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         Oplá, lá vem a revolução…!

Gente, atenção, a hora exata é agora, para começar uma revolução. Podemos batizar de forma direta: a Revolução Carioca. Ou melhor, Revolução Teatral Carioca. Sim, uma revolução teatral varrendo a cidade, de sul a oeste, como um daqueles ventos rebeldes, um trepidante sudoeste que atrapalha a praia. De onde saiu esta ideia?

O motivo óbvio é o afundamento do Rio de Janeiro. Um fato evidente, da ordem dos acontecimentos objetivos. Ou fazemos algo, ou nos afogaremos todos. E, vamos combinar, com falta de saneamento de um lado e emissário submarino do outro, o mar do litoral carioca que deverá nos acolher anda com águas pesadas, para usar um adjetivo diplomático.

Diante dos fatos, importa ter pensamentos. Uma revolução precisa de ideias, bússolas precisas para a ação. A saída é simples: buscar a inspiração francesa. Sim, para honrar a história do país. Afinal, as ideias que fizeram 1822, sim, as do bicentenário de agora, vieram da França – aquela história de liberté, egalité, fraternité.  Já na biblioteca dos inconfidentes, o texto em cartaz era este. Portanto, não há sequer  transgressão na proposta.

Para seguir o espírito da não transgressão – ou, dentro do humor carioca, da transgressão festiva – já temos líder para a luta aguerrida anunciada. Vamos aclamar como líder o prefeito, sim, Eduardo Paes. Já que ele está no poder, economizamos etapas, poupamos discussões e partimos para demandar ao edil os procedimentos urgentes, fundamentais, exigidos por nossa Revolução.

Bom, vale abrir parênteses. Importa, de saída, esclarecer a influência francesa, para evitar rachas nas hostes ou motivar sublevações de seguidores descontentes com a escolha. Na prática, dispomos de dois modelos culturais coloniais claros, o francês e o norte-americano. Sabemos muito bem que, para ativar a cena cultural carioca, não adianta recorrer ao modelo americano. Vivemos na base do adeus, Broadway.

A Broadway não nos ajuda por uma razão simples: ao longo da história, não geramos aqui capital teatral. A economia teatral carioca é fraturada, é feita de pura força produtiva, sem capital. Seguindo o rigor da definição da atividade e da dinâmica econômica, não temos empresários, no sentido de donos do capital.  Ok, interessa desenvolver este ponto, para que ninguém acene, no meio da luta, com desejos de sonhar aqui o sonho americano…

Em linhas rápidas, o teatro carioca, por algum tempo qualificado até como o teatro brasileiro (por favor, este é outro debate, pulemos a velha briga e olhemos só o Rio), tentou se estruturar a partir de grandes casas de espetáculos, ao redor de primeiros atores líderes e linhas populares de textos e encenações. O retorno de bilheteria existia, mesmo claudicante, sob um ritmo de trabalho exaustivo.

O motor da cena, então, era, em particular, os atores, mesmo que surgissem empresários aqui e ali; o capital dos empresários era a potência popular dos atores e não somas relevantes do vil metal. Os negócios eram instáveis. Este palco, em luta acirrada para existir, enfrentava grandes inimigos. O mais venenoso de todos foi, sem dúvida, o espírito beletrista de civilização e refinamento. Intelectuais refinados, de espírito elevado, consideravam urgente demolir a cena de tró-ló-ló e pernas nuas, considerada deplorável, mesmo quando desenhada e governada pelo gênio do ator Vasques (1839-1892).

O afã de sofisticação se tornou vencedor com o teatro moderno. Aí, uma grande mudança varreu a cena – em lugar dos grandes teatros com palcos à italiana e imensas plateias, surgiram as salas intimistas de poucos lugares. A demolição criminosa dos velhos edifícios teatrais privou a cidade de inúmeros palcos grandiosos, sem protestos significativos. Por sinal, quem conhece a Broadway, bem sabe do vazio teatral imenso que há no Rio. No lugar dos elencos numerosos e de múltiplas especialidades, surgiram os conjuntos de intérpretes-comediantes. Portanto, uma mudança radical: passamos a ter casas com pequenas bilheterias e elencos de “iguais” ou quase, com retiradas homogêneas e não radicalmente escalonadas.

