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         Pátria do atraso ou chão do moderno?

A resposta precisa ser rápida, de estalo. Quer dizer, no estilo moderno, direto. A expressão de estalo foi uma das fórmulas queridinhas dos modernos. Sim,  pátria do atraso ou chão do moderno? A pergunta é capciosa, como diriam os antigos. Pede para o questionado definir rápido o Brasil.

Não seria eu a melhor pessoa para responder – passei a vida inteira cercada pela certeza monolítica do atraso nacional, pontilhado aqui e ali por laivos modernos. Gosto de brincar, quando dou aulas, que vi o país passar das carrocinhas de lixo puxadas por burros para a avalanche de plástico. Um longo caminho. Vi das chanchadas, nos cinemas-poeira, aos delírios de Gerald Thomas, em salas experimentais.

No entanto, o dado mais importante é a geografia das transformações. Apesar da internet e da revolução na tecnologia, o grande sucesso nacional na área da dramaturgia brasileira ainda é a novela de televisão. E a novela de televisão segue, embora de forma disfarçada e de longe, a estrutura do velho teatro de sala de visitas, filho dileto do século XIX. Como assim?

Nas artes, no caso do teatro, a lição moderna se perdeu, não incorporamos ao nosso universo a sua imensa cartilha. Já a vanguarda e a experimentação, estas são um caso à parte. Elas têm cadeira cativa, mas naturalmente absorvem um número tão pequeno de pessoas que, se o panorama for o cenário do vasto Brasil, elas se tornam invisíveis.

Então, vale sempre e sempre perguntar a respeito do moderno no país. Se na esfera econômica e social ele tardou a ser implantado e aconteceu de forma fraturada, assimétrica, com o arado humano de madeira ao lado do potente trator, nas artes a sua ressonância precisa ser avaliada. Afinal, devíamos estar nos preparando para o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. E o que temos para comemorar?

Na cena teatral, o debate envolve, primeiro, a chance de localizar um “moderno tardio”. É correta, esta expressão? Se as vanguardas modernas europeias, as primeiras rupturas com a poética do “teatro antigo”, do primeiro ator, aconteceram na virada do século XIX para o século XX, quando situar a proposta brasileira equivalente?

Sim, pois mantivemos, na produção da arte, um diálogo constante com a cena europeia. Não adianta advogar um rompimento ou um outro olhar, quando a formação dos artistas e as suas práticas eram inspiradas diretamente pela cena europeia. Falar em decolonização ou em buscar situar uma outra perspetiva será sempre ignorar as forças protagonistas da cena.

No caso brasileiro, a literatura histórica consolidou uma visão em que se diagnostica a aparição tardia do moderno na cena nacional. Atenção: este campo é ainda um território de pura polêmica. Vale insistir que muitas lacunas marcam os estudos do período, além das discussões que o termo tardio aciona.

A visão mais conservadora, tradicional, fixou em 1943 – a estreia de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues – a eclosão do teatro moderno no palco do país. Na cena, estavam unidos um dramaturgo revolucionário e um “diretor”, o polonês Ziembinski, responsável por uma assinatura poética para a cena.

Ele, por sinal, também teria provocado furor na luz, em diálogo com o cenário de Santa Rosa, um espaço poético livre de referências convencionais de espaço-tempo. Aliás, o nome de Santa Rosa merece ter extrema centralidade nestes debates.

Contudo, esta versão tradicional precisa ser discutida e posta sob suspeita. Em primeiro lugar, o grupo Os Comediantes era um conjunto amador, os seus integrantes não viviam de teatro. Até mesmo Santa Rosa: era funcionário público.

Consequentemente, o teatro profissional não tomou conhecimento da façanha. O debate proposto não ecoou no mercado. A cena teatral brasileira não se alterou com o espetáculo, que sequer viveu de bilheteria a curta vida cênica percorrida.

