Você: pequeno pedaço do nada?
Quando você olha para o céu, o que você vê? Uma sugestão acachapante do infinito? Ou a indicação de uma calota de cristal – enorme, é claro – eficiente prisão etérea da vida?
A resposta diz muito a seu respeito. Não importa nem um pouco se você tem escolaridade, se mergulhou de cabeça nas ideias de Kepler, Copérnico, Galileu. A pergunta não deseja saber as respostas do seu eu intelectual, mas, antes, indagar a respeito de sua vontade de presença no mundo.
Pense um pouco: se Ícaro sonhasse com o infinito, teria sido fascinado pelo sol e desabado no mar…? E você, em que mar você se abriga? Para onde a sua fascinação leva a sua vida, para encantos reluzentes, mas enganadores? Ou nem isto, e você tem levado os dias sempre na escravidão do mesmo cotidiano cinza, nas rotinas inescapáveis?
Parece divagação de maluco-beleza, mas o teatro lida com isto – perceba você ou não, queira você ou não, a sua alma passeia no infinito diante do palco, quebra a calota de cristal. Este estranho exercício de liberdade acontece naturalmente, seja diante do teatro de papel crepom, seja diante de uma enxurrada de letras clássicas, seja diante de estripulias experimentais de aparência gratuita. O teatro é sempre um convite irresistível à livre delícia de ser.
Por causa desta constatação, a classe teatral devia insistir em permanecer unida, ciente da força universal de sua arte. A demonização de setores da arte e a insistência em desqualificar o teatro a ou b, atitudes deprimentes que volta e meia pipocam na categoria, deveriam ser ocupações do poder. Teatro, sob todas as suas formas, é sempre transgressão.
O debate do tema tem extrema importância para a saúde da vida em sociedade. Também soa estratégico para a projeção histórica do próprio teatro. Na cena teatral, algumas situações absurdas merecem destaque, por seu alcance didático. Uns bons exemplos?
Em primeiro lugar, vale citar o teatro musical. Muita gente da classe ainda hoje considera o musical como uma forma inferior ou desprezível – o que é uma aberração. Vale lembrar que o teatro brechtiano, com parcerias preciosas entre Brecht e Kurt Weill, transpira muita coisa da história do musical, definitivamente um gênero sério do palco alemão.
Contudo, há mais problemas. Um velho esquerdismo muito esquemático insistia (tomara que se possa manter o verbo no passado) em desqualificar a dramaturgia norte-americana. Autores de impacto, os grandes autores do drama americano do século XX, Eugene O’Neill (1888-1953), Thornton Wilder (1897-1975), Clifford Odets (1908-1963), William Saroyan (1908-1981), Tennessee Williams (1911-1983), William Inge (1913-1973), Arthur Miller (1915-2005), Edward Albee (1928-2016), um conjunto de tirar o fôlego, teriam produzido uma obra “escapista”, mero desfile de mágoas pequeno-burguesas.
O julgamento é esquemático, coisa de manual ou catecismo. O raciocínio implícito parece mais do que discutível – supõe uma unicidade das obras e, afinal, uma instrumentalização do ser humano em contraposição absoluta com a ideia da vida mais profunda, vigente no seio da espécie e no miolo mesmo do palco: a ideia da liberdade plena de ser. Dela nasce a multiplicidade, a necessidade de contar com lentes “caleidoscópicas” para buscar a inteligência que fundamenta a aventura humana.
O pensamento surge forte diante da montagem de Três Mulheres Altas, de Edward Albee, novo cartaz do Teatro Copacabana Palace. O programa é imperdível. De saída, a proposta é chocante por ser teatro em estado puro – reúne um texto clássico do nosso tempo, uma equipe de autênticos amantes da arte, num edifício precioso por sua história e por sua qualidade técnica. Portanto, o saldo é claro: vá ver e tenha uma noite de prazer absoluto. Não é todo o dia que se pode ter um regozijo tão pleno.
O original, contundente, importa para todos os que acreditam na necessidade de pensar a vida: aparentemente, o tema se prende ao universo existencial das mulheres, aos embates em família e à corrosão imposta a tudo pelo tempo. Porém, não se engane: tais assuntos estão lá, mas eles traduzem apenas a fina lâmina da superfície das falas. Basta olhar um pouco mais adiante para constatar a presença de um chamado desconcertante: a dilacerante – e humorada – necessidade de se perguntar a respeito do sentido mais profundo da vida.
A engenharia do texto chega a ser diabólica na sua densidade. O ponto de partida é uma singela indicação realista. São três atrizes que representam três mulheres de idades diferentes, são três mulheres altas, como se pudessem ver um pouco mais do mundo, ainda que a sua visão não as faça ter qualquer lucidez. A qualidade física, ironicamente, faz com que se sintam superiores, e, a um só tempo, denuncia a sua menoridade interior. Cascalhos existenciais sem nome, o autor usou as letras A, B e C para nomeá-las, elas foram tecidas com habilidade bastante para que possam se tornar apenas uma ou, afinal, desnudar o ato de viver mais cego. Sim… o ato de viver no qual não há qualquer vislumbre do infinito que a existência humana pode vir a ser.
A direção de Fernando Philbert parte de uma visão particularmente feliz do texto. Em lugar de um espaço realista, cotidiano, reconhecível como um nicho familiar, que se confunde com uma visão do doméstico, o diretor propôs um esboço de realidade, um espaço de enclausuramento magnificamente desenhado no cenário de Natália Lana. O palco flerta com a hipótese de um quarto luxuoso e, no entanto, é um espaço etéreo como a calota do céu, em flutuação. Uma bolha-nuvem de cortinas entre o cinza e o gelo, matizada com delicados feixes de luz, transporta a imaginação da plateia para uma espécie de lugar do ser.
