu pacto com a livraria beirava o absurdo. Não foram poucas as vezes em que que me aborreci com pessoas próximas que roubavam livros da casa. Com frequência algum freguês se dirigia a mim, no meio das estantes, como se eu fosse funcionária. Várias vezes briguei por D. Vanna, sem que ela nem mesmo soubesse. Ouvia constrangida os ataques aos preços em moeda-livro vigente na loja; o partido dos reclamões vociferava contra o valor de câmbio estipulado em moeda nacional para as diferentes moedas de outrora, dólar, libra, franco, lira, escudo, pesetas… Consideravam os valores exorbitantes.

Raciocinavam como se os livros viessem até as estantes no colo de tapetes voadores mágicos, gratuitos, e, uma vez pousados nas prateleiras, contassem com liquidez imediata. Eles olhavam apenas o próprio desejo de ter livros bons e  baratos, sem considerar o custo imenso envolvido na operação de oferecer toda aquela riqueza ali. Sequer consideravam o que era ter vários caixotes detidos na alfândega por censura política. Este raciocínio levou, inclusive, à abertura de negócios concorrentes – mas nenhum deles conquistou a grandeza de oferta de títulos da Leonardo da Vinci, nem chegou a oferecer uma enxurrada de obras valiosas a preços baixos.

Agora D. Vanna faleceu. Seguiu para o céu dos livreiros – não é o céu dos vendedores de livros não, é o céu dos amantes dos livros. Um céu entre revoadas de páginas, povoado por letras etéreas, um céu de puras ideias e argumentação livre, que nem Platão cogitou existir – é o lugar transcendental adequado à trajetória dela, resultado de uma perfeita operação lógica.

Depois de escrever a mais bela história livreira do país, há alguns anos ela vendera a casa, difícil de ser mantida em sua grandeza e no seu conceito original nos tempos fugazes que envolveram o Rio, o mundo dos livros e o mundo dos homens. Talvez um novo conceito de livraria esteja sendo orquestrado, quem sabe uma cidade do Rio de Janeiro muito diversa de tudo o que se viveu até aqui esteja surgindo.

Uma certeza, contudo, ela nos deixa: a luta pela cultura  desencadeia uma correnteza de força humana que não pode ser contida, não se extingue jamais. Ela construiu uma obra única, rara, pois não existem figuras comparáveis a ela no nosso mundo livreiro. Uma obra de profundo efeito renovador, decisiva para as mulheres, pois não existe uma mulher sequer na cultura brasileira comparável a ela,  com a mesma densidade revolucionária.

Ela ensinou a lição primeira mais valiosa e absoluta, o culto à liberdade de pensamento, através do direito universal, pleno, ao saber. Por isto, Vanna Piraccini não morrerá jamais: enquanto existir uma letra, uma página, um pensamento ou uma mulher pensante, ela estará entre nós, com aquele olhar penetrante e aquele sorriso inteligente, de quem sabe que a luta verdadeira, obrigatória, é a luta pelo saber. Esta era a magia que exalava da Leonardo da Vinci, ali no fim da rampa em caracol – lá aprendíamos apenas a entender a natureza profunda da vida.