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Perdeu, playboy

A imagem da cena é tão minimalista quanto impactante. Há uma rampa, uma imponente cortina de fundo, luzes capazes de sublinhar o essencial e todos os pequenos movimentos. Diante disto, há um homem entre o luto e o atlético, apesar de sua roupa preta de treino, pois a energia corpórea exuberante não é o que o marca. Ele é só palavra, projeto, intenção, gestos vãos, mecanismos físicos ocos, o eterno retorno. Treina para chegar ao nada. Ou não. Ele é humor inteligente: ele é Gregório Duvivier.

Pois é, não se engane: a forma da cena vai além deste arranjo objetivo de artefatos teatrais. Ela se impõe como uma espécie curiosa de monólogo-dialógico, uma forma gerada a partir da tradição brasileira de humorismo. O ator está só, fala como um personagem de teatro, mas a fala acontece como interlocução, proximidade, como se ele esperasse, a qualquer momento, uma réplica do público. Mas não é para você, espectador, falar nada. O desejo é simples e direto: cutucar a placidez da alma da plateia.

A razão central do jogo transparece desde o primeiro momento, é, digamos, a nossa universal desautoridade. Muitas vezes você pensou, convicto, que era uma espécie de deus. Por ser deus, você subiria no seu caminho sem hesitar, rumo ao paraíso, aqui na Terra mesmo. Mas o destino – ou a vida, ou o que você quiser nomear – se encarregou sempre de lhe mostrar um outro destino, o tamanho do percurso ladeira abaixo.

Humano, decaído, entregue à sua pequenez, você segue, insiste, persegue o sonho, só para sempre escorregar de novo, outra vez. Este poderia ser um resumo de Sísifo, de Gregório Duvivier e Vinicius Calderoni, um espetáculo que é fatia pulsante da vida contemporânea. Vida pensamento – mas pensamento vadio, cotidiano, modesto, aquela ideia corrente que não faz diferença, abraça qualquer um inoportuna a todo o momento. Pensamento automático, sem sentido – e o sentido até se torna uma ótima piada na cena.

Sem aborrecer, sem melodrama, num puro gozo, um redemoinho acelerado de ideias se instala no teatro. Pois se a rampa cenográfica de sobe e desce sugere a roda viva da cabeça cotidiana na vida, a via sem saída para onde o cotidiano nos leva, ela mimetiza também os truques e vídeos da internet. E mais: lá no horizonte, ela evoca a trilha escarpada, quase inviável, a ser percorrida para sair da escuridão da caverna de Platão.

Está em cena o nosso não saber universal – a dádiva de existir e pensar, mas sem saber nunca a verdade de tudo, o desconforto diante do mundo, os afetos frustrados  ou delirantes, os casos terminados em desencanto, os desencontros, os enganos da vida política, o trabalho maquinal, a nossa imensa solidão. Logo, para a demonstração lógica ficar perfeita, se chega ao nosso absurdo potencial, hoje, para destruir a vida e o mundo.

Um riso redentor e amargo nos leva a procurar abrigo na inteligência. Através de uma indicação sutil no final, a peça sugere que deve ser procurado o encontro, a percepção amorosa do outro. Talvez a panaceia proposta nos reconcilie com a nossa dimensão cortante de falha, nossa eterna incompletude. E permita, então, unir o milagre de existir com a eterna condenação a perder.

Para aumentar a sua sensação de perda – afinal, como todo ser humano, você está condenado a viver nesta falta – você está lendo a crítica de um espetáculo imperdível que saiu de cartaz. Esteve por uma curta temporada no Teatro Prudential e seguiu, marchou para São Paulo, para ir depois para Portugal. Quem sabe no verão você possa suprir esta falha: fique atento, a montagem voltará ao Rio. Não deixe de ver.

