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Paixão, e aí, como vai você?

Suponho que você seja uma pessoa apaixonada – bom, todas as pessoas que gostam de teatro, não escapam, são apaixonadas.  Neste caso, tudo o que é humano lhe atrai. Pois o palco é a mais requintada forma de invenção da humanidade e quem gosta de teatro, portanto, sofre com este sentimento intenso, a paixão pela humanidade.

No fundo, trata-se de uma escravidão severa, o desejo de tentar entender ou, no mínimo, a obrigação de sempre tentar perguntar o que é a vida humana. Vive-se num labirinto, um labirinto sem fim. A cada peça que acaba, o ciclo recomeça, a cena passa, permanece acesa a paixão.

O mote atiça a retórica dos inimigos – claro, toda e qualquer arte conta com inimigos, personagens que, sem perceber, tornam ainda maior a paixão nossa de cada dia. Para eles, não existe justificativa para gostar de teatro, uma arte que desaparece, não cuida de si. Seria, para eles, uma forma de gostar do vazio. E eles nem imaginam a força daquele sentimento secreto que domina a classe teatral, o sabor intenso de amor diante do palco vazio. Sim, a paixão pelo teatro é a paixão pelo vazio: a pergunta feita a cada passo, não tem resposta, ficará ecoando sem fim.

Então, o mistério – o que faz um artista velho como a democracia grega continuar a apaixonar? Se as peças partem, por que algumas voltam? Ou melhor, ficam? O que existia num velho texto perdido para que o seu texto, velho, se tornasse magnético e a tal ponto que a humanidade, entra era, sai era, não consegue se livrar dele?

Claude Simonin, O verdadeiro retrato de Molière no figurino de Sganarelle, cerca de 1660. Água forte. Unicum. BnF, Estampes et photographies.

Em 2022 boa parte do mundo organizou festejos para comemorar os 400 anos de nascimento de Molière. Jean-Baptiste Poquelin  viveu pouco, morreu em 1673, mas viveu o suficiente para deixar a humanidade intrigada com a sua arte. Para os amantes de teatro, governados pela paixão, parece ser absolutamente natural cultuar Molière. Para os inimigos, soa bizarro querer conviver com um cadáver literário do século XVII.

Dizem as más línguas que foi preciso recorrer a múltiplos artifícios, ao longo do tempo, para manter o culto ao comediógrafo. É a fala dos inimigos. No entanto, o comentário traduz uma coisa apenas: a mais completa má vontade com o teatro. Basta ler – sim, apenas ler – alguns dos textos de Molière para situar claramente os traços encantadores do gênio. Tudo bem, ofício da paixão. Será?

Na verdade, dá para ir mais adiante. Na França, fizeram uma prova deliciosa para atestar a imortalidade de sua obra.  Um trio de autores concebeu e publicou um atlas dedicado a Molière – isto mesmo, um livro parecido com aqueles manuais escolares coloridos pensados para traduzir o mundo em dados, números e imagens. São 268 páginas esmiuçando a obra do dramaturgo. E mais: justamente para sintonizar Molière e os anseios do presente, os autores,  Clara Dealberto, Jules Grandin e Christophe Schuwey  aplicaram o teste de Bechdel às peças. Quer saber o que é o teste de Bechdel?

Alison Bechdel, norte-americana autora de desenhos animados, criou o teste para avaliar a presença feminina nas obras de ficção – filmes, romances, peças de teatro. Três perguntas precisam ser respondidas a partir da leitura das obras examinadas: a primeira, é se existem ao menos duas mulheres dotadas de nome no texto, a segunda é se elas conversam entre si e a terceira, bem direta, é se elas falam de outra coisa que não seja de um homem.

Quando as três perguntas recebem respostas afirmativas, a obra passa no teste. Pois os autores do Atlas submeteram ao teste trinta obras de Molière;  apenas sete passaram, lote que não inclui Les femmes savantes (tradução As sabichonas, de Jenny Klabin Segall). Para quem viveu há tanto tempo, o resultado não parece tão mal.

Para trabalhar com este e outros tantos mistérios que fundamentam a imortalidade da obra de Molière, bem como a sua transformação em grande símbolo da cultura francesa, a Bibliothèque Nationale de France inaugurou este mês uma exposição – Molière, le jeu du vrai et du faux. A partir da reunião de um conjunto notável de documentos, vestígios materiais diversos e obras de arte, pretende-se registrar a força questionadora de seus textos. O grande destaque da exposição tem endereço certo: mostrar a sua insistência em indagar a respeito do verdadeiro e do falso, das camadas opressoras do jogo social. Afinal, um caminho para insinuar os traços definidores da natureza humana.

Para quem for a Paris até janeiro, vale conferir, é uma chance irresistível para mergulhar no universo do autor. Uma outra exposição aborda um tema muito importante para debates teatrais atuais – a relação entre Molière e a música. Há uma infinidade de documentos e registros à disposição, para fazer a alegria dos apaixonados.

E mais: as duas mostras apontam atitudes incontornáveis, que importam para a preservação da memória e dos valores de um país, a partir da guarda e da preservação de acervos. Não dá para estudar a cultura de um país sem que os registros históricos das vidas e das realidades envolvidas sejam cuidados. Os acervos precisam estar ao alcance do futuro.

