Algumas letras de aparência simples nos convidam para um mergulho profundo na nossa forma humana. Com certeza esta sedução está presente nos textos de Lygia Fagundes Telles – a encenação, singela e delicada, do conto Senhor Diretor comprova a afirmação. Vale conferir a grandeza poética do trabalho, em cartaz só até hoje no Espaço Abu. Portanto, é para correr de verdade para ir ver, para não perder o privilégio deste encontro de arte.
Quem vê a pequena joia cênica fica sem opção: torce para que a singular experiência teatral encontre outro teto rapidamente e fique longo tempo em cartaz. O ideal será o encontro de casas intimistas, delicadas, com jeito de colo, semelhantes ao envolvente Espaço Abu. Quem sabe uma casa de mulheres, para consagrar na alma coletiva carioca a força expressiva liberada com esta experiência? Pois, os rapazes desculpem a louvação, mas só mulheres poderiam mergulhar tão fundo no mistério humano abordado pela peça.
Sim, vale frisar, é uma experiência teatral, antes de qualquer outro nome que se possa escolher para o fato. E com esta peculiaridade assombrosa: trata-se de uma experiência teatral feminina quase abissal nos seus termos. Importa desvendar as suas dimensões por partes.
O conto original, publicado no célebre volume Seminário dos Ratos, se estrutura como um potente monólogo interior. Contundente, a escrita de Lygia Fagundes Telles lança sobre o leitor aquele turbilhão de ideias que nos arrasta sem piedade sempre, cotidianamente, e que expõe a trama interior que nos governa. Ela retrata com primor a nossa rotineira síndrome do pensamento acelerado. Aqui e ali, surgem pequenas intervenções, em narrações tímidas, que trazem balizas estreitas de referência à realidade, o mínimo essencial para governar o fluxo.
A adaptação do conto, assinada por Silvia Monte, faz justiça à grandeza literária do texto. Discretos deslocamentos das ações descritas no conto permitem fazer a movimentação cênica fluir límpida, exatamente para ampliar o efeito da torrente de pensamentos que dá vida à sóbria Maria Emília. A direção, também de Silvia Monte, tem a felicidade de saber conferir materialidade objetiva, física, ao emaranhado de ideias torrenciais.
Professora aposentada, virgem, solitária e indefesa diante da progressão implacável do tempo, a senhora conservadora vê a transformação do mundo como algo que a afeta profundamente e que ela poderia – ou deveria – conter, assim como procurou conter o furor juvenil de suas alunas. Na sua ingênua vontade de poder, no fundo uma síndrome que assola todo o ser humano encerrado na vida social, ela divaga com a possibilidade de escrever ao Senhor Diretor do jornal, como se coubesse a ele uma parcela do tal poder que gostaria de ter diante do mundo. E não é este sentimento que faz tanta gente escrever (ou telefonar!) para as redações dos jornais?
Nas palavras e na cena, contudo, há um impulso feminino profundo, a propensão para o ato de querer organizar o mundo, como se ele fosse um ninho ou um lugar comparável à própria casa. Há também, aí, um impulso humano profundo, a vontade de contar com uma sociedade gregária, um abrigo para se proteger do imprevisto e de tudo o que é hostil, a busca da pacificação do humano selvagem remoto que habita em cada um de nós.
Neste sentido, Maria Emília desperta na plateia um denso sentimento de empatia, ainda que os seus valores maiores possam ser pedras lapidares de um mundo distante, colunas de sustentação de um jogo social que se foi. Ela pertence a uma classe social distinta, refinada mesmo, anterior ao mundo descabelado de consumo orgiástico. Um mecanismo teatral sofisticado é acionado com extrema força para a conquista deste feito: ele se chama Analu Prestes.
Sob a direção segura de Silvia Monte, a experiência teatral transcende do texto para a cena graças à cortante beleza da atuação da atriz. Não há na sua performance qualquer julgamento, qualquer crítica, qualquer acidez com relação à velha senhora. Há, antes, uma entrega sem limites, um convite ao desvendamento de um ser exposto pela vida, alguém cuja realidade passou a ser a solidão mais completa e o enfrentamento de sua própria natureza. Analu Prestes consegue nos levar a ver uma velha senhora à deriva, tão indefesa nos braços do mundo como todos nós.
