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Cultura tropical: ameaças do mesmo

“Sou carioca, nasci no Rio. Nasci numa época em que as maravilhas luminosas do Rio ainda pairavam nos cantos e nas falas. De verdade, elas começavam a evanescer, como se uma bela cidade pudesse ser volátil, deixar de ser encantadora por obra humana. Pois não foram os humanos que inventaram as cidades?… E os encantos? Sim, tínhamos encantos naturais – mas eles não foram descobertos – e destruídos – pelos humanos? Como se deu o mergulho no abismo?

 

Por ser carioca, considero que tenho carta branca para tratar do assunto. E insisto. O Rio precisa preservar o último tesouro que lhe resta, a capacidade de produzir arte e cultura, inventar, criar, impressionar as sensibilidades com volteios de corpo e de alma. Se a cidade se tornou decadente, a saída está na nossa mão. Prossigamos, lutemos, inventemos, saiamos do mesmo.

 

Parece que a natureza não ajuda, é hostil, bem sei. Dizem as más línguas que o ser não se desvela a quarenta graus e que, na Avenida Presidente Vargas, ali juntinho da Central, não existe qualquer chance de vida inteligente sob o sol escaldante do verão. E, por isto, inventaram o caosnaval, ops, o carnaval, bem no verão, pois não dá para pensar nada mesmo, segundo o bordão da turma de pessimistas.

 

Não acredito neste limite natural. Defendo a ideia transgressora de que até no carnaval, sambando, cabe o pensamento. O debate é velho. Mas, convenhamos – pensar o quê? O quê está ao nosso alcance para alimentar a máquina do pensamento? O quê nós temos como escola, já que berço, não temos?

 

Sim, temos aristocratas, marqueses, barões e viscondes, uma corte, na verdade, de papelão e purpurina. Não, não estou falando dos sambistas, mas das criaturas esnobes daqui que se pretendem superiores, simulam ter nascido sob extração elevada. São pobres gentes que pretendem se passar por aristocratas, marqueses, barões e viscondes, mas que são, no fundo, cana obrigada. Nascemos no país da cana obrigada.

 

O que é cana obrigada? É um dos capítulos mais rascantes da nossa história, na verdade. Na colônia, éramos plantadores de cana. Brancos, mestiços, escravos. Mas alguns grandes coronéis eram donos de engenho – eram poucos, em cada imensidão, engenho era coisa cara. No Rio, os mais importantes deram nome a bairros – Engenho Novo, Engenho da Rainha, Engenho Velho, Real Engenho (Realengo… real por ter a realeza de ser movido a água). Até a Lagoa Rodrigo de Freitas veio daí.

 

Portanto, ao lado da massa torturada de escravos e ao largo dos índios espezinhados, existiam brancos, mestiços, caboclos pobres, com escravos ou não, plantadores de cana. Esta cana órfã de engenho era obrigada a ser moída em tal engenho e se o freguês não se portasse bem diante do senhor do engenho, este grandioso ser deixava a cana sob o sol, para que secasse e ficasse exaurida de açúcar… Manobra implacável de poder.

 

Para estes senhores da terra, logo destroçados pela História por outros senhores igualmente coronéis, a submissão, a ignorância e o capachismo eram a cartilha básica do povo. E é esta cartilha que se pretende sempre seguir, para enquadrar por aqui corpo e pensamento. O pensamento livre assusta, aterroriza, rompe com o compromisso de seguir gritando a palavra de ordem do momento, ditada pelos poderosos da ocasião. O problema brasileiro persiste sempre: como chegarmos a estruturar uma sociedade de massa com um mínimo de inteligência sem o exercício do pensamento livre? Pensar não mata, o que enforca é o garrote.

 

Pois bem. A Europa, agora, está em guerra: o confronto opõem, no mínimo, a Itália e a França, mas percorre todo o continente e até atravessa o oceano, chega até os EUA. O que está em disputa? Quem fará a homenagem mais densa ao gênio Leonardo da Vinci, no quinto centenário de sua morte. Isto é uma rotina da natureza da vida cultural.

 

Então, a pergunta é: qual é o nosso panteão cultural? Quais as nossas referências de arte, tradicionais, celebradas para definir uma forma – ou a forma – brasileira de ser? Existe isto? Quais os lugares da sensibilidade nacional? Em que altares a nossa cultura reza? Quais são os santos a que rendemos homenagem por sua obra única para a arte e o pensamento aqui?