Bom, sabemos bem. Desde o século XIX a inspiração maior seguida pelo teatro brasileiro era a francesa, tanto para o teatro de feitio popularesco como para o teatro de ideias. No teatro moderno, o modelo não mudou. Contudo, nos mantivemos seguindo as ideias francesas truncadas, dissociadas dos mecanismos essenciais para a geração da força do teatro francês.

Por lá, desde o século XVII, a atuação do Estado como financiador da cultura foi sempre decisiva. De certa maneira, apesar dos teatros de feira e dos teatros dos mercados, do teatro de Boulevard, do teatro itinerante, a força dos recursos estatais no financiamento da cultura precedeu a consolidação do mercado. Se a Inglaterra fez a Revolução Industrial, a França fez a Revolução Cultural e o Estado francês foi um sócio capitalista decisivo. Mas esta parte do modelo – digamos que essencial – nunca entrou em cartaz por aqui.

Isto quer dizer algo simples: o Estado tropical brasileiro se recusou sempre a participar no processo de estruturação do mercado cultural. O Estado não se omitiu nunca diante do mercado de bens de capital ou de produção. Construía estradas, portos, patrocinava isenções para a construção de fábricas, etc. Mas, para o teatro, conversa difícil…

No caso francês, o tema é tão denso que gerou sempre um debate monumental, tanto na sociedade como no meio cultural. A “Querela serviço público/interesses privados” está em cena no país desde o século XVIII e acabou de ganhar um alentado dossiê de estudos da Revue d’histoire du théâtre, número organizado por nomes fundamentais da cena teatral e cultural do país – Emmanuel Wallon e Robert Abirachid.

Para encurtar o foco, algumas notas objetivas sobre o caso francês devem ser levadas em consideração. A força do debate assumiu proporções consideráveis no pós-guerra, depois que Jean Vilar (1912-1971) defendeu a noção do teatro como serviço público – tão essencial como o fornecimento de água, luz, gás.  Jean Vilar foi o criador em 1947 do Festival de Avignon, vale destacar, evento que se tornou vital para o teatro do mundo.

Jean Vilar em Avignon.

Pois bem: agora, na França, os debates estão incandescentes no meio artístico por causa das eleições presidenciais. Considera-se urgente, por exemplo, esclarecer a definição de política cultural  defendida por cada político e pretendida pelos diferentes setores produtivos, inclusive diante da crise do Covid.

Quando os debates franceses são acompanhados, algumas carências cariocas básicas aparecem. Sem dúvida elas são excruciantes e precisam ser transformadas em pauta da revolução aqui. Detalhe: lá, estes itens simplesmente flutuam na paisagem, aparecem citados de forma indireta, surgem como procedimentos cotidianos acessórios, sem protagonismo qualquer…

Então, consideremos uma lista rápida de demandas, para que se possa dar partida no carro da Revolução. Coisas simples, pensadas a partir de alguns artigos da Revue d’histoire du théâtre e de debates promovidos pelo Théâtre 14, em particular no colóquio Política Cultural, organizado pela casa. Não se trata de copiar ou de se submeter a um padrão colonizado, mas, antes, de dimensionar nosso estado de carência.

Théâtre 14

Na verdade, o fundamental é, antes de tudo, tentar visualizar com clareza a sociedade que desejamos ter, a vida cultural que consideramos adequada e necessária para o nosso mundo. Evidentemente o teatro se define como uma prática do mundo ocidental e o nosso diálogo com o presente supõe a incorporação de vivências desta ordem, que não excluem as referências locais de raiz e de origem.

De saída, é urgente ampliar ao máximo a prática do teatro nas escolas e o acesso dos estudantes às peças em cartaz. O conhecimento de textos de autores clássicos, em especial clássicos do universo moderno, fornece à juventude um acervo de visões do humano de valor inestimável. Sim, a lista parte de Shakespeare, mas precisa contemplar Molière, Goldoni, Ibsen, Tchekhov, Strindberg, Jorge Andrade, Nelson Rodrigues… Nosso cidadão normal devia contar com estas luzes na alma.

