Carnaval de cinzas, teatro de fogo

“Acabou o nosso carnaval. O verbo, hoje, é uma ciranda de significados dolorosos. O mais leve é aquele antigo, do é hoje só, amanhã não tem mais… E os outros traduzem uma constatação de arrasar: a falência do Rio de Janeiro. Não dá para ficar calado, deixar de botar o bloco na rua ou a boca no trombone.

 

Por quê o drama? Por uma razão simples – acabar com o carnaval representa a suprema estupidez de acabar com a cidade maravilhosa. Para o Rio continuar lindo, isto é, continuar vivo, não virar uma aldeia fantasma, o carnaval é essencial, é oxigênio, pois a única esfuziante fonte de riqueza que restou para a cidade é o turismo. Precisamos deixar de ser estúpidos e encarar a realidade de frente. Portanto, o novo lema é: ei, você aí, me dá um pandeiro aí.

 

Para quem é carioca de verdade, da gema ou de coração, e acompanha com atenção a história da cidade, não há nenhuma dúvida a respeito do carnaval como peça de ouro do calendário urbano. Cidade metropolitana à beira mar, entrecortada por exuberante floresta, o Rio cintila no verão e, ao fim do calorão, consagra a vida numa festa pagã boa para todo o mundo dançar e cantar na rua.

 

O rito começou como força popular espontânea, apanhou muito da polícia, que corria atrás dos supostos vagabundos, e tomou a vida. Dá para receber uma multidão feliz dos quatro cantos da Terra, doida para ver a coisa pegar fogo. Apesar das polêmicas, a Liesa tem demonstrado imensa competência para a gerência do acontecimento monumental. Tem sabedoria, savoir faire.

 

E se alguém tem queixa a respeito da presença de personalidades discutíveis, contraventores, no poder do carnaval, um lembrete: foram as autoridades que deixaram o carnaval na mão da contravenção. Aliás, convém destacar que personalidades ímpares, de bem, estiveram na liderança do processo. Grande exemplo? O eminente advogado Alcione Barreto (1929-2013), precioso baluarte da Mangueira.

 

Portanto, mãos à obra. A ação objetiva se impõe e já estamos atrasados para 2020. Logicamente, há uma exigência fundamental para que esta vocação consolidada aconteça de fato – a cidade precisa estar nos trinques para receber os visitantes. Ninguém dá festa em casa sem dar uma espanada nos móveis.

 

No caso do Rio, uma concentração urbana cerrada, megalópole, a espanada exige uma prefeitura atuante, dedicada e trabalhadeira. O prefeito não pode ficar na rede. Não dá para admitir uma cidade imunda, deficiente em sinalização e orientação espacial, carente de policiamento de qualidade, para funcionar como polo de atração turística. Este ano foi um fiasco, ficou longe de um tempo recente que passou.

 

Faça um teste simples. Deixe de lado a sua intimidade com o Rio e tente se movimentar pela cidade seguindo as placas de orientação – você vai se sentir vizinho do caos. No carnaval deste ano, as tradicionais faixas de orientação turística para acesso ao sambódromo e para a circulação no centro não foram dependuradas. Oi? Como assim?

 

Mas não é só. Experimente dirigir nas ruas do Rio sem prestar atenção (e desviar) das crateras, sem usar o seu conhecimento antigo a respeito de faixas e pinturas das pistas… Você vai correr risco de vida grave e vai se tornar uma ameaça pública ambulante. Deixar as vias de circulação com as sinalizações apagadas é crime – é urbanicídio e humanicídio.

 

As duas palavras novas expressam o retorno do Rio à velha condição de inferno dos trópicos, cidade que mata gerenciada por gente que deseja matar: os diabos assumiram o poder. Nesta altura do século XXI, com urbanistas e humanistas confundidos nas mesmas pessoas, atentar contra a saúde das cidades e dos seus cidadãos é crime de alta traição à marcha da vida no mundo.

 

E no entanto, é preciso cantar. E dançar. E é tão simples alegrar a cidade. E é tão importante conduzir o cotidiano da polis de uma outra forma. Em primeiro lugar, urge pensar o que fazer com o horrendo elefante branco erguido no centro por razões políticas, contrárias à cultura e à saúde da cidade. O sambódromo está ali, deitado em berço esplêndido, e até as pedras dos morros vizinhos sabem que o carnaval das escolas de samba não cabe mais nele. O sambódromo dançou.

