Beija-Flor campeã!
Acabou mais um Carnaval, mas este ano não vai ser igual àquele que passou: tradições vão rolar, vão fazer com que a maior festa popular do país conheça uma virada histórica. Frase polêmica? Discordo – graças ao desfile da Beija-Flor de Nilópolis, nunca mais seremos os mesmos. Uma escola de samba conseguiu fazer uma revolução nas nossas vidas. Lá no céu, Joãozinho Trinta está se acabando de sambar. E de rir.
É bom, de saída, deixar bem claro o campo da discussão. Não sou Beija-Flor. Quer dizer, não era – desconfio que larguei a minha escola do coração, Unidos do Vira-Folha, e me tornei Beija-Flor desde o final do desfile da Beija-Flor este ano. Mas, de toda forma, tudo o que aconteceu comigo não foi deliberado, não foi uma paixão cristalizada em mim, não foi uma atitude preconcebida. Não esperava ver o que eu vi, nem reagir assim.
Não fui para a avenida este ano. Apesar de algumas oportunidades, resolvi não desfilar em qualquer escola; no ano passado, saí na Portela. A saúde um pouco hesitante, a canseira por excesso de trabalho, o medo de andar nas ruas da minha cidade se uniram para me jogar na frente da televisão. Sim, eu vi a transmissão dos desfiles pela TV Globo, zapeei no Sambarazo e no face. Sei que isto é ruim, limita a minha visão dos fatos. Mas foi deste lugar que acompanhei a maratona.
Nossa cobertura dos desfiles ainda é muito fraca, sofre de complexo de inferioridade, não acredita no produto maravilhoso que tem diante de si e sonega informações essenciais, que estão nos releases, a respeito do desfile. Apesar da presença do excelente Milton Cunha, que deveria ser obrigado a falar mais sobre as imagens, a cobertura ainda é amadora, com uma visão jornalística discutível, preocupada em divertir o pobre do telespectador que, afinal, está ali por causa do que lhe é negado. A sequência e a edição de imagens é o ponto mais fraco. Melhorou bastante ao longo dos anos, mas ainda é discutível, pois não parte do pressuposto que o desfile tem uma lógica e uma estrutura que devem ficar evidentes.
Dentro destas premissas, diante do que vi e mesmo revi, considero que as escolas, este ano, apresentaram um trabalho de carnaval impressionante. Pressionadas pela crise, sufocadas por um inquietante momento social em que a angústia e a convulsão cega volteiam ao redor de todos, elas responderam com muita garra, muito samba e sob um tom intenso de paixão. E revelaram muito da dinâmica que rege o mundo das escolas, deram a perceber como a arte do samba se estrutura, expuseram muito do diálogo de linguagem que une as escolas.
Sem dinheiro farto, foi essencial ter criatividade em ponto de fusão tropical dos miolos, ter consciência de procedimentos e tradições assentadas e professar uma adesão profunda ao princípio de que o carnaval das escolas é um fato de comunidade e não uma ação do indivíduo. A resposta das escolas na avenida, portanto, agrupou, ao meu ver, em três correntes diferentes as escolas do Grupo Especial – as escolas que fizeram o carnaval dentro da tradição e do andamento vigente, as escolas que inovaram dentro do traçado conhecido e as escolas que rasgaram a fantasia e puseram o grito subterrâneo coletivo, calado e contido, na avenida.
No primeiro grupo, que seriam as escolas que apresentaram um desenho de desfile mais conservador, também houve a pressão da crise e a irreverência e a criatividade diante de orçamentos curtos. Mas, apesar da situação, o desenho do desfile como grande espetáculo, com carros imensos e mesmo suntuosos, fantasias visando provocar fascínio e mostrar ou simular luxo, recursos técnicos caros e elaborados, foi o tom persistente no grupo. A linha reuniu a opção por enredos convencionais, de encomenda ou de homenagem, com os toques de irreverência carnavalesca previsíveis.
