
Teatro, tradição e cordelinhos
Um valor teatral profundo nunca é debatido o suficiente: a proximidade – promiscuidade mesmo – que domina as relações dos artistas com o seu público. Talvez por aqui, nestes tempos de renúncias fiscais e divórcios das bilheterias, esta ligação densa, subterrânea, que veio das praças, das feiras, dos tablados, esteja um pouco esfumada. Ou se desfez? Será que ela desapareceu, mora só no pensamento?
Para quem olha a partir da História, é batata – este é o mandamento número um da religião do teatro. Ou era – talvez seja um valor passado, do tempo em que a grande arte de estar em contato era o teatro, apenas o teatro. Sem televisão, sem internet, sem conexão virtual… o palco era o cimento que a todos unia.
Falo de uma proximidade nascida da convivência: aquele sentimento que fazia o artista saber muito bem o quê o seu público queria. E vice-versa, o público ia ver o artista na expectativa de uma trama de sensações familiares. Quer dizer, o artista tinha público e não suposição. E o público tinha artista.
Este quadro fica muito nítido quando lemos biografias de velhos atores. Ou quando lemos livros antigos de memórias e de anedotas teatrais. Acabei de me divertir muito com “30 Annos de Theatro”, de Rego Barros, uma publicação de 1932. O autor, hoje um ilustre desconhecido, foi ator, ponto, contrarregra, diretor de cena, ensaiador e, em especial revisteiro – autor de revistas, sucessos palpitantes da Praça Tiradentes.
Rego Barros, natural do Pará, veio para o Rio de Janeiro em 1896 e sonhava com o teatro desde os primeiros anos da adolescência. Queria ser famoso, claro, ou não viria para o Rio. Por suas notas, avalia-se o imenso poder de circulação do teatro na sociedade brasileira, no conjunto do país.
Ele cita vários atores de sucesso, aclamados no interior, que jamais tentaram a sorte nas grandes cidades – e usa a expressão “ator de província” para falar destas personalidades eletrizantes, dedicadas ao que ele gosta de definir como “rincões”. Estas terras distantes conheciam teatro não só por causa dos heróis locais, elas eram reviradas ao avesso por companhias mambembes, algumas especializadas na itinerância.
Dentro do jogo de vale tudo que vigorava nas tais companhias, salta aos olhos um dado comovente, exatamente a comunicação intensa, elétrica, que juntava palco e plateia. Rego Barros insiste em afirmar a forma coletiva de viver da classe. Frisa também que, por mais que acontecessem desavenças internas, a classe era família, era unida – bateu num, apanhou de todos. Mas, acima de tudo, coroando o conjunto, estava o pacto palco-plateia.
As informações sobre este pacto aparecem em vários momentos do livro, sob diversas formulações. Vale destacar uma forma curiosa desta relação, descrita no final do pequeno livro: Rego Barros condena o teatro moderno, pois, a seu ver, os novos artistas abriram mão dos cordelinhos. Duas dúvidas – o que será que ele chamava de teatro moderno, em 1932? E o que seriam os tais cordelinhos?
Algumas dicas permitem supor que o tal do teatro moderno seria alguma coisa do estilo Trianon, recém vitorioso – peças de conversação e conversação na sala de visitas, com discreto alcance moral. Um blá-blá-blá que afastou um bocado da velha plateia, pois, no dizer do público, para conversar, bastava ficar em casa. Já os elogiados cordelinhos seriam o que os franceses chamavam de ficelles, cordões de fluxo de humor, seiva humana e energia que ligavam palco e plateia, mantendo as duas partes bem atadas.
Ele cita bons exemplos. O caso mais destacado aconteceu com o ator Eugenio de Magalhães, numa companhia mambembe da qual fazia parte a grande Ismênia dos Santos. Pois o ator, responsável por um dos papéis centrais no drama A filha do mar, foi estrondosamente aplaudido em cena aberta, após uma cena forte no navio, em que jogava longe o boné.
Elogiado pelos comparsas, ele refutou as congratulações, afirmando que os aplausos eram para o boné, não para si, o ator. Diante da incredulidade dos colegas, ele propôs um desafio – na próxima vez que a peça voltasse ao cartaz (naquela época se fazia teatro de repertório…), ele não jogaria o boné, faria a cena contida, centrada em si próprio. Na hora da cena, todos os que não estavam no palco foram para os bastidores, conferir o fato. E não teve erro: o boné não voou, ninguém na plateia aplaudiu, apesar de todos estarem muito emocionados.
O contador de histórias não explica, mas a situação parece cristalina. O gesto do ator, ao fim de uma espiral de tensão, de jogar longe o boné, dialogava intimamente com a aflição da plateia diante da cena de emoção intensa. A explosão física funcionava como uma válvula de escape para o público que, duplamente emocionado, irrompia em ovação. A plateia aplaudia o boné voador.
Não sei se um ator de hoje, do nosso tempo, poderia escrever anedotas e histórias de andanças teatrais nas quais despontasse esta incrível aproximação. Talvez apenas um formato teatral preserve hoje esta conversa de almas – o teatro musical. Por isto, ao longo dos espetáculos musicais, em especial após cada música, o público aclama a cena, aplaude e às vezes com extrema vontade. Ovações legítimas.