A Salle Ovale, BnF, site Richelieu, após a restauração, © Jean-Christophe Ballot / BnF / Oppic
 

De quebra, a exposição Molière, le jeu du vrai et du faux acontece na reinauguração de mais um edifício da Bibliothèque,  o edifício Richelieu, no Centro, inteiramente recuperado após doze anos de trabalhos de restauração. A demora garantiu uma combinação peculiar, a restauração de uma construção antiga nos seus valores maiores, adaptada às necessidades do presente e às funções de museu moderno.

O que se pode concluir destes fatos e raciocínios? Claro, não adianta espernear – uma nacionalidade se faz a partir de valores comuns, se possível, universais, quer dizer, reconhecidos por todos os cidadãos. Tais valores, gerais, possuem sempre uma carga de repressão, dificilmente traduzem os valores de todos os grupos específicos reunidos. O confronto interno ditará a identidade dominante e o espaço de expressão para a manifestação dos “vencidos” e do plural.

Nas democracias modernas, os valores precisam ter um alcance, digamos, dialógico. A nação acontece sempre segundo um jogo duplo: a coesão e a identidade dos “nacionais” e o reconhecimento destes pelos “estrangeiros”. Logicamente, os estrangeiros podem ser de natureza vária. Podem ser hermanos, podem ser familiares, contemporâneos ou estrangeiros autênticos.

No caso do teatro brasileiro, sim, a paixão dos nativos acontece no vazio, como sempre acontece a paixão teatral, porém em estado de abismo. Abismo vertiginoso. Vivemos num precipício, em queda cega. Não conseguimos instituir até hoje o nosso panteão cênico, o rol de personalidades patronas (ou matronas, claro!) que abençoam a nossa sensibilidade teatral. Não temos estabilidade para a pesquisa, não temos garantias de preservação dos nossos acervos, nem espaço para a apreciação de relíquias e memórias da cena. O Museu dos Teatros, dono de excelente acervo, sumiu, ninguém sabe, ninguém viu.

Museu dos Teatros, Botafogo, RJ.

A fragilidade fica evidente no nosso calendário em branco, sem comemorações cívico-teatrais.  Devíamos ter o dia do Caetano (o João, não o Veloso…), o do Procópio, o da Estela, o do Fróes, o da D. Eva, o da Bibi, Marília… Isto sem falar em Martins Pena, Artur Azevedo, Chiquinha Gonzaga, Jorge Andrade… Este panteão deveria conversar com o panteão dos estrangeiros familiares: há uma dívida imensa do nosso palco com os portugueses, os franceses, os italianos. Onde eles estão?

O pior quadro, todavia, nasce ao olharmos a nossa distância em relação aos estrangeiros hermanos. Nascemos e crescemos de costas para a América Hispânica, de frente para o Atlântico, olhos ofuscados pelo sol buscando a Europa, ignorantes da trama histórico-cultural profunda que estrutura a Península Ibérica. Afinal, no nosso tempo de colonos, chegamos a ser espanhóis, ou súditos de Espanha. E a distância nos trai, trabalha contra nós. Os países de fala hispânica possuem uma fortuna teatral de imenso impacto e ela pouco circula por aqui. Esta é uma urgência brasileira absoluta.

Para flertar com alguma coisa deste tesouro, chegará ao Rio o espetáculo Do outro lado do mar, diretamente da Bahia para o Teatro Poeirinha. O texto da salvadorenha Jorgelina Cerritos marca a estreia da escritora no palco brasileiro, sob a direção do veterano Marcio Meirelles, um dos maiores nomes da direção teatral brasileira contemporânea. Só por isto, a montagem se torna programa obrigatório. Mas ela tem muito mais qualidades a favor…

Jorgelina Cerritos, foto de divulgação.

De saída, a encenação oferece uma lista alentada de outros fatos para comemorar – além da bela oportunidade para descobrirmos a cena da América Central, temos um texto de autoria feminina premiado pela Casa de las Américas (2010) e a celebração dos 50 anos de carreira de Marcio Meirelles. Quer dizer, uma festa teatral em grande estilo.

A festa possui uma dimensão extraordinária, muito superior à pura e simples materialidade da cena, graças à temática do  texto, a um só tempo poética e de uma densidade política arrasadora. A trama registra um cartório à beira mar, uma repartição burocrática especializada na transformação de pessoas em registros, números, papéis. Não se trata, contudo, de uma situação absurda, mas de um processo dominante no nosso tempo e, com certeza, muito latino-americano, de esgarçamento da vida. Ou de liquidação sumária do humano.

A funcionária burocrática é uma senhora, Dorotea, uma pessoa ela própria marcada pela aproximação do descarte, por causa da velhice.  A contracena acontece com um jovem que, simplesmente, não é, não existe – ele não dispõe de documentos pessoais, nunca foi registrado, é ninguém, situação de um número considerável de cidadãos-fantasmas do Brasil. Formados pelo Teatro Vila Velha, de Salvador, os atores Andrea Elia e Edu Coutinho atestam a profunda energia histórica da escola baiana de interpretação.