Apesar de não termos censos da vida teatral carioca, o que seria uma excelente iniciativa para o pensamento e a proposição de políticas, a cidade persiste abençoada por um número considerável de grupos teatrais consolidados e de primeira grandeza poética. Armazém, Atores de Laura, PeQuod, Cia dos Atores, Nós do Morro, F… Privilegiados, Aquela Cia, Grupo Teatro da Laje, por exemplo, contam histórias decisivas da sensibilidade carioca.

Estes grupos precisam ter sedes, para expandir as suas atividades e abrigar os seus trabalhos. Ou receber apoio decisivo para a manutenção de seus espaços, especialmente sob a crise do Covid. Contudo, não deve existir barreira contra a possibilidade de artistas independentes ou de pequenos empresários isolados conquistarem a oportunidade de financiamentos não extorsivos para a construção de casas de espetáculos. Precisa ser aberta uma linha de crédito no BNDES a favor da economia criativa carioca.

Da mesma forma, nada poderia impedir, evidentemente, que tais grupos se deslocassem de suas casas para teatros públicos municipais. Estes edifícios deveriam preferencialmente funcionar como espaços públicos no fio da expressão, quer dizer, a sua ocupação deveria acontecer a partir de editais. Assim, o ideal seria que estes teatros contassem com gestores técnicos, ocupados em administrar os espaços, para garantir alto nível de equipamento e manutenção. Não deveria ser necessário, para os artistas, enfrentar uma função técnica para ganhar a vida.

Aliás, os espaços deveriam ter perfis nítidos, próprios, contar com uma identidade de arte, uma marca de trabalho que tornasse natural a fidelização do público. Parece lógico, por exemplo, manter o Espaço Sérgio Porto voltado para uma linha experimental e de invenção, assim como o Teatro Carlos Gomes deve oferecer abrigo para grandes musicais e produções de impacto, ainda que tais medidas venham a desagradar a célebre Iolanda da piada teatral, uma espectadora perita em levar as senhoras amigas para ciladas de vanguarda…

Há ainda muitos outros itens a considerar – afinal, estamos falando de uma Revolução, portanto o projeto é para sacudir o cenário, esquentar os ânimos e chamar para a ação. Por enquanto, antes do primeiro sinal, o mais importante é estimular o debate – a classe teatral precisa assumir o protagonismo efetivo de sua atividade, pois, a rigor, só conta consigo,  ainda que, com o seu trabalho, provoque a transformação da vida de toda a sociedade. O teatro ilumina a vida humana, portanto parece natural ter uma situação social de qualidade para que se possa fazer teatro.

Mas, infelizmente, para ser bem sincera, não é só isto. Até o momento, não temos nenhum sinal de um new deal, um grande sacolejo na economia pesada capaz de deter ou reverter a ruína carioca. Algo precisa ser feito e com urgência, para ontem, para a recuperação da cidade. Assim, só nos resta o teatro, só nos resta fazer uma imensa Revolução Teatral Carioca, uma reviravolta notável da cena atual, capaz de acionar um rastilho de encanto, pura luz, ao redor da imagem do Rio de Janeiro. 

Maravilhoso, o velho adjetivo pregado ao Rio, também significa “aquilo que acontece por intervenção de forças estranhas”… Já que a cultura tem sido sempre uma baita força estranha para os poderes nacionais, vamos lá, vamos fazer o prefeito desposar esta força estranha, para transformarmos nossa praia desvalida em cidade maravilhosa outra vez…

PARA LER SOBRE A QUERELA FRANCESA NA REVUE D’HISTOIRE DU THÉATRE:

https://sht.asso.fr/revue-dhistoire-du-theatre/

Trimestre 1 • 2022

Revue d’Histoire du Théâtre • Numéro 292

Service public / intérêts privés La longue querelle de la scène française, XVIIIe-XXIe siècle

PARA ACOMPANHAR OS DEBATES DO THÉATRE 14:

https://theatre14.fr/index.php/universite-populaire

PARA LER SOBRE ESTADO E TEATRO NO BRASIL:

PARA LER SOBRE A LUTA DE QUEM FAZIA TEATRO PARA RIR…

IMAGEM:  óleo de Eugène Delacroix (1789-1863), La Liberté guidant le peuple, Museu do Louvre, foto Tania Brandão.