CRÍTICA DE TEATRO: AS METADES DA LARANJA
As Metades do Teatro
O teatro carioca morreu – muita gente boa defende o diagnóstico. Aguardam ansiosos o enterro. Não, não é uma fala abstrata. A pessoa ama o palco, se produz, sai de casa, enfrenta as agruras todas da cidade e chega ao teatro para ver uma peça falada, alardeada. Porém…
A tal coisa se projeta eleita por seres suspeitos, logo se vê, tipos que gostam de dizer: odeio teatro, mas, esta peça, até esqueci que é teatro! E era mentira, claro – a peça era venenosa, danada de ruim.
Pois é – às vezes o cartaz vem cheio de adereços notáveis. Nomes de impacto da TV. Atos escandalosos. E o pobre amante de teatro vai. Quer dizer, a criatura faz o seu papel de público… Na saída, contudo, a pessoa se sente lesada. Não recebeu do palco nada que honrasse o seu esforço e a sua expectativa.
Em alguns casos, os teatrófilos desiludidos reclamam de uma condição curiosa: dizem que a cena carioca anda sofrendo de realidite aguda. Quer dizer, excesso de realidade. Grassa em certas ribaltas uma aposta crua na performance, uma aproximação por vezes mais do que indiscreta entre arte e vida.
Aí está o drama deste público desencantado. A tal da realidade sempre foi algo que o palco pretendia domar, rever, ir além, estetizar a favor da teatralidade. Para ver a realidade nua e crua, ninguém precisa de teatro, protestam. Se a invenção, o sonho, a metafísica, a elevação crítica do espírito não aparecem no palco, sair de casa para quê?
Sucesso de público mais do que justo…
Pois quem sofre com tais padecimentos, tem remédio fácil. Urgente. Deve correr rápido para o Teatro Gláucio Gil, em Copacabana, para ver as apresentações extras de As Metades da Laranja, neste mês de abril. É o que se poderia chamar de espetáculo totalmente imperdível. Um programa carioca obrigatório. Não perca, de jeito nenhum. A peça vem sendo apresentada desde o ano passado e vai se tornar um triunfo histórico. Vejamos as razões do sucesso, distantes das enganações dominantes no teatro ruim de cada dia.
A equipe com Fábio Jr.
A partir das músicas do repertório de Fábio Júnior, Tauã Delmiro, um gênio especialmente dotado de talento para o musical, criou uma fábula hilária ao redor da potência tóxica do amor. O olhar irreverente é total, de fio a pavio.
De saída, as diversas situações dramáticas reunidas no texto investem na percepção dos tons patéticos associáveia ao amor, graças a procedimentos do melodrama, ao namoro com a comédia e ao casamento com a farsa. A inclinação objetiva é a escolha de rir de si próprio, da bobeira implícita no ato de esquecer de si em prol do mergulho louco no afeto, sem âncora e sem noção. Todavia, o tom é jovem e contemporâneo, portanto uma forma sofisticada de humor, com delicadas nuanças sentimentais. Afinal, do amor ninguém escapa.
A opção se prolonga na encenação, assinada pelo autor: há um cenário inusitado, de evocação de postites, bilhetinhos e cartas, com um mínimo de adereços, todos manuseados pelo elenco em tom farsesco juvenil. Os figurinos – ternos que se transformam em soluções teatrais surpreendentes – partem da ideia de casamento e cerimônia, naturalmente associada aos ternos, para materializar um painel vertiginoso de situações. Para sublinhar a coerência, a cor laranja está por toda a parte e reverbera com força graças aos efeitos de luz.
O elenco no cenário.
O elenco funciona como se fosse um grupo, uma equipe afinada a partir de um conceito de cena muito preciso. O entrosamento do conjunto garante a fluidez da representação. Todos apresentam excelência vocal e física, contracenam de verdade, em plena sintonia. As vozes transformam os números musicais num prazer a mais, momentos de intensa beleza.
Tauã Delmiro esbanja verve caricata, mas sob um contorno peculiar, precioso. De certa forma, ele atualiza a tradição cômico-caricata brasileira, pois segue uma linha cômica muito sutil, apoiada na ironia, elegante, ainda que demolidora. Ele nunca perde a deixa para insinuar uma forma espiritual de ser, mesmo nas situações mais escrachadas. Talvez se possa defini-lo como um caricato-galã.
Tauã Delmiro
Victor Maia, em contraponto, projeta-se como figura de galã cômico romântico, sempre um tanto inclinado para materilizar um jeito sonhador de viver. Com excelentes oportunidades para expor a voz deslumbrante e a forma física esteticamente apurada, Maia revela em cena um estado de liberdade poética de grande impacto, assina números solos fundamentais para o conjunto, mas estonteantes em si.