Vale estudar este fenômeno. Vi também na Argentina e em Portugal velhos atores consagrados, ainda vinculados à antiga tradição do primeiro ator, aclamados pela plateia quando de sua entrada em cena. Donos de companhias, eles concebiam o espetáculo de uma forma tal que a sua entrada em cena era triunfal. Em Buenos Aires, numa apresentação de O Fantasma de Canterville, a plateia entrou em delírio quando Pepe Cibrian entrou e ganhou o meio do palco. Estático, na posição central, ele agradecia o carinho, com a cena parada.
Outro tanto vi em Lisboa: no teatro de revista do Parque Mayer e no Teatro Politeama, numa encenação de O Violinista no Telhado, com Filipe La Féria. Nas duas ocasiões, a plateia aguardou sob uma ansiedade elétrica, palpável, a aparição dos ídolos. E o momento do encontro foi uma explosão impressionante de energia.
São casos em que existe um público cativo, fiel. São espectadores num sentido intenso da palavra, pois aguardam com ansiedade a visão do ídolo, as suas manifestações, manifestações que já conhecem ou cujo espírito vive no horizonte de expectativa de cada um. Pois bem: nem tudo está perdido.
Penso que o teatro musical talvez seja o teatro capaz, hoje, de desfrutar do prazer dos cordelinhos – uma linha de comunicação intensa, quente, direta, que faz com que o palco e a sala respirem juntos, pensem, vibrem numa mesma frequência, numa conversa de corpos e almas além das palavras. Não é aquele simples jogo de energia corrente em qualquer representação teatral, não. São cordelinhos.
O que será que isto significa? Isto significa muito. Significa a chance de ver o palco como entidade viva, manifesta, importante para a vida contemporânea – não um lugar especial para lidar com requintes da sensibilidade, papo cabeça, mas um espaço para falar junto, vibrar, palpitar, viver algum tempo ao redor das intensidades da nossa época. Talvez se possa falar aqui de uma forma nossa de ser livre – mas este é um papo longo, fica para outra hora, outro texto.
Quero falar agora de onde veio todo este pensamento. Não foi um resultado mecânico da leitura do divertido (e raro) livro de Rego Barros. De verdade, foi o que senti, foi um caminho em que mergulhei, quando soube da proposta de remontagem de O Despertar da Primavera, musical, espetáculo de Charles Möeller e Claudio Botelho.
A peça original, de Wedekind, tem uma força absurda: é um ato puro de louvor à liberdade do ser humano. O lado grotesco da desinformação está lá, a sordidez da falta de acesso ao conhecimento básico está lá. Não conheço uma só pessoa que, tendo lido o original e possuindo dois olhos e um cérebro, para ver e pensar o mundo, não tenha se apaixonado pelo texto. É libertador. Devia ser leitura obrigatória em todas as escolas.
Sob a forma musical – capaz de amplificar a liberdade dos corpos e potencializar o fluxo dos sentimentos – a peça se tornou ainda mais dilacerante: denúncia viva do crime de massacre à força da juventude que ainda cometemos desde o século XIX – no mínimo.
Dizer o quê? Vá ver – e por favor tente verificar se, na sua percepção, esta cena tem cordelinhos, fios de comunicação tais como aqueles telefones de latas, que usávamos outrora para brincar e para estarmos juntos no mundo. Ou que enredava o velho teatro, numa força social única. Depois conversamos, façamos as críticas.
De verdade? Honestamente, mais do que nunca o teatro e a vida precisam se comunicar, tecer tramas humanas de aproximação. E de libertação. Para termos pessoas inteiras, íntegras nas suas formas de sentir – aquele tipo de gente que faz andar para a frente esta coisa em que andamos metidos chamada mundo.
FICHA TÉCNICA:
O Despertar da Primavera
Baseado na obra de Frank Wedekind
STEVEN SATER – Texto e Letras
DUNCAN SHEIK – Música
CHARLES MÖELLER – Direção
CLAUDIO BOTELHO – Versão Brasileira
Um espetáculo de CHARLES MÖELLER & CLAUDIO BOTELHO
Elenco:
Bel Kutner (Mulher Adulta), Augusto Zacchi (Homem Adulto), Rafael Telles (Melchior), Tabatha Almeida (Wendla), João Felipe Saldanha (Moritz), Maria Brasil (Ilse), Bia Lomelino (Martha), Carol Pita (Anna), Daniele Thomaselli (Emma), Davi Pithon (Rupert), Diego Martins (Ernst), Gabriel Lara (Otto), Gabi Camisotti (Manu), Giovanna Rangel (Thea), Leonardo Rocha (Georg), Sara Chaves (Inga), Thiago Franzé (Hanschen) e Victor Leal (Dieter).
MARCELO CASTRO – Direção Musical
CLAUDIO BOTELHO – Supervisão Musical
ROGÉRIO FALCÃO – Cenário
MARCELO MARQUES – Figurinos
PAULO CÉSAR MEDEIROS – Iluminação
ALONSO BARROS – Coreografia
CHARLES MÖELLER – Direção de Movimento
ANDRÉ BRETAS e FELIPE MALTA – Design de Som
GABRIEL D´ANGELO e ERICK FIRMAMENTO – Design de Som associado
CRIS REGIS – Visagismo
LUCIANA CONDE – Produção Executiva
TINA SALLES – Coordenação Artística
CARLA REIS – Coordenação de Produção
Realização: M&B PRODUÇÕES
Temporada RJ:
Local: Theatro Net Rio – Copacabana
Data: 01 novembro a 22 dezembro
Horários: Sexta 20h, sábado 19h, domingo 19h
Duração: 120 minutos
Classificação indicativa: 16 anos