A luz, de Vilmar Olos, alcança uma dimensão sublime, pois funciona como um dispositivo poético capaz de sublinhar tons e humores, mas, sobretudo, garante à encenação a possibilidade de contemplar as pequenas vidas da cena em estado de suspensão.
A trama tem aparência simples: uma mulher com mais de noventa anos, submetida aos achaques de saúde comuns na idade, dialoga com uma mulher ao redor dos cinquenta, uma espécie de cuidadora, e com uma jovem no viço dos vinte e seis anos, encarregada de administrar os bens da idosa, já incapaz de mover com destreza os dados objetivos do mundo real, que cultivou com ardor. De certa forma, as três figuras funcionam como dispositivos dramáticos, pretextos para expor, com humor ácido, a futilidade da vida dos muito ricos. O desenho dos figurinos, de Tiago Ribeiro, distante de qualquer traço realista, contribui de forma decidida para fixar esta concepção.
A intensidade das falas, derivada de um fluxo implacável, recebeu um tratamento exemplar do diretor, muito embora algumas marcações, voltadas para o fundo da cena, pareçam dispersivas. As atrizes assumiram, em geral, o desafio brutal de materializar um jogo vertiginoso, com o conflito assumindo formas surpreendentes, como se fossem estilhaços de vidro cortante.
Suely Franco se entrega ao abismo de flutuar em névoas diante da própria vida com notável desenvoltura. Nathalia Dill figura a perfeita perplexidade jovem, volátil criatura alheia ao peso do tempo e do mundo, com um brilhantismo comovedor. A noite, contudo, é de Deborah Evelyn, a mulher madura, puro retesamento de nervos, dilaceramento vital, questionamento profundo da falência de si – uma atuação capaz de romper a falsa calota do céu, interrogar os vazios existenciais, desnudar as insanidades triviais.
Diante de um trabalho desta grandeza, o que se pode dizer? Algo simples e direto, na verdade. Apenas: vá ao teatro. Nem pense, por um minuto sequer, que esta encenação passa longe dos seus maiores dilemas de vida, aqueles que você não compartilha nunca, se limita a enfrentar sozinho, quando olha para o céu.
A cena dos grandes autores, montada com categoria nos palcos de qualidade, ainda é um bálsamo poético para a recuperação tônica das almas. Diante dela, você vai viajar pelo infinito, sem a maldição de Ícaro. E vai voltar mais livre para a sua prisão cotidiana, mais apaziguado nos conflitos inexplicáveis que dilaceram o fundo da alma de todos os seres – e, graças a uma discreta sugestão poética, abrigará no seu coração a insinuação luminosa de que a vida, sob o manto celeste, quando se torna ato de inteligência, ah, vale a pena viver.
TRÊS MULHERES ALTAS
FICHA
TECNICA:
De Edward Albee
Direção: Fernando Philbert
Com Suely Franco, Deborah Evelyn e Nathalia Dill
Tradução:
Gustavo Pinheiro
Direção de produção: Bruna Dornellas e Wesley Telles
Participação especial: João Sena
Desenho
De Luz: Vilmar Olos
Cenografia: Natália Lana
Trilha Sonora: Maíra Freitas
Figurino e Visagismo: Tiago Ribeiro
Assistência de Direção: Felipe Lima e João Sena
Produtor Executivo: Felipe Lima
Fotos:
Pino Gomes
Criação da Arte: Nós Comunicação
Vídeos: Chamon Audiovisual
Assistente de interpretação: Gutenberg Rocha
Cenógrafa assistente: Marieta Spada
Assistente de cenografia: Malu Guimarães
Cenotécnico: André Salles e equipe
Costura de cenário: Nice Tramontin
Produção de arte: Natália Lana
Efeitos especiais: Mona Magalhães / Carlos Alberto Nunes
Costura: Ateliê das Meninas
Beleza: Cinthia Rocha
Peruqueira: Raquel Reis
Assistentes
de beleza: Deborah Zisman e Blackjess
Operação Técnica de luz: Thayssa Carvalho
Operação Técnica de som: Bernardo Aragão
Diretor de palco: Helder Bezerra
Camareira: Silvia Regina.
Midias
sociais: Thiago Barrack
Segurança do Trabalho: Global Risk Solutions
Coordenação Administrativa: Letícia Napole.
Gestão
de Projetos: Deivid Andrade
Assessoria Jurídica: PMBM Advocacia.
Assessoria Contábil: Leucimar Martins.
Assessoria de Mídia: R+Marketing.
Assessoria de Comunicação: Pedro Neves.
Apresentado
Por: Ministério do Turismo e Bradesco Seguros
Patrocínio: Renner
Produtor associado: WB Entretenimento
Realização: WB Produções.
SERVIÇO:
De
26 de agosto a 23 de outubro*
Quintas, sextas e sábados, às 19h30 horas. Domingos, às 18h.
*não teremos apresentações nos dias 03 de setembro, 17 de setembro, 29 e 30 de setembro e 01 e 02 de outubro.
As sessões de domingo vão contar com intérprete de libras.
Teatro
Copacabana Palace
Av. Nossa
Senhora de Copacabana, 261 – Copacabana- Rio de Janeiro
Tel.: (21) 2548-7070
Ingressos a R$ 120,00 e R$ 60,00 (plateia)
R$ 50,00 e R$ 25,00 (balcão)
Compras via internet:
Vendas na bilheteria do Teatro: 2 horas antes de cada sessão – Quinta a domingo.
Acesso ao Balcão apenas por escada
Pessoas com mobilidade reduzida: Acesso apenas à plateia
Gênero:
Comédia Dramática
Classificação Indicativa:12 anos
Duração: 100 minutos