 

O tema importa muito. E é complexo. Quando olhamos para trás, se jogamos o ponto de partida em 1500, a maior parte do tempo fomos colônia. Só em 2022 faremos duzentos anos de independência – no movimento da História, duzentos anos é quase igual a nada. E isto sem lembrarmos que, na verdade, fizemos a independência, mas continuamos portugueses por um largo tempo, o imperador e todos os mandatários eram portugueses. No teatro, persistimos portugueses, apesar de João Caetano, até o século XX avançado. Vale dizer que a colônia pesa sobre os nossos ombros.

 

Assim, a pergunta de fundo persiste sem resposta: se pouco investimos em educação e cultura – quem somos? A velha evasiva de afirmar a tríplice origem brasileira, fundada numa ciranda de brancos, negros e índios, é uma fórmula ingênua de mascarar o abismo, sublinha o vazio. O fundamental é reconhecer que não existe resposta a priori, pronta, ela precisa ser formulada em movimento, na prática mais densa possível da educação e da cultura. Por enquanto, só temos a pergunta. Nós nos desconhecemos.

 

Assim, neste vazio, incidimos em situações bizarras. Um exemplo? Não comemoramos o tricentenário de nascimento de Antonio José da Silva, o judeu (1715-1738). Alguém haverá de dizer – ah, ele era português! Foi estudar em Coimbra e se tornou o maior comediógrafo do Bairro Alto. Pois foi. E morreu queimado num auto de fé. Ninguém lembrará que ele nasceu aqui, em São João de Meriti, numa fazenda. E que São João era um reduto de judeus, cristãos novos, gente letrada e de considerável contundência intelectual. Também não sabemos a história judia – estes rebeldes da fé – de São João de Meriti.

 

A obra de Antonio José foi absorvida pela tradição dos autores cômicos brasileiros, mas nós nunca estudamos isto. Ela está presente em Martins Pena (1815-1848), que seria o marco inicial da História do Teatro Brasileiro, mas este estudo está por fazer, assim como a avaliação de seus ecos nas peças de Artur Azevedo (1855-1908) e no teatro de revista.

 

Acho estranho o fato de não existir nenhuma rua em São João do Meriti batizada com o nome do judeu. Assim como achei desmoralizante para o país a falta de celebração do bicentenário de Martins Pena, comemorado apenas por uma sensacional montagem do grupo Atores de Laura, montagem, aliás, que não foi reconhecida como deveria. Artur Azevedo, coitado, teve sorte ainda pior: por uma destas travessuras do destino, ele morreu no mesmo ano que Machado de Assis e o Brasil decididamente não tem fôlego para tanto fardão. O maior homem de teatro da história do país passou morto pelo ano festivo, foi alvo apenas de modestas homenagens acadêmicas.

 

Esta semana é uma semana de renovação intensa dos cartazes teatrais da cidade. A cena se agita e, colorida, revela novos projetos, propõe novas formas de ver a vida por aqui, materializa recortes de debates que aquecem as mentes lá fora, cria visões agudas originais do jogo social. Uma beleza – importa reconhecer.

 

Mas… qual o sentido de tudo isto? Lavar gelo? Salgar o mar? Qual a aderência de tanto trabalho de qualidade ao imaginário brasileiro? Qual o impacto de tanta energia criativa no perfil da cidade? Novos governos foram empossados, assumiram as rédeas e, diante da trama das sensibilidades, o que pretendem? Quais os projetos? Teremos mais do mesmo? Quais as escolas que serão convidadas a conhecer estes trabalhos?Qual a chance destes cartazes de excelência permanecerem em cena o bastante para instaurar o encontro teatral com o público?

 

Importa, de verdade, apostar na potência brasileira para a arte. Uma sociedade capaz de dançar nas ruas parodiando os ademanes de uma elite histórica cruel, alienada das necessidades do país, solicita um diálogo de outra densidade com o poder. Já é hora de reconhecer esta dinâmica, esta operação espontânea de ácida inteligência crítica, chão da arte nacional, talvez a maior obra cultural do Rio. A estrutura do riso nacional remonta à realidade da colônia, muito embora não tenhamos pesquisa acadêmica consolidada a respeito.

