High-res version

A cena, as letras e a revolução

Fui uma jovem rebelde – bastante rebelde, sou forçada a reconhecer. E, amante do teatro, acreditava que o mais importante a fazer no teatro era a demolição. Sim, fui adepta do Teatro Pereira Passos, digamos, o Teatro do Bota Abaixo, derruba tudo. Foi uma época fervilhante. Torcíamos o nariz para a tradição teatral em geral, gastávamos neurônios pensando em como fazer tabula rasa do palco.

 

Ou nem tanto – como escolhi e recebi uma formação razoável em humanidades, não conseguia deixar de admirar a grandeza da herança cultural do Ocidente. O cânone, como se passou a nomear as grandes obras clássicas a partir de certo momento, sempre recebeu o meu louvor, mesmo que eu não pensasse que as soluções passadas pudessem cimentar o presente ou o futuro.

 

Hoje, longe do olhar juvenil furioso, vejo alguns pontos com bastante clareza. Primeiro, importa reconhecer a história desta rebelião, iniciada nos anos 1960, em que andei metida. A rebelião começou antes que eu soubesse dela e me levou de roldão, portanto, foi um movimento de época. Era uma torrente da História, gerada pela História para mudar a face comportada do mundo. Este movimento tem uma beleza, uma importância, monumentais. Foi a pedra de toque para a estruturação do mundo mais livre de hoje.

 

Segundo, a luta não era para acabar com a instituição teatral, nem mesmo com o mercado, como muitos pensavam e alguns desgarrados ainda pensam. Estávamos errados. Aquilo tudo acontecia porque existia o mercado, dentro de um diálogo com ele, num jogo velho-novo, de invenção e de mudança, necessário para a sobrevivência do mercado de arte. Afinal, nem os museus conseguem vender as mesmas velharias sempre: eles fazem rodizio da reserva técnica, inventam exposições, se preocupam em espanar o pó das múmias. Muitas das inovações foram absorvidas pelo mercado.

 

A compreensão infantil ou primária da arte sustenta o sonho esquisito do teatro numa cabana, mas os acampados parecem esquecer que é preciso ter dinheiro para comprar a lona. E se o papai-Estado vai financiar, a rebeldia fica no mínimo enviesada. O papai-pagador cobra sempre um preço para investir o dinheiro dos cofres na arte – não adianta sofismar, dizer que o dinheiro, no caso, é público.

 

Não existe poder de Estado isento e no Brasil o interesse político é sempre muito claro, o dinheiro está sempre aparelhado com a tal direção. No fundo, toda arte de Estado é platônica, o que significa a proposição de uma ideia conservadora. Fazer vanguarda com dinheiro público é uma contradição forte, para dizer o mínimo.

 

Um outro dado curioso a respeito da rebeldia teatral em voga sobretudo a partir dos anos 1970 reside no amor à cena e na ruptura com a dramaturgia. Aqui há mais um dado surpreendente – como foi que propusemos, no Brasil, romper com a dramaturgia, se nunca tivemos uma tradição de dramaturgia? A rigor, sem políticas culturais de Estado e sem um lastro a favor das peças no interior da vida literária, fizemos uma revolução contra um desconhecido. O inimigo-texto era um fantasma.

 

Desde o século XIX, em especial com os escritos sobre história da literatura brasileira de Machado de Assis (1869-1908), se consolidou o triste preconceito de considerar a dramaturgia brasileira como um vazio, uma nulidade, uma linha de reticências. A atitude, além de bloquear o debate e fechar a porta, tem o desagradável peso de obscurecer obras interessantes, ignorar produções significativas, merecedoras de atenção. pois ainda assim, conhecemos uma rebelião contra a palavra em cena, a favor do corpo, da criação coletiva e improvisada.