Além disso, Ziembinski não foi o primeiro nome a assinar uma direção de espetáculo no país. Antes dele, em 1938, a atriz Itália Fausta assinara a direção de Romeu e Julieta, de Shakespeare, estreia do Teatro do Estudante do Brasil.

O conjunto foi criado por Paschoal Carlos Magno com a intenção deliberada de mudar a cena teatral brasileira. O que ele pensou foi algo contundente: fazer nascer uma nova classe teatral, quer dizer, atores renovados oriundos da classe estudantil, distantes do ramerrão antigo.

O projeto alcançou imenso sucesso. A Julieta encantadora criada por Sonia Oiticica de imediato se tornou atriz profissional. Por todo o país surgiram teatros do estudante. Itália Fausta passou a dirigir, ainda que sua veia maior fosse a atuação, e provavelmente ela foi a grande mentora do italiano Ruggero Jacobbi.

Também a respeito de Ziembinski ainda não temos uma visão clara. Se o livro pesquisa editado por Yan Michalski dá força ao mito que o próprio Zimba se esforçou para sedimentar em vida, um outro enfoque radical surgiu na pesquisa e tese de doutorado de Fausto Fuser, que implodiu o herói.

Para este pesquisador, Ziembinski foi apenas um artista mediano, regular, na cena polonesa, antes de ser forçado a fugir com a invasão nazista. Atuava numa linha de repertório comercial sem grandes ambições. Não tinha nada do grande criador que o Brasil insistiu em celebrar.

Outros pontos ampliam a polêmica ao redor do seu perfil. Ele não era judeu, mas era homossexual, um bom motivo para fugir da invasão alemã. No entanto, algumas névoas pesadas envolvem a sua identidade política.

Um velho amigo polonês nazista – Samborski, grafia provável, segundo a maioria das fontes – recebeu abrigo aqui graças à sua generosidade, fato não esclarecido até hoje na sua biografia. O fugitivo era criminoso de guerra. A denúncia pública foi feita por Luiza Barreto Leite.

E tem mais controvérsia. Alguns autores inclinados a localizar o moderno na pura dramaturgia (o que parece ser um enorme contrassenso), refutam também a data de 1943, acenando com os textos de Oswald de Andrade, dos anos 1930, ainda que eles não tenham sido encenados. Resultado: há muita pergunta por responder.

Importa estudar, pesquisar e debater. Afinal, apesar dos esforços de autores consagrados, tais como Oduvaldo Vianna (o pai) ou Joracy Camargo, incansáveis batalhadores da cena, o teatro brasileiro nos anos 1930 estava submerso em profunda crise. Ele alcançava sucessos isolados, mas não se tornara um hábito na vida da sociedade.

Para alguns, a difusão acelerada do cinema acabara com a vida do teatro; Oduvaldo Vianna procurou dialogar com a nova arte, fez cinema e inseriu em Amor soluções cinematográficas. Joracy Camargo apostou em temas de escândalo, sua escolha evidente em Deus lhe Pague, sucesso estrondoso de Procópio Ferreira. Feitos isolados perdidos num deserto.

O certo a observar nestes casos é que, quem diria, a força moderna do cinema pressionou o palco, favoreceu a implantação de novos ritmos, cortes, desenhos de cena, cálculos dramáticos. Mas os números nas bilheterias não se mantinham convidativos. Após alguns surtos de coqueluche teatral no século XIX, o palco não se tornara amigo íntimo do brasileiro.

Uma razão histórica possível para explicar o fato pode ser debatida: o brasileiro não se tornou cidadão pleno, não se tornou uma figura social atuante e expressiva. Com um acesso muito limitado ao poder, proforma, já que o controle do poder e da política, bem como o poder de mando, sempre estiveram com as oligarquias ou com as forças armadas, o brasileiro nunca se mobilizou para se reconhecer como expressão social cidadã.

Numa sociedade de escolaridade difusa, com a escola rigidamente estruturada para manter as dinâmicas de poder, impregnada por paradigmas religiosos retrógrados, a prática do teatro nunca se tornou uma forma social de arte. Banido das escolas, mambembe nas cenas, o palco sobreviveu sempre como uma frágil atividade de um pobre mercado.