Império Serrano, São Clemente, Vila Isabel, Mocidade, Grande Rio, Unidos da Tijuca, União da Ilha e Imperatriz podem ser olhadas sob esta ótica, integram este primeiro grupo. China, Índia, Chacrinha, culinária, tecnologia, Miguel Falabella, EBA, Museu Nacional são temas convencionais, abordados sob as formas convencionais de pensar e de estruturar um desfile. A linguagem do desfile manteve sintonia com tudo o que se tem feito na avenida.
Dois fatos curiosos devem ser destacados. O primeiro, o empenho para ostentar, em escolas não tão prósperas – e a União da Ilha foi o caso gritante de busca de uma nova imagem de riqueza. O segundo, o desejo de escandalizar como vanguarda, situação da Vila Isabel, tradicional reduto das convenções do samba de chão. As duas escolas, na verdade, perderam em furor e torque, aquele dom de incendiar o público, um tanto engessadas pelas novas armaduras.
No segundo grupo, das meninas levadas, figuraram escolas que não optaram por um conceito novo ou por uma mudança radical da concepção do desfile diante do presente. Elas seguiram o figurino tradicional engomado, mas rasgaram as anáguas. Neste bloco, podem ser pensadas Paraíso do Tuiuti, Salgueiro e Portela. Todas inovaram com furor e ímpeto, mas dentro das convenções, amarraram reviravoltas impressionantes a partir dos enredos.
A primeira, seguiu a velha cartilha do desfile, a linguagem corrente, mas trouxe um tema de total explosão das consciências, a reflexão ácida sobre a Lei Áurea, a escravidão e a eterna miséria social brasileira em vigor ainda hoje. O Salgueiro, sério candidato ao campeonato, fez um desfile apaixonante, mas tradicional, apostou as fichas grandiosas e luxuosas em figuras históricas vítimas de dupla exclusão, avalanche de preconceitos – as mulheres negras, senhoras do ventre do mundo. Portanto, ousadia temática radical.
Já a Portela foi desconcertante, arrasou a avenida com um enredo surpreendente e incandescente. A partir de judeus expulsos da Europa pela intolerância no século XVII, radicados no Brasil Colonial sob domínio holandês e expulsos de novo pela intolerância religiosa para a região da futura Nova Iorque, a carnavalesca Rosa Magalhães teceu um desfile de louvação absoluta à liberdade e aos direitos civis humanos, numa época ameaçada por sombrios conservadorismos. E inovou com procedimentos engenhosos simples, de grande efeito visual e impacto sensível. A escola se tornou cotada para o bicampeonato, sem dúvida.
Finalmente, o último grupo, mais radical e muito inovador, das escolas incendiárias. Nele, por ironia dos tempos, ficaram juntas duas escolas que professam estranho antagonismo, quando, a rigor, possuem pontos de estruturação associáveis, transcendental sintonia. Mangueira e Beija-Flor foram as donas do carnaval de 2018, por opções temáticas e artísticas muito ousadas e fortes.
Nos dois casos, o centro da reflexão carnavalesca se inclinou para pensar a crise brasileira. A rigor, a Mangueira, sob a visão do carnavalesco Leandro Vieira, ficou num ponto de vista mais conjuntural, tributário do aqui e agora: sem dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco, a escola cantou e encantou. E seguiu a linha do desfile com carros alegóricos e alas, na tradição recente. Sim, usou carros altos e com sinais exteriores de riqueza e de autoridade plástica, como a Beija-Flor, outrora, sob o comando de Joãosinho Trinta, lutou para impor, para irritação da simplicidade mangueirense de outros tempos.
Assim, a Mangueira foi irreverente no tema, no grito de rebeldia contra o Prefeito Marcelo Crivella, pouco inclinado a reconhecer a importância cultural do carnaval, avesso à força econômica da festa. Para realizar a irreverência com maior impacto, surgiu uma ótica de menos gigantismo, diante das fantasias, materiais, recursos técnicos, desenho da avenida. A irreverência temática contaminou a linguagem e a técnica, mas os conceitos do desfile persistiram em sintonia com os parâmetros do samba.