A cena lida com esta tensão lancinante – a potencial liquidação humana diante de um mundo de papéis e números, novo formato para a manutenção de um velho processo histórico, a anulação humana das massas, o apagamento em vida das pessoas, transformadas em coisas ou máquinas de produzir. A partir de pequenos trechos de vídeos, disponíveis on line, o espectador pode dimensionar a grandeza do que verá em cena – um espaço concebido sob extremo rigor poético, no qual a cenografia, a luz, as projeções e o jogo dos atores acontecem para buscar a contemplação daquilo que pode ser mais profundamente humano.

Foto de cena, divulgação. João Milet Meirelles.

Marcio Meirelles é um encenador, no rigor da definição da palavra. Porém, ele é um encenador em que a leitura do texto serve como norte, luz inspiradora, e não como oportunidade para o delírio vaidoso pessoal. A sua cena surge direta, cortante, poética e, neste caso, por ironia, nasce do mar, como uma Vênus reinventada. E vai muito longe na sua contundência. Espaço de pergunta, espaço de poesia, espaço de  paixão, a cena pulsa uma forma de fazer teatro de importância estratégica para o teatro brasileiro.

A produção conta com a assinatura de dois coletivos de peso histórico, a Companhia Teatro dos Novos e o Toró Teatro. A convicção de que o teatro deve existir como trabalho de grupo funciona como força motora nos dois conjuntos. Este debate hoje, sob mais uma época de profunda crise na cena brasileira, não tem sido valorizado o bastante. E talvez exista aí uma pauta urgente, envolvendo um assunto explosivo, a estruturação do mercado.

De toda forma, a montagem pode alcançar um efeito estratégico: costurar um pouco alguns retalhos da nossa alma teatral dilacerada do presente, invadida por problemas e instabilidades por todos os lados, mais sacudida do que jangada em temporal. Contemplar uma cena tão deliberadamente poética pode ser um alento, oferecer o efeito de um bálsamo. Sim, pode ser a chance de mergulho num mar novo, regenerador. Ou aquele momento de respiração livre e profunda, propício para revigorar a velha e boa paixão de sempre. Não temam, os deuses, devotos do que é humano, sempre salvam o teatro. E, fiéis à inteligência do que é eterno, nos deixam livres para viver nos braços da nossa paixão…

Atlas Molière. Les Arènes. French Edition  by Clara Dealberto, Jules Grandin, Christophe Schuwey. 

EXPOSIÇAO:

Anúncio das exposições na págima da BnF.

DO OUTRO LADO DO MAR

SERVIÇO:

Crédito das Fotos: João Milet Meirelles

Temporada: 06 a 30 de outubro

Quando: 5ª a Domingo

Horários: Quinta a sábado às 20h, Domingo às 19h

Local: Teatro Poeirinha

Endereço: Rua São João Batista, 104 – Botafogo – Rio de Janeiro

Informações: (21) 2537-8053

Ingressos: R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia)

Classificação Indicativa: 12 anos

Link para compra de ingressos: www.teatropoeira.com.br

Duração: 60 minutos

Teaser do espetáculo:

https://youtu.be/LsBalAKiGvg%20

Para saber mais sobre a cena:

https://www.youtube.com/watch?v=HA78P-HhV2Q

Para conhecer mais a autora:

https://www.sympla.com.br/bate-papo-com-a-autora-jorgelina-cerritos-el-salvador—do-outro-lado-do-mar__1231638

FICHA TÉCNICA:

Texto: JORGELINA CERRITOS

Tradução: EDU COUTINHO (colaboração MARCIO MEIRELLES)

Revisão da tradução: RITA ROCHA

Elenco: ANDRÉA ELIA e  EDU COUTINHO

Cenário, figurino, desenho de luz e encenação: MARCIO MEIRELLES

Assistência de direção: CAIO TERRA . CLARA TROCOLI

Colaboração no desenho de luz: MARCOS DEDE

Música: CAIO TERRA, RAMON GONÇALVES

Tema da sereia: TATO TABORDA

Trilha sonora ao vivo: RAMON GONÇALVES

Produção audiovisual: RAFAEL GRILO

Operação de vídeo: RAFAEL GRILO . PATRÍCIA OLIVEIRA

Operação de luz: BRUNO ARAGÃO

Arte gráfica:  RAMON GONÇALVES

Direção de produção:  EDU COUTINHO

Coordenação de produção:  PATRÍCIA OLIVEIRA

Assistência de produção: JORGE ALVES

Produção executiva:  LUCAS NOGUEIRA

Assessoria de imprensa:  MARROM GLACÊ ASSESSORIA

Apoio:  

LA BELLE, NOVA DUPLA, VEGAN VEGAN, LA VILLA RESTAURANTE E BAR, LA FIORENTINA, ALFA BAR, BOTECO BELMONTE, FRONTERA, AÇAÍ DA LILI, XIMENINHO, CANTINA DONANNA, CASA DO SARDO, BARTHODOMEU.

Realização:  TORÓ TEATRO . COMPANHIA TEATRO DOS NOVOS . TEATRO VILA VELHA