Mas esta não é uma equação simples, nem um mecanismo no sentido menor da palavra – falar em mecanismo teatral importa no reconhecimento de uma arte muito particular. Analu Prestes se diferencia no cenário teatral por sua concepção peculiar do belo, uma visão do fato da cena como totalidade. Portanto, ainda por isto é necessário falar em experiência teatral – além da interpretação, Analu Prestes assinou o cenário, minimalista, e o figurino inventivo em todos os detalhes, materialização exata da essência de Maria Emília.
Enquanto a cenografia despojada expõe o cruel vazio humano ao seu redor, as cores sóbrias, a modelagem e o corte das roupas dialogam com o seu esforço interior de elegância, ordem e equilíbrio. E de solidão, imposta pelas circunstâncias da vida e cultuada pelo desenho do próprio ser – pois afinal este sentimento trai, tantas vezes, a propalada inclinação do ser humano ao modo gregário de ser. A luz sutil de José Henrique Moreira realça a solidão e brinca com os pontos de explosão.
Maria Emília pretende cimentar a sua presença no mundo, apesar da velhice, a partir do culto intenso ao seu fluxo interior, feito de valores antigos, herdados, e centelhas de revolta. No fundo, é a mesma cascata de pensamento acelerado, automático, compulsivo, caminho livre para a ansiedade, característica de todos os seres humanos, cada vez mais intensa no ritmo de vida atual.
A empatia irresistível nos faz acarinhar a velha professora amorosamente, pois, queiramos ou não, há uma pergunta incomoda no ar, diante dela. É a pergunta sobre a identidade profunda daquilo que verdadeiramente somos diante do jogo social. Assim, as letras do conto transformadas em jorro de vida ao vivo ultrapassam o feminino, questionam temporalidades. Elas nos trazem uma velha senhora sedutora, a Maria Emília solitária que habita o interior de cada um de nós. Portanto, zele por sua Maria Emília e trate de dar um jeito de ir ver!
FICHA TÉCNICA
SENHOR DIRETOR
Autora: Lygia Fagundes Telles
Idealização | Adaptação | Direção: Silvia Monte
Elenco | Cenário | Figurino: Analu Prestes
Iluminação: José Henrique Moreira
Direção Musical
|Produção | Arranjos: Yahn
Wagner
Direção de Movimento: Mari Amorim
Identidade Visual: Gustavo Perrella | Sydney Michelette
Programa: Sydney Michelette (arte) | Silvia Monte [texto]
Redes Sociais: Jéssica Christina
Fotografia: Alexia Maltner [peças de divulgação] | Isabelle Oliveira
[temporada]
Direção de Produção: Silvia Monte
Produção | Realização: Terceira Margem Produções Culturais
SERVIÇO:
Sinopse: Senhor Diretor, monólogo adaptado do conto homônimo de Lygia Fagundes Telles. No dia do seu aniversário de 62 anos, Maria Emília passeia pelas ruas de São Paulo e escandaliza-se ao ver a capa de uma revista na banca de jornal. Resolve escrever uma carta ao diretor do jornal para expor seu “horror” diante do caos da sociedade.
De 4 de outubro a 10 de novembro, de sexta a domingo, às 20h
Sessões Extras: 7/10 e 11/11, segundas-feiras, às 20h
Ingressos: R$100,00 (inteira) / R$50,00 (meia)
Vendas: bilheteria e sympla
Duração: 50min
Capacidade: 40 lugares
Classificação indicativa: 14 anos
Local: Espaço Abu, Av. Nossa Sra. de Copacabana, 249 – loja E – Copacabana
Informações: 21 2137-4182 / 4184 (das 15h às 19h) espacoabu@gmail.com
@senhor_diretor | @ter_cei_ra_margem | @prestesanalu | @montesilvia
NOTA: Após as sessões do espetáculo Senhor Diretor e das apresentações de Leituras em Cena haverá sorteio de obras de Lygia Fagundes Telles, doadas pela Agência Riff e pela Companhia das Letras.