 

E o que mais temos como tradição fluida, perdida, tropical? O que conseguimos perceber da nossa intensa história do teatro nas cenas de hoje? Cada trabalho começa do zero? Como adensar o nosso olhar, para sabermos mais de nós? As práticas estão aí e precisam ser reconhecidas. No fundo, a escolha é simples. É manter o jogo da cana obrigada ou buscar meios para fomentar uma sociedade menos submetida, portanto mais criativa e inventiva, em sintonia com a própria capacidade para formular o novo e, portanto, criar um outro futuro, sem as sombras das piores formas coloniais. Que toda a arte que criamos venha a nós, é o que nos resta sonhar!

 

SERVIÇOS

AS NOVAS PEÇAS EM CARTAZ

40 anos esta noite
– Texto: Felipe Cabral. Direção: Bruce Gomlevsky. Com Felipe Cabral, Gabriel Albuquerque, Gisela de Castro e Karina Ramil. Teatro Ipanema: Rua Prudente de Morais 824, Ipanema — 2267-3750. Sáb, às 21h. Dom e seg, às 20h. R$ 50. 90 minutos.

 
Antes que a definitiva noite se espalhe em Latino América
– Texto: André Dahmer, Guillermo Calderón, Manuela Infante, Nuno Ramos, Pablo Katchadjian e Rafael Spregelburd. Direção: Felipe Hirsch. Com Debora Bloch, Guilherme Weber, Jefferson Schroeder e Renata Gaspar. Oi Futuro: Rua Dois de Dezembro 63, Flamengo — 3131-3060. Qui a dom, às 20h. R$ 30. 120 minutos (com intervalo). Não recomendado para menores de 14 anos. Até 24 de fevereiro.

 
Cárcere
– Texto: Saulo Lima e Vinícius Piedade. Direção: Vinícius Piedade. Com Vinícius Piedade. Centro Cultural Banco do Brasil (Teatro II): Rua Primeiro de Março 66, Centro — 3808-2020. Qui a dom, às 19h30m. R$ 30. 75 minutos. Não recomendado para menores de 14 anos. Estreia quinta, dia 17 .

 
Chá comigo
– Texto, direção e atuação: Márcia Di Milla e Olívia de Oliveira. Centro Cultural Municipal Oduvaldo Vianna Filho (Castelinho do Flamengo): Praia do Flamengo 158, Flamengo — 2205-0655. Seg e ter, às 17h. R$ 30. 60 minutos. Não recomendado para menores de 10 anos.

 
As crianças
– Texto: Lucy Kirkwood. Direção: Rodrigo Portella. Com Analu Prestes, Mario Borges e Stela Freitas. Teatro Poeira: Rua São João Batista 104, Botafogo — 2537-8053. Qui a sáb, às 21h. Dom, às 19h. R$ 60. 100 minutos. Não recomendado para menores de 14 anos.

 
Evolução
– Texto: Marcos Oliveira. Direção: Marina Gil. Com Marcos Oliveira. Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto (Teatro): Rua Humaitá 163, Humaitá — 2535-3846. Sáb a seg, às 21h. R$ 50. 70 minutos. Não recomendado para menores de 16 anos.

 
Fulaninha e Dona Coisa
– Texto: Noemi Marinho. Direção: Daniel Herz. Com Nathalia Dill, Vilma Melo e Tiago Herz. Teatro Sesi Firjan Centro: Av. Graça Aranha 1, Centro — 2563-4164. Qui a sáb, às 19h. Dom, às 18h. R$ 40. 70 minutos. Não recomendado para menores de 12 anos.

 
Uma intervenção
– Texto: Mike Bartlett. Direção: Clarissa Freire. Com Gabriel Sanches, Pedro Yudi e Ludimila D’Angelis.Teatro Ipanema: Rua Prudente de Morais 824, Ipanema — 2267-3750. Qui e sex, às 20h. R$ 50. 60 minutos. Não recomendado para menores de 12 anos. Estreia quinta, dia 17 .

 
Irmãs gêmeas
– Texto: Adeh Benedito. Direção: Gustavo Mendes. Com Adeh Benedito. Teatro Municipal Café Pequeno: Av. Ataulfo de Paiva 269, Leblon — 2294 4480. Sex e sáb, às 22h. R$ 40. 60 minutos. Não recomendado para menores de 14 anos.