 

O tema importa muito hoje – ainda não temos uma ampla política nacional de apoio à dramaturgia e aos dramaturgos. A SBAT vive uma crise sem precedentes, à beira da ruína. O mesmo Estado lépido sempre disponível para socorrer empresas falidas ou arruinadas com dinheiro público, permanece insensível diante da necessidade urgente de recuperar a velha associação centenária, senhora de um acervo cultural precioso e estratégica para o desenvolvimento cultural do país.

 

Mas, vejamos, quem sabe se possa ter alguma esperança? Esta semana, haverá uma conjunção astral admirável no Rio, a cena carioca apresenta um leque muito interessante de caminhos cruzados ao redor do tema. Há uma ebulição dramatúrgica bastante peculiar, bem rara, vale conferir. Para quem gosta de teatro de verdade, teatro feito com texto turbinado, em que a potência da palavra se instala e sacode tudo, por conter, em si, a cena, o momento é de pura festa.

 

No Teatro Café Pequeno, no Leblon, temos em final de temporada um texto impactante, Memória da Alma, de autor nacional ainda desconhecido, Fabiano Barros, um original de arrebatadora poesia tecido como docudrama. A densidade do autor é coisa séria, evoca Jorge Andrade; a força do trabalho merece destaque. O foco é a violência familiar mais selvagem, capaz de transformar pessoas em restos humanos.

 

Por que se deve localizar aqui tanta repercussão? A peça se projeta em ambiente hostil, digamos, um meio teatral no qual o autor, o seu gabinete e a sua arte estão em eclipse. Um meio teatral inclinado a favorecer a sala de ensaio, a exploração da intensidade dos atores e da submissão à visão poética do diretor. Contudo, a luta não é simples. Ao mesmo tempo, como o teatro é um bicho complicado teimoso, duro de derrotar, a voltagem histórica da arte insiste em brotar por vários cantos, rebelde diante da onda dominante de experimentação e pesquisa.

 

Por isto, a cena está sendo sacudida por textos incandescentes, provas de ouro para os atores, convidados a enfrentar desafios de arte de bela envergadura. Infelizmente o único texto nacional com este ímpeto e fúria é o impressionante texto de Fabiano Barros. Mas, do mercado internacional, chegam páginas imponentes por si.

 

Há, por exemplo, uma notícia da força da dramaturgia no México, através do sensacional Molière – Uma Comédia Musical, de Sabina Berman. Apesar de adaptado, o texto expõe uma maturidade teatral avançada, mexicana, ao brincar com um tema histórico de grande relevo, a oposição comédia x tragédia e, em paralelo, dimensionar o conflito arte e Estado, graças às disputas cortesãs entre Molière e Racine ao redor de Luís XIV.

 

Mas há ainda um pouco mais. Josep Maria Miró, catalão autor de Nerium Park, amplia a percepção da força da dramaturgia, uma potência consolidada na língua espanhola. O uso habilidoso das convenções dramatúrgicas permite um tratamento ousado de um tema muito atual, a falência do sonho dourado daquela classe média radicada no mundo encantado da margarina.

 

Sim, o ato de escrever peças importa para consolidar a força do idioma, pois a literatura dramática expõe sujeitos em ação e a ação nos é revelada através do diálogo. Civilização e teatro caminham de braços dados – portanto, não se pode falar em dramaturgia de qualidade sem considerar o que acontece em inglês.Neste caso, a temporada carioca do momento está muito feliz. Em cartaz no Teatro Poeira, Heisenberg – A Teoria da Incerteza, de Simon Stephens, se vale da tradição da peça bem feita para implodir vários lugares comuns do pensamento, em especial do pensamento mais conservador.

 

Não é tudo. Para apimentar o debate, se pode considerar ainda um texto muito curioso, um Tennessee Williams (1911-1983) de vanguarda, digamos, Uma Peça Para Dois. Trata-se de um texto inusitado, um estratégico convite à reflexão no momento teatral brasileiro, uma peça sobre o teatro, teatro no teatro, na qual um dos eixos do conflito consiste no fato do público abandonar o teatro.

