Uma coisa me intriga: a relação do poder público com o carnaval. Desde menina, bem pequena, apesar de uma boa parte da minha família ser protestante, me acostumei ao carnaval. Na minha infância, a festa era na rua; aos poucos foi passando para os clubes, até que, lá por certa altura da adolescência, o carnaval de rua finou, enquanto os clubes ainda persistiram algum tempo. Criança, nos anos 1950, eu morava no subúrbio do Rio e lembro dos coretos, das decorações coloridas, das gambiarras e dos altofalantes. De dia, existiam os blocos de sujo, formas espontâneas de festividade, que surgiam de repente, com roupas cotidianas ou inventadas, fantasias, molambos, latas, instrumentos improvisados e reais. As crianças não podiam participar destes blocos, ao menos as de família, era obrigatório ficar atrás dos muros, na espreita, sob a vigilância dos adultos. Alguns fantasiados entravam no sujo, mas, como podia acontecer alguma manifestação suja mesmo – água, terra, lama – as fantasias bonitas preferiam ficar longe, entravam mesmo os que precisavam esconder o rosto sob máscaras, para ninguém reconhecer. Um eco distante do entrudo português  soava pelas ruas – era ainda o lança-perfume, de éter, o jato frio nas pernas das moças ou das crianças, as bisnagas de água pura ou com cheiro, de raro em raro suspeito, fedorento, até… Meu pai, que era um tipo divertido e brincalhão, pegava os filhos, botava no carro, com sacos enormes de talco sem perfume, confetes e serpentinas e saía pelos bairros, atacando quem bobeasse nas ruas por perto do carro. Nós adorávamos e fazíamos a festa. Ele tinha uma camisa de carvanal, um blusão muito suspeito, de seda, vermelho, com viras pretas na gola, na pala dos botões e nas mangas. Ninguém usava uma roupa deste tipo, rotineiramente, vermelha! Ele não era flamenguista, era folião mesmo…

O curioso é que esta festa da rua era comandada pelo poder público, que instalava as luzes e o som e bancava – ou permitia que os comerciantes fizessem – os coretos decorados que encantavam o povo, com luzes, cores e efeitos. Lembro do deslumbramento diante do monumento de emoção cívica que foi armado em Cascadura para comemorar a vitória do Brasil na Copa de 1958, com um enorme globo terrestre coroado pela figura do capitão da equipe a brandir para o ar a taça preciosa Jules Rimet… Depois, sob os governos militares, o próprio governo acabou com o carnaval de rua, ao mesmo tempo em que transformava o desfile das escolas de samba em grande espetáculo.

Fui algumas vezes, bem pequena, ver as escolas de samba, na Praça XI, e em outros vagos pontos da cidade, impossíveis de reter na memória, pois criança, no meio do povo, quase sempre vê o chão… A sensação era bastante ruim: uma espera interminável, muitas brigas e correrias, polícia, pega-ladrão, para ver afinal pedaços de saias, algumas damas antigas, inefáveis homens de uma corte perdida de um vago rei metidos em inacreditáveis perucas brancas, umas carroças lentas com escassa decoração… A cantoria era incompreensível, o espetáculo acontecia na altura do povo e passava lento, com uma corda assassina muito perigosa para pescoços delicados. Cheguei a ver algo das grandes sociedades – no fundo, era um tanto melhor, pois dava para ver alguma coisa, sentados na grama, com jovens senhoritas encarapitadas em maçarocas enfeitadas pesadas, lentas, que nos faziam desabar de sono lá por certa altura do espetáculo. Tanto nas grandes sociedades como nas escolas de samba havia o imprevisto – além das brigas e arruaças, um carro desabava, um pedaço de saia caía, uma peruca andava torta e rebelde, algum passista sambista tropeçava nas pernas de cachaça.

Acho precioso como o que era espontâneo e livre desapareceu e o que tinha algum princípio de ordenação foi cooptado e sistematizado. Nada disto muda o meu gosto pelo carnaval – faça o governo o que bem quiser, considero essencial sair dançando e cantando pelas ruas, anônima, como se o meu direito maior fosse decretar um momento existencial de festa. E aceito até mesmo dançar no sambódromo, este monumento estranhíssimo, que muita gente já chamou, na intimidade e em segredo, de mausoléu do samba. Ele, hoje, já é pequeno para o carnaval carioca das escolas de samba, que não cabe mais ali dentro e se espraia de novo pelo entorno, outra vez na tal história do monta e desmonta. Ele vai passar, naturalmente – e os foliões nacionais continuarão pelas ruas, fiéis a um modo de ser nativo, em uma alegria bruta, enlouquecida, que sustenta a existência por aqui, viabiliza a nossa sobrevivência, nos permite continuar vivendo, sob as agruras vigentes neste rincão tropical.