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Este  mundo é dos loucos…

Sim, é verdade. Não duvide: este mundo é dos loucos! E isto pode ser muito bom. Quer dizer, depende muito do louco, claro. Existem loucos preguiçosos, inativos, incapazes de enxergar uma mosca, que dirá matá-la. E existem loucos de ação, capazes de derrubar uma montanha com um dedal, tamanha a sua fúria.

Na realidade, não é tão simples, não é só isto não. Há o bloco dos loucos do mal, da destruição. Eles são inimigos figadais do outro bloco, formado pelos loucos do bem. Está aí um dos maiores segredos da vida no mundo. Pois os construtores da vida são os loucos do bem. Sem eles, não estaríamos aqui, estaríamos numa caverna ou perdidos saiba-se lá por qual lugar árido por perto…

Não tenho qualquer dúvida a respeito do bloco de abrigo do povo que faz o teatro brasileiro existir: são loucos do bem. Desde o século XIX eles lutam de corpo e alma em benefício de uma cultura brasileira mais densa, uma sensibilidade cidadã mais refinada. Inexplicavelmente, dão a pele por isto. Levam pancada a torto e a direito, até mesmo de gentinhas da própria classe, uma facção esquisita, loucos do mal infiltrados, especializados em torcer contra o teatro.

Mas vamos ao que importa, aos nossos loucos teatrais do bem. Como explicar esta entrega, o mergulho numa prática econômica de importância social decisiva, mas desprovida, aqui, de capital, de apoio do Estado, de qualidade dos meios de produção?  Para quem acompanha a vida do nosso teatro, um ritual normal de produção é ver atores bancando do próprio bolso recursos básicos para a sua atividade. Esta história – a história do capital e das engrenagens econômicas do teatro brasileiro – ainda está por ser escrita. No centro dela, tenho certeza, estarão nossos atores, loucos do bem.

Não, não se iludam com falsas notícias forjadas pelo antro dos loucos do mal. Os legítimos loucos do teatro não acumulam fortunas, não vivem de mamatas, nem são parasitas da sociedade. Historicamente, os casos de grandes fortunas teatrais são exceções, são ocorrências raras; algumas personalidades chegam a conquistar algum patrimônio  sólido, muito mais a partir da TV, da publicidade ou do cinema.

No teatro, fortuna é estar em cena. Em cena, trabalha-se de forma imersiva, alucinada, loucura pura. A entrega é a lei. A poeira do tablado, a felicidade. E os nossos loucos do teatro fazem o que fazem por uma razão simples, a sua desrazão: são devotos convictos da arte. Quem é de teatro de verdade, morre pelo palco, e morre sem notar. Só vai saber do fato diante de São Pedro.

Na coluna da semana passada esbocei uma lista de companhias e grupos cariocas de excepcional qualidade, gente capaz de dar o sangue para garantir a existência do teatro. Pois faltou na lista um bando de loucos irrecuperáveis, de altíssimo gabarito, a CiaTeatro Epigenia. Sob a liderança de Gustavo Paso e Luciana Fávero, núcleo histórico da equipe, a marca completa vinte e dois anos de loucura plena, radiante, com obras teatrais de impacto, reflexões cênicas sutis.

Alguns aspectos notáveis do trabalho do grupo merecem destaque. Eles trabalham com uma ideia de repertório muito bem estruturada. Há, nas suas escolhas e propostas, um conceito de teatro e a busca de uma visão nítida do seu público e  da sociedade. Em paralelo, para poder zelar por esta estrutura conceitual e atingir os objetivos da equipe, a Epigenia investe na especialização permanente dos atores e na formação de plateia. Lá, o palco é razão de viver, loucura desbragada mesmo, portanto.

Um exemplo eloquente? Diante do emaranhado de entraves burocráticos que envolve as secretarias de educação e cultura do Rio de Janeiro, Gustavo Paso e Luciana Fávero desenvolveram um saber fazer funcional, para investir na formação de plateia, um modo de operação digno de elogio. Afinal, levar professores, estudantes e escolas ao teatro precisa se tornar uma rotina consolidada na cena carioca. A tarefa é árdua. Mas a Epigenia encontrou um caminho eficiente para fazer isto.

Não se trata exatamente do modelo dos anos oitenta, o antigo Teatro-Escola muito bem desenhado pelo Grupo Tapa. Naquele tempo, o procedimento básico era pessoal, o grupo precisava localizar professores abnegados dispostos a trabalhar as peças com os alunos. Os mestres se tornavam vendedores dos ingressos e a ida ao teatro acontecia de forma espontânea. Ou então a peça ia até a escola.

Na dinâmica desenvolvida pela companhia – resta saber como a prática acontecerá pós-pandemia – não há venda de ingresso, mas pura ação social de formação de plateia. Sim, o procedimento passou a integrar as leis de fomento, se tornou um impositivo legal, porém a exigência poderia ser cumprida ao sabor do acaso. Esta visão nunca foi a dominante para a equipe.

 Antes, a ida era organizada de forma autônoma pelo próprio grupo, recentemente passou a ser planejada a partir de uma nova conscientização das secretarias, com os alunos conduzidos em ônibus até o teatro. Após o espetáculo, a peça é debatida com a plateia ou há material para estimular os professores (claro, eles também vão ao teatro) para trabalhar a proposta do grupo junto aos alunos. Em resumo, há um projeto, uma concepção orgânica e consequente da relação escola/teatro.