E, no entanto, vários problemas sociais da atualidade poderiam ser “tratados” na enfermaria do teatro. Dá para elaborar uma lista interminável de remédios-poções-teatrais para os males do país, considerando-se a necessidade urgente de combatê-los. Veja-se, adiante, um primeiro esboço… uma proposta de tratamento moderno!

Afinal, o moderno é um tema importante desta semana, marcada por uma expansão do retorno do teatro ao vivo, presencial. Por todo o planeta as plateias se animam e as bilheterias ressoam. De certa forma, o moderno levou à consolidação do mercado de arte, induziu a criação de um sólido sistema de arte que, hoje, percorre o mundo.

Assim, um dos temas obrigatórios da atualidade para o debate é o moderno, tentar pensar o que este lugar da arte significa para a história humana. Ao seu lado, se projeta a linguagem do cinema, com um imenso rol de desafios. Unindo teatro e cinema, há uma novidade imperdível.

Está disponível nos cinemas o documentário Zimba, de Joel Pizzini, que traz alguns dados biográficos novos sobre o diretor, ainda que se volte totalmente para a celebração do mito. Apesar de muitas passagens sem a identificação objetiva das obras, em especial no teatro polonês, o valor deste registro é imenso para o palco nacional.

A pesquisa feita para o filme foi de grande fôlego, reuniu materiais muito importantes, ao lado de depoimentos bastante reveladores da personalidade do criador. Desponta até mesmo aquela velha polêmica a respeito de uma não comprovada influência de Zimba sobre o texto de Nelson Rodrigues… Enfim, controvérsias à parte, várias joias da cena estão reunidas: para quem gosta de teatro, não dá para perder.

Há também uma outra novidade, deliciosa na sua formulação, o teatro-filme Alethea Dreams, com estreia prevista para o dia 9 de outubro, em transmissão online. A partir da peça homônima de Rafael Souza-Ribeiro, a proposta ousou criar uma solução poética em que o teatro, o chão da produção, conduz o processo de filmagem.

As diversas cenas foram filmadas num palco nu e muito real, assumidamente real, como sugeriu Lars Von Trier em Dog Ville. Para reforçar a interpretação realista, a direção de ator foi entregue a Miwa Yanagizawa.

A ação aborda um impasse central do indivíduo no nosso tempo, a crise de identidade. A trama acompanha o percurso de uma bem sucedida empresária às voltas com uma crise existencial. Na tentativa de resolvê-la, ela aceita participar de um procedimento novo, para revolucionar a sua vida. Sob o foco, está a estrutura e a identidade do sujeito no nosso tempo.

Discutir o moderno, portanto, nos obriga a necessariamente enveredar por temas clássicos da história do teatro – a estruturação do sujeito, a relação entre dramaturgia e definição de caracteres, a fricção entre o ser/personagem e os caminhos do mundo. No espaço social vivido por um ser humano que se tornou independente e/ou que se quer autônomo, o teatro oferece um abrigo libertador para as almas: o conhecimento de si.

RECEITA DE TEATRO PARA CURAR AS DOENÇAS SOCIAIS BRASILEIRAS GRAVES:

Para reconhecer a pequenez humana: Édipo Rei, de Sófocles.

Para ver até onde podem ir as pequenas tramas de poder: Mandrágora, de Maquiavel.

Para perceber os males da ambição política desmedida: Macbeth, de Shakespeare.

Para ver os efeitos das pequenas brigas cidadãs: Romeu e Julieta, de Shakespeare.

Para debater a falência das velhas famílias: O Jardim das Cerejeiras, de Tchekhov

Para pensar a desumanização radical dos trabalhadores: Almas Mortas, de Gogol.

Para dimensionar a opressão doméstica feminina: Casa de Bonecas, de Ibsen.