 

Peça da chamada última fase de Williams, ela dimensiona bastante a grandeza do autor, do escritor que se dedicou ao palco, domina a sua linguagem e reinventa a própria arte. Talvez seja justo afirmar que o texto, aqui, se rebela contra a cena e consegue domá-la – ou seja, a peça prova que não há, em todos os tempos, rebelde comparável ao teatro, capaz de por em xeque a própria casa.

 

O que é, afinal, muito bom: se queremos, de verdade, uma revolução humana, tudo o que nos resta é recorrer a ele. Portanto, vamos ao teatro, vestir as armas afiadas das letras expostas com rigor no jogo cênico. Peças do quilate destas, em que não se reduz o impacto da palavra, são importantes para o palco do país: elas reconciliam o público tradicional da arte com a cena. E, o melhor de tudo, elas promovem um revolução sensível, branca, cortante, provocada por suas palavras, afiadas com a melhor arte.

 

Serviço
Memória da Alma
Teatro Municipal Café Pequeno
De 06 de julho a 25 de agosto.
Sexta a sábado, às 22h.
Ingresso: R$ 40 (inteira).
Classificação: 18 anos.
Duração: 50 min.
Wagner Uchoa (21) 96847-3860

Molière – Uma Comédia Musical de Sabina Berman
Temporada: 10 de agosto a 02 de setembro
Horários: Sexta (20h), Sábado (20h) e Domingo (18h)
Local: Teatro Adolpho Bloch – Rua do Russel, n.º 804, Glória – Edifício Manchete.
Vendas: Bilheteria do Teatro Riachuelo Rio (Rua do Passeio, nº 38/40, Centro); Site Ingresso Rápido (www.ingressorapido.com.br) e Bilheteria do Teatro Adolpho Bloch (nos dias de sessão, a partir das 14h).
Valores: R$ 60,00 (inteira) e R$ 30,00 (meia-entrada)
Venda antecipada promocional: comprando até dia 05/08 os valores são R$ 40,00 (inteira) e R$ 20,00 (meia-entrada)
Classificação indicativa: 14 anos
Duração: 120 minutos

Nerium Park
Temporada: De 18 de agosto a 10 de setembro.
Dias e horários: De sexta a segunda, às 20h.
Local: Teatro Glaucio Gill (Praça Cardeal Arco-Verde, s/n – Copacabana)
Informações: (21) 2332-7904.
Capacidade: 1o0 lugares.
Recomendação etária: 16 anos.
Gênero: suspense/drama
Duração: 100 minutos.
Ingressos: R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia).

Heisenberg – A Teoria da Incerteza
Estreia convidados: dia 12 de junho (quinta, às 20h)
Temporada: de 13 de julho a 02 de setembro
Local: Teatro Poeira (Rua São João Batista, 104 – Botafogo – RJ. Tel.: 2537-8053)
Horário: quinta a sábado, às 21h | domingo, às 19h
Ingressos: R$70,00 (inteira) | R$35,00 (meia)
Duração: 80 minutos
Classificação: 16 anos
Gênero: comédia dramática
Horário de funcionamento: terça a sábado, das 15h às 21h | domingo, das 15h às 19h
Vendas online: http://www.tudus.com.br/
Site: www.teatropoeira.com.br

“Uma Peça Para Dois”
Local: Teatro Maison de France
. Av. Presidente Antônio Carlos, 58 – Centro / RJ Tel: (21) 2544-2533
HORÁRIOS: 6ª e sábado às 19h30; domingo às 18h
DURAÇÃO: 80 min
GÊNERO: Drama
CAPACIDADE: 353 lugares
CLASSIFICAÇÃO: 16 anos
INGRESSOS: 6ªf R$70,00; sab e dom R$80,00 / HORÁRIO FUNCIONAMENTO DA BILHETERIA: 3ª a domingo, a partir das 14h / VENDAS POR INTERNET: www.tudus.com.br
TEMPORADA: até 30 de setembro