Victor Maia
Analu Pimenta, uma voz de cristal absoluto, daquelas que convidam a alma para visitar o céu, responsável por vários papéis femininos da trama e em especial pelo papel romântico central, sempre com desempenho irretocável, surpreende por sua desenvoltura na linha cômica. A atriz afirma a extensão do seu talento, acontece aqui como invenção cômica, melodramática e musical, depois de uma carreira no musical mais inclinada ao drama.
Analu Pimenta
A trama do espetáculo, sempre brincalhona e por vezes bastante debochada, parte do nascimento de uma figura, Dom, marcada desde o útero por um enorme padecimento afetivo. Adulto, às voltas com um grande amor, se torna exemplo de ciúmes doentios, até chegar a uma reviravolta surpreendente no final.
Se a concepção geral revela forte densidade a partir do texto, ela se afirma como profunda organicidade graças à direção musical de Tony Lucchesi. Presente no palco como parte do elenco, ele se integra à ação dramática e traz uma visão renovadora da forma de apresentação da música, marcada pela irreverência. Além da qualidade do desenho musical construído por ele, o regente participa de cenas fundamentais para o espírito da proposta, opções que ressaltam o tom de humor cáustico do projeto.
Vale insistir neste aspecto, pois ele situa não só a qualidade central da montagem como a importância histórica da obra. Apesar de alguns puristas reclamarem muito da vitalidade da linha de musicais brasileiros concebidos a partir de criações musicais pré-existentes – caso sobretudo dos musicais biográficos e temáticos – esta vertente teatral existe no país desde o século XIX. Há uma linha histórica antiga contemplando este fazer, com maior ou menor sucesso na fatura das obras. Portanto, não há nada de errado na ideia.
Quer dizer – dramaturgos-libretistas brasileiros no mínimo desde Artur Azevedo escreveram roteiros dramáticos para musicais incorporando músicas das ruas ou de nomes de projeção, quase sempre valorizando os grandes sucessos populares. O objetivo, lógico, era incorporar o sucesso ao palco, vale dizer, trazer os cantores de esquina para a plateia. Apesar do nariz torcido de alguns, nada justifica o combate a esta forma de teatro musical, aliás praticada por todas as partes do teatro musical mundial.
Tauã Delmiro está fazendo história – e história notável – com As Metades da Laranja ao conseguir tecer trama, linha musical e letras numa obra estruturada, coerente, sem fraturas. Ele efetivamente criou uma trama musical a partir das canções, não apenas juntou aleatoriamente números musicais.
A passagem do tom romântico para o tom irônico e/ou debochado se faz em sintonia profunda com o jeito carioca irreverente de ser, responsável, sem dúvida, pela criação do musical brasileiro. Afinal, o musical e a MPB nasceram no Rio de Janeiro, em que pese o vigor artístico de tantas praças criativas espalhadas por este imenso país.
Figuras como Tauã Delmiro, Victor Maia, Analu Pimenta e Tony Lucchesi – os laranjas notáveis – fazem o público de teatro sair de casa feliz desde o século XIX. Para voltar mais feliz, cada um vestido com a certeza de que viver é um baita desafio – um desafio tão abissal quanto encontrar, rolando na vida, a sua metade da laranja. Ou viver a saga de se embolar com a tal da metade…
Portanto, desperte para o teatro que vale a pena ver. Não bobeie. A temporada vai ser curta. Corra para o Teatro Gláucio Gil. Lá, nesta peça, você vai se certificar de que o teatro carioca está vivo. E, se depender desta equipe, a sua noite não será uma triste saída perdida, pois, entregue a esta brava gente tão colorida, o teatro carioca não se tornará nunca um pobre bagaço de laranja…
As metades da laranja
Uma comédia-musical
Ficha Técnica
Texto e direção: Tauã Delmiro
Direção musical: Tony Lucchesi
Diretora Assistente: Manu Hashimoto
Elenco: Analu Pimenta, Victor Maia, Tauã Delmiro e Tony Lucchesi
Fotografia: Amyra Alaouieh
Realização e Direção de Produção: Produtora Alada
Serviço
Teatro Glaucio Gil
Praça Cardeal Arcoverde, s/n – Copacabana, Rio de Janeiro – RJ, 22040-030Telefone: (21) 2332-7904
Temporada: Terças de Abril de 2023 – 04/04, 11/04 e 18/04 – às 21h
DURAÇÃO: 70 Minutos
CLASSIFICAÇÃO: 12 Anos
Ingressos: R$ 50,00 (inteira) e R$ 25,00 (meia-entrada)
– APP ou Site da Sympla https://www.sympla.com.br (com taxa de conveniência)
– Bilheteria física (sem taxa de conveniência) – SEG a DOM: 16h às 20h