Para dimensionar os velhos podres poderes: Solness, o Construtor, de Ibsen

Para dimensionar o poder devastador da mentira (fake news!); O Pato Selvagem, de Ibsen.

Para entender a destruição da natureza: O Inimigo do Povo, de Ibsen.

Para pensar a história da justiça no Brasil: O Juiz de Paz na Roça, de Martins Pena.

Para entender a história das eleições no Brasil: Como se Fazia um Deputado, de França Júnior.

Para rir da miséria histórica do teatro brasileiro: Mambembe, Artur Azevedo.

Para vislumbrar o peso dos preconceitos no Brasil: O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues.

Para pensar a relação entre História, Indivíduo e Cidadão no Brasil: Jorge Andrade.

Para entender a miséria humana urbana no Brasil: Dois Perdidos numa Noite Suja, de Plinio Marcos.

ZIMBA
Ficha Técnica:

Direção: Joel Pizzini

Distribuição: Bretz Filmes

Produção: Leminiscata Filmes

Coprodução: Globo Filmes/Globo News, Canal Brasil, Studio Filmowe Kalejdoskop

Roteiro: Joel Pizzini, Henry Grazinoli e Reinaldo Mesquita

Coordenação de Produção: Vera Haddad, Urszula Groska

Montagem: Idê Lacreta

Direção de Fotografia: Luís Abramo

Produção Executiva: Vera Haddad, Marina Couto, Clarice Laus

Trilha Sonora Original: Lívio Tragtemberg

Edição de Som e Mixagem: Ricardo Reis, Miriam Biderman

Serviço:

Estreia: 30 de setembro de 2021.

Local: diversas salas de cinema  

Classificação: Livre

Produção: Brasil, 2021

Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=p59FWpxcAn

ALETHEA DREAMS

Ficha técnica
Texto: Rafael Souza-Ribeiro
Direção e fotografia: Jorge Nassarala
Direção de atores: Miwa Yanagizawa
Elenco: Francine Flach, Henrique Manoel Pinho, Luciana Malavasi, Monique Franco e Sabrina Faerstein
Assistência de direção: Giovanna Padilla
Direção de arte: Claudio Nascimento
Preparação de elenco: Miwa Yanagizawa e Pedro Yudi
Figurino: Tiago Ribeiro
Beleza: Cora Marinho
Cabelo: Josi Rodrigues
Maquiagem: Raquel Rodrigues
Imagens: Jorge Nassarala e Miguel Zisman
Assistente de câmera: Diego Maiques
Edição e sonorização: Bruna Baitelli
Correção de cor: Daniel Cunha
Captação de áudio: Bruno Bussani
Audiodescrição: Nara Monteiro
Produção executiva: André Beck, Francine Flach, Luciana Malavasi e Monique Franco
Assistente de produção: Reinaldo Patricio
Prestação de contas: Alex Nunes
Assessoria de imprensa: Ney Motta
Design Gráfico: Francine Flach
Fotografia: Janderson Pires
Patrocínio: Instituto CCR  –  www.institutoccr.com.br
Realização: Secretaria Especial da Cultura, Ministério do Turismo e Governo Federal
Idealização: Fantasia Produções e Atto Marketing
Serviço
Estreia: 09 de outubro de 2021, sábado, às 20h, com transmissão pela web.
Canal de acesso à transmissão: youtube.com/artefranco
Temporada: Após a estreia, o espetáculo estará disponível On Demand, 24 horas por dia, todos os dias da semana, até 31 de outubro.
Acessibilidade: Haverá uma versão do teatro-filme “Alethea Dreams” com audiodescrição para pessoas com deficiência visual, intelectual, dislexia e idosos.
Ingressos: Grátis
Classificação: 12 anos
Duração: 60 minutos
Debates públicos: Nos dias 14, 21 e 28 de outubro, às 20h, serão realizadas apresentações especiais seguidas de debates mediados por mulheres influenciadoras, a respeito da temática da obra, com acesso gratuito pelo canal youtube.com/artefranco