 
Janeiros
– Texto: Raysner de Paula e Maria Gomide. Direção: Rodolfo Vaz. Com Maria Gomide, João Gomide, Isabel Gomide e Luzia Gomide. Caixa Cultural (Teatro de Arena): Av. Almirante Barroso 25, Centro — 3980-3815. Sex a dom, às 19h. R$ 30. 45 minutos. Livre. Até 20 de janeiro.

 
Os javalis
– Texto: Gil Vicente Tavares. Direção: Emiliano d’Avila. Com Lucas Lacerda e Junior Vieira. Teatro Glaucio Gill: Praça Cardeal Arcoverde s/nº, Copacabana — 2332-7904. Qui e sex, às 21h. R$ 40. 60 minutos. Não recomendado para menores de 12 anos.

 
O lado B
– Texto: Gustavo Damasceno. Direção: Marcéu Pierrotti. Com Joelson Medeiros, Flavia Pucci, Charles Asevedo e outros. Cidade das Artes (Sala Eletroacústica): Av. das Américas 5.300, Barra — 3325-0102. Sex e sáb, às 20h. Dom, às 19h. R$ 50. 100 minutos. Não recomendado para menores de 16 anos.

 
A mente capta
– Texto e direção: Bruno Seixas. Com Beatriz Lima, Carol Oliveira, Julia Gilberg e outros. Sede da Cia de Teatro Contemporâneo: Rua Conde de Irajá 253, Botafogo — 25375204. Sáb, às 19h. Dom, às 18h. R$ 50. 70 minutos. Não recomendado para menores de 10 anos..

 
Ricardo III está cancelada
– Texto: Matéi Visniec. Direção: Eliza Pragana. Com Bernardo Nunes, Lafaiete Resende, Luiz Marcondes e outros. Sede da Cia de Teatro Contemporâneo: Rua Conde de Irajá 253, Botafogo — 25375204. Qui e sex, às 20h30m. R$ 50. 90 minutos. Não recomendado para menores de 16 anos.

 
Rio 2065
– Texto: Pedro Brício. Direção: Ivan Sugahara. Com Alcemar Vieira, Guilherme Piva, Leticia Isnard e outros. Centro Cultural Banco do Brasil (Teatro I): Rua Primeiro de Março 66, Centro — 3808-2020. Qua a seg, às 19h. R$ 30. 100 minutos. Não recomendado para menores de 14 anos.

 
Segredo de justiça
– Texto: Andréa Pachá, com dramaturgia de Carolina Lavigne. Direção: Marco André Nunes. Com Alexandre Barros, Carmen Frenzel, Fabianna de Mello e Souza e outros.Teatro Sesc Ginástico: Av. Graça Aranha 187, Centro — 2279-4027. Qui a sáb, às 19h. Dom, às 18h. R$ 30 (quem levar 1kg de alimento paga meia). 90 minutos. Não recomendado para menores de 14 anos. Estreia quinta, dia 17.

 
Solo
– Texto: Fabrício Branco. Direção: Vinícius Arneiro. Com Kadu Garcia, Jansen Castellar, Alliny Ulbricht e Barbara Abi-Rihan. Centro Cultural Banco do Brasil (Teatro III): Rua Primeiro de Março 66, Centro — 3808-2020. Qua a dom, às 19h30m. R$ 30. 80 minutos. Não recomendado para menores de 18 anos.

 
Susto
– Texto e direção: Saulo Sisnando. Com Wendell Bendelack e Rodrigo Fagundes. Teatro dos Quatro: Shopping da Gávea, 2º piso. Rua Marquês de São Vicente 52, Gávea — 2239-1095. Ter e qua, às 21h. R$ 60. 70 minutos. Não recomendado para menores de 14 anos.

 
Trintões e solteiros
– Texto e direção: Fabrisio Coelho. Com Leonardo Gutierrez, Izabella Guedes e Jefferson Jima. Memorial Getúlio Vargas (Sala Zaíra de Oliveira): Praça Luiz de Camões, s/nº, Glória — 2205-8191. Sex, às 19h. R$ 40. 70 minutos. Livre.