 

Parece idiota querer construir um prédio para engessar o carnaval – uma festa popular, móvel em todos os sentidos, que não para de crescer. E tudo indica que sim, a opção foi idiota de quatro costados e agora, para disfarçar o problema, se faz o velho monta e desmonta erguendo arquibancadas sórdidas móveis sobre o infecto canal do Mangue, para atenuar o fato de que falta espaço para o carnaval.

 

Porcaria pouca é bobagem. Tudo em volta do sambódromo é anárquico, feio, sujo, desorganizado e cheio de ladrões. Espremido numa área urbana movimentada e povoada, o entorno do carnaval, sem sinalização e sem policiamento, é um desacato ao turismo.

 

Numa primeira leitura, dá para imaginar que o destino dos desfiles será a transferência para uma larga avenida na Barra ou no Recreio, sim, com direito a monta e desmonta e muito ar, espaço, etc. O autódromo ou equivalente seriam excelentes opções.

 

A cidade do samba – os barracões das escolas – vai ficar longe. Mas quem mandou? A solução seria montar uma vasta rede de carnaval S.A. no Centro: o sambódromo seria o Museu do Carnaval, com um mercado popular de boxes vendendo artigos de carnaval o ano inteiro, inclusive com lojinhas para cada escola de samba. Ao meio dia ou ao entardecer, haveria um desfile de carnaval para os turistas, como nos grandes parques temáticos do mundo. O povo adora um cortejo.Os barracões iriam para a zona oeste, pertinho do desfile, como manda o figurino.

 

Na cidade do samba, ficariam as casas de show das escolas. Permanentes. Os turistas poderiam, como em Buenos Aires, ver os shows de samba das grandes escolas durante todo o ano (elas até poderiam se associar, uma grande e uma pequena…), com jantar temático típico e todo o potencial de aulas de samba, oficinas de adereços, sessão de fotos/camarim dentro de fantasias e/ou adereços espantosos. As quadras seriam para os ensaios dos desfiles, projetos sociais, vida comunitária. O Rio de Janeiro se tornaria a capital mundial do carnaval.

 

Sim, evidente, não haveria o funcionamento de escola regular, estabelecimentos para a educação, no sambódromo – já se tornou óbvio que o calendário da casa é incompatível com a seriedade do ensino. As crianças que estudam no sambódromo são muito sacrificadas.Enfiar as crianças em escolas no sambódromo é crime de lesa-cidadão. Desconfio que as escolas de samba nasceram por uma razão simples: faltava escola para o povo e, então, o povo resolveu criar as suas próprias escolas, com a sua própria arte, o samba. Durante longo tempo, apanharam da polícia por causa da ousadia, mas este tempo passou, como passou o tempo em que o tango argentino era uma dança dos puteiros exercitada pelos homens na madrugada.

 

Não há mais o que demonizar no carnaval: nossos demônios são os políticos atrasados que se recusam a ver a marcha do mundo. Se existe pornografia no carnaval, existe em qualquer lugar, basta ter gente que acha que carne humana é objeto e negócio. Para o carioca de raiz, de boa cepa, carnaval é um amor esfuziante à vida, uma exuberância de ser, uma alegria de viver em estado puro, uma boa aula para o Rio dar ao amargor do mundo. Quem gosta de carnaval de verdade jamais perde tempo com pornografia, não dá para perder a chance de dançar livre e brincar com a vida sem amarras.

 

Um debate quente é sobre a natureza mesma do carnaval – se ele é arte ou não, se é apenas expressão crua, imediata, se ele vigora solene sobre a vida ou se é arrastado de roldão pela marcha dos dias que passam, incorporando fatos do imediato que, amanhã, estarão esquecidos, como os pequenos confetes entranhados na lama da calçada ou as fantasias rasgadas jogadas no lixo. O carnaval é apenas parte de uma possibilidade de libertação cidadã plena? Portanto, não é arte, mas transbordamento da expressão humana imediata, universal?

 

Os que desejam fazer do carnaval arte tentam, hoje, pesquisar a mudança da linguagem, explorando mais do que o canto e a dança, através de formas teatrais. Elas estão aparecendo muito nas comissões de frente – e mais de uma comissão atrapalhou a escola inteira por causa de uma imobilizante teatrite aguda. Mas as formas teatrais estão em debate também dentro do cortejo dos desfiles, como um desdobramento das velhas alas ensaiadas e de passo marcado.

 

Após mais um ano de experimentos, neste carnaval parece ter surgido a percepção de que o tempo do teatro é outro, difere do tempo da expressão, que precisa ser direta, fluída, objetiva, impactante. De certa maneira, o teatro começa quando acaba o carnaval. Portanto, teatro dentro do carnaval pode ser cicuta no folião. Importa reconhecer o carnaval por si, como tal, livre, leve e solto.

 

E nesta cidade triste, abandonada, suja, mal amada por governantes despreparados para os seus cargos, incompetentes como os passistas doentes do pé, acabou o carnaval e o teatro tenta retomar os palcos. Vida que segue, tudo passa sobre a Terra, como disse o José de Alencar amado que este ano acabou na Ilha. Os detestáveis governantes urbanicidas nada fazem a favor do carnaval, a favor da cidade, a favor do cidadão e, claro, a favor do teatro, que poderia nas cinzas ficar bem na fita, brilhar com fulgor varonil nos palcos da cidade. Se os capciosos do poder não gostam de carnaval, por que diabos não prestigiam o teatro?

 

Cá está a velha arte de volta, batida e alquebrada, como se nesta miséria tropical valores culturais mais elevados do que a buraqueira urbana, as torrentes das chuvas agravadas pelos bueiros entupidos, as ruas transfiguradas em caminhos de bois, não tivessem nem sentido, nem lugar.

 

Belas estreias povoam o começo do ano civil carioca, aquele que só pode ser iniciado depois do carnaval passar. Mas são estreias heroicas, construídas com suor e sem cerveja, como se o fato do Rio ter sido a capital cultural do país não tivesse o menor sentido no presente. Vale ir ao teatro para ver a vitalidade inacreditável do povo dos palcos, aquela raça cheia de garra que persiste defendendo a exuberância profunda do ato de viver, mesmo que esta exuberância, para os poderosos, seja só mais um pobre carnaval de malditos, algo para matar, para acabar de vez.

 

SERVIÇO
Fotos: Cole Porter Ele Nunca Disse que me Amava e desfile da Imperatriz Leopoldinense, dedicado ao dinheiro, resultado triste para uma grande escola.

Confira as principais estreias desta semana pós carnaval –
 
A verdade – Texto: Florian Zeller. Direção: Marcus Alvisi. Com: Diogo Vilela, Claudia Ventura, Carolina Gonzalez e Paulo Trajano. Teatro Maison de France – 350 lugaresAv. Pres. Antônio Carlos, 58 – Centro – Rio de Janeiro.21 – 2544-2533. Período: 15 de março a 26 de maio. Quinta 17h30min R$ 80, e R$ 40, Sexta e Sábado 19h30min R$ 90, e R$ 45, Domingo 18h30min R$ 90, e R$ 45. Duração: 80 min. Classificação: 12 anos.

 
Como se um trem passasse – Texto e direção: Lorena Romanin. Com Dida Camero, Caio Scot e Manuela Ha. Teatro Poeirinha: Rua São João Batista 104, Botafogo — 2537-8053. Qui a sáb, às 21h. Dom, às 19h. R$ 60. 70 minutos. Não recomendado para menores de 12 anos. Até 28 de abril.

 
Felizes mortos -Texto: Denise Portes, Joana Kannenberg, Júlia Portes e Lucas Lacerda. Direção: Lucas Lacerda. Com Joana Kannenberg e Júlia Portes. Reduto: Rua Conde de Irajá 98, Botafogo — 3797-0100. Sex e sáb, às 20h. R$ 40. 70 minutos. Não recomendado para menores de 14 anos. Até 30 de março.

 
Menines -Texto: Marcia Zanelatto. Direção: Marcia Zanelatto e Cesar Augusto. Com Simone Mazzer, Agnes Lobo, Bruno Maria Torres, Elisa Caldeira e outros. Teatro Firjan Sesi: Av. Graça Aranha 1, Centro — 2563-4163. Qui a sáb, às 19h. Dom, às 18h. R$ 40. 70 minutos. Não recomendado para menores de 14 anos. Até 14 de abril. Estreia quinta, dia 14.

 
Palhaços – Texto: Timochenko Wehbi. Direção: Alexandre Borges. Com Dedé Santana e Fioravante Almeida. Teatro Clara Nunes: Shopping da Gávea, 3º piso. Rua Marquês de São Vicente 52, Gávea — 2274-9696. Qui, às 17h. Sex e sáb, às 21h. Dom, às 20h. R$ 40 (qui) e R$ 90 (sex a dom). 60 minutos. Não recomendado para menores de 12 anos. Até 14 de abril. Estreia quinta, dia 14.

 
Por favor venha voando. Texto: Pedro Kosovski. Direção: Georgette Fadel. Com Debora Lamm e Inez Viana. Centro Cultural Banco do Brasil (Teatro II): Rua Primeiro de Março 66, Centro — 3808-2020. Qui a seg, às 19h30m. R$ 30. 80 minutos. Não recomendado para menores de 