Se a sorte estiver do seu lado, você, pessoa mortal cindida, estará diante de uma cena que se pretende imortal na sua exatidão. O rigor estético mais inspirado estrutura o espetáculo. Todo o fazer do palco acontece como cálculo exato, silogismo perfeito, belo gesto.

O texto, de Vinícius Calderoni e Gregório Duvivier, foi inspirado pelo mito grego de Sísifo e pela visão do mito por Camus. O ponto incandescente da dramaturgia surge na visão da vida absurda do homem comum, tão absurda quanto a condenação dos deuses que recaiu sobre Sísifo, de rolar um rochedo inutilmente morro acima, para vê-lo retornar e retomar a escalada.

A direção, de Vinícius Calderoni, integra intensidades interpretativas, pausas e movimentação cênica numa construção estética muito bem resolvida: a beleza teatral cristalina é a sua meta. Ator e diretor são colaboradores evidentes, falam o mesmo idioma cênico, traçam um percurso de palco de extrema limpidez. Ainda assim, vale observar que muito do resultado obtido nasce da felicidade do cenário, de André Cortez, inspirador e prático, e da luz mágica de Wagner Antônio.

O figurino, de Fause Haten, um abrigo de ginástica de marca, traz um tom de ironia elegante e de humor saboroso. Ele veste um personagem em que a ação física é mais reflexo da ideia obsessiva do que da dedicação à prática. Apesar do tremendo esforço físico, trata-se de um atleta da alma ocidental, um corpo movido por cegos impulsos interiores, em boa parte inúteis, posto que desprovidos de saber ou de um querer objetivo.

Neste jogo, a dedução teatral óbvia logo emerge: a nota irresistível, afinal, surge do desempenho de Gregório Duvivier. Jovem ator cômico brilhante, espirituoso e sagaz, ele se transforma em cena, rápido, em deus da nossa noite.

Na pele do homem-herói que deseja ser deus ou se igualar aos deuses, calcado num herói da mitologia bastante polêmico por suas várias qualidades transgressoras, Gregório é um arauto luminoso. Ele nos leva a pensar na quantidade de mal que nós, pessoas comuns, na nossa forma de viver automatizada e banal, fazemos a nós próprios e ao mundo.

Ou seja: em cena, vibrante, ecoa um alerta a um só tempo divertido e rascante, inteligente, a respeito do mal que  causamos à vida. Somos os playboys do universo. Na aparência, seres inteligentes, postos que humanos, no cerne, larvas inconsequentes, pois seguimos como cérebros automatizados. Como se estivéssemos por aqui para passar o tempo, distraídos, numa rampa íngreme sem a certeza de onde ela nos levará.

Convenhamos, é um soco direto na alma. Não é um espetáculo para perder. Programe todos os sinetes do seu celular e do seu mundinho digital e, quando o escravo do Olimpo apontar no horizonte, com a sua rampa lacerante como a lâmina do tempo, não hesite, pule dentro, corra – para ver. Ou rever.

FICHA TÉCNICA

Com: Gregório Duvivier
Texto: Vinícius Calderoni e Gregório Duvivier
Direção: Vinícius Calderoni
Direção de Produção: Andréa Alves

Cenografia: André Cortez
Iluminação: Wagner Antônio
Figurino: Fause Haten
Direção musical: Mariá Portugal
Direção de movimento: Fabrício Licursi
Coordenação de produção: Leila Maria Moreno
Produção Executiva: Priscila Cardoso

Assistente de direção: Mayara Constantino
Design Gráfico: Beto Martins
Fotografia: Pedro Benevides
Assessoria de Comunicação: Factoria Comunicação

SERVIÇO

Temporada de 09 de agosto a 08 de setembro de 2019* (concluída)

Novas temporadas possíveis no futuro.

Quinta a sábado às 21h

Domingo às 19h

Teatro Prudential – Rua do Russel, 804, Glória – Rio de Janeiro/RJ

Classificação etária: 16 anos.
Duração: 60 minutos.

Informações para a Imprensa
Factoria Comunicação