Uma outra visão se revelou no desfile da Beija-Flor, um incêndio absoluto de valores que se insinuou já no desfile do ano passado, um desfile ousado e revolucionário, pouco compreendido e pouco debatido. Para a Beija-Flor, sob o comando de Laíla, o desfile precisa se tornar outro, apontar para um lugar novo de humanidade, sair da expressão sentimental explosiva antiga, típica do nosso carnaval, para chegar à reelaboração de conceitos humanos e de visão de mundo.
Confesso que chorei durante boa parte do desfile da escola: a proposta incendiária, nova, arrojada, jogada na avenida, me comoveu. A aproximação entre carnaval e teatro, revolucionária, permite o pensamento e a exploração de caminhos totalmente novos para o desfile. Para a Beija-Flor, os velhos procedimentos de divisão do desfile em setores, alas, carros alegóricos, precisam ser revistos em benefício de fluxos temáticos e ilhas de representação.
Neste ano de crise e de dilaceração da sociedade e da alma brasileira, a Beija-Flor trouxe o convite para a reflexão a respeito da ideia de monstro social. A partir do texto de Mary Shelley, Frankenstein, nasce a pergunta a respeito de quem é monstro, como nasce o monstro? O tema proposto foi apresentado na cabeça da escola, na comissão de frente, no primeiro casal de mestre sala e porta-bandeira e no carro abre-alas.
A partir daí, a analogia com a trama de dissolução da sociedade brasileira foi construída com veemência e rigor – a espoliação, a corrupção, a instalação no poder de oligarquias podres dispostas a exaurir a sociedade são retratadas de forma impiedosa. Em paralelo, houve a dissolução das alas, a favor de atos. Eles conduziram o desfile para a pergunta a respeito da importância da expressão livre do povo, materializada no carnaval, arrastão de alegria.
À certeza de que o país precisa de uma revolução social total, política, econômica, mas também de valores e costumes, a favor da grandeza do povo, a Beija-Flor acrescentou a convicção de que uma forma nova de expressão popular precisa nascer. Um novo carnaval, sem a retórica grandiloquente antiga: não é para pedir autorização para brincar ou simplesmente proclamar que se vai brincar, é hora de brincar de outra forma. Em resumo, a Beija foi a grande proponente de uma revolução impactante nos desfiles.
Mas, no conjunto do carnaval, a crise, no entanto, fez o novo despontar por todos os lados, aqui e ali, nas tramas da avenida. Ele apareceu na escolha de materiais novos, inusitados e baratos, na concepção de fantasias-engenhocas surpreendentes, num imaginativo uso da luz, na exploração das cores como fatores de impacto – foi o carnaval dos tons cítricos, no louvor ao passado e às tradições.
A redução dos carros foi um ponto importante, a favor do samba no pé e da dimensão humana do desfile. Os carros-gente de Paulo Barros – carros alegóricos em que a decoração é feita por gente – estiveram por toda a parte, bem como os truques para surpreender ou sugerir outro ponto de vista.
Depois de séculos de afirmação como expressão da liberdade e de liberação dos instintos, tudo indica que o nosso carnaval caminha para a possibilidade de uma redefinição, como manifestação do pensamento social, articulação da prática da festa, da alegria, com o conceito do valor precioso, absoluto, da carne humana. Por isto, o nosso carnaval de hoje se aproxima velozmente do teatro, em busca do pensamento a respeito de si. Se não existe pecado nem limite para a manifestação do desejo do lado debaixo do Equador, é natural que, afinal, a festa da carne se transforme aqui num ritual novo, associado intimamente às ideias mais requintadas do humano.
(…) la liberté et l’égalité ne peuvent être goûtées que dans le vertige
de la folie, et le plus grand plaisir ne séduit au plus haut point que
quand il côtoie de tout près le danger et qu’il jouit dans son voisinage
de sensations voluptueuses à la fois anxieuses et douces.
Goethe, Voyage en Italie (Sur le Carnaval)