A CiaTeatro Epigenia possui um sentido humanista muito claro já no nome, tomado de empréstimo à mineralogia; o nome deseja apontar para um conceito de transformação do mesmo, com a sua preservação. Se o repertório encenado pela equipe é olhado com atenção, percebe-se claramente o contorno desta lógica, a favor da transformação humana do humano.

O último trabalho assinado pelo coletivo foi a encenação da trilogia Oleanna, Race e Hollywood, textos de David Mamet,  uma busca ácida para pensar o indivíduo na sociedade contemporânea. Os limites impostos (e aceitos!) à vida, especialmente no plano ético, ecoam nas três montagens: abuso, corrosão ética, consumismo, racismo… Após as apresentações, o investimento na ampliação da força dos textos ditou a programação de debates.

Portanto, a escolha de debater com a plateia trabalhos tão densos integra a linha de trabalho da companhia, não se trata de cálculo de momento. Um ponto diferencial surge claro nesta aposta: tornar o teatro uma força cultural crescente no jogo social. Em função desta hierarquia de valores tão precisa, o conjunto, quando foi companhia residente no Teatro Glaucio Gil, investiu alto para a formação de um público para a casa, através da organização de um clube de sócios.

Agora, uma nova montagem deverá marcar o retorno da equipe à cena em grande estilo. Na Cidade das Artes, estreia no próximo dia 10 de março uma adaptação de O Alienista, de Machado de Assis (1839-1908). É coisa para maluco nenhum botar defeito. O texto de Machado de Assis, apesar de ser de 1882, lida com temas de extrema relevância para a sociedade moderna, em particular para a nossa.

Machado de Assis (1839-1908)

O personagem central, Simão Bacamarte, médico de esmerada formação, retorna para a sua cidade. Dedicado ao estudo da loucura,  acabará instaurando uma ciranda vertiginosa de diagnósticos de insanidade. O conto foi adaptado por Gustavo Paso e Celso Taddei; a concepção de Paso, na direção, investiu numa solução musical forte, a conciliação do espírito lúdico com uma linha de comédia sombria adequada para retratar o fabuloso desvario médico.

Para os tempos difíceis que correm, a generosidade da proposta surpreende. Uma simples olhada na ficha técnica comprova o diagnóstico – são todos loucos, loucos do bem, dispostos a desafiar as agruras do real hostil ao redor. Só o elenco, encabeçado por Rômulo Estrela e Fabiana Fávero,  reúne 14 atores-cantores, ao lado de uma alentada ficha técnica.

Afinal, não duvidem: uma loucura santa e boa, assim, é o que se pode esperar do teatro. Numa época de crise generalizada, com dores e perdas ameaçando forçar os limites da resistência de cada um, um elenco obstinado traz para a cena a sabedoria cortante de Machado de Assis e nos convida a olhar os nossos próximos com o encantamento necessário para que se reconheça o milagre que é a vida. Vamos lá – felizmente, nós, loucos por teatro, contamos ainda com loucos do teatro para ensinar aos nossos corações a arte de amar o simples ato de viver.

FICHA TÉCNICA      

O Alienista

Livremente Inspirado na obra de Machado de Assis

Texto: Gustavo Paso e Celso Taddei

Direção e Cenografia: Gustavo Paso

Iluminação: Paulo Cesar Medeiros

Trilha Original e Direção Musical – André Poyart Treinamento Vocal: Dodi Cardoso

Figurino: Graziela Bastos

Adereços: Eduardo Andrade, Renato Ribone, Gustavo Paso, Eduardo Zayit, Malu Guimarães

Direção de Movimento Coro: Edio Nunes

Direção de Arte: Gustavo Paso

Elenco: Rômulo Estrela / Luciana Fávero / Gláucio Gomes / Vitor Thiré / Samir Murad / Dodi Cardoso /

Renato Peres / Tatiana Sobral / Tecca Ferreira / Anna Hannickel / Eduardo Zayit / Erick Villas / Laura Canabrava / Renato Ribone

Identidade Visual nas artes gráficas: Putz Creative Studio Captação de apoio: Gheu Tibério

Produção Executiva: Júnior Godim Direção de Produção: Luciana Fávero

Assessoria de Imprensa – Alessandra Costa Gestão de Redes Sociais – Fernanda Portella Realização CiaTeatro Epigenia

www.epigenia.art @ctepigenia

SERVIÇO:

Local: Cidade das Artes – Grande sala

Temporada de 10 de março a 10 de abril – de quinta a sábado às 20:30 e domingo às 18:00. Valores: R$ 60,00 (plateia) / R$ 50,00 (balcão) – inteira

Duração: 90 minutos

Classificação: 12 anos

Lotação: 1200 lugares

Gênero: Comédia dramática

Acessibilidade: elevador, rampas e assentos especiais

PARA LER OU RELER O TEXTO:

EM TEMPO: O ESTADO ESTÁ COM EDITAIS ABERTOS…

O tema é importante, o debate teatro x Estado x capital…

Funarj: inscrições abertas para dois editais, com valores de R$ 720 mil para a cultura em 2022.

Saiba mais: http://www.funarj.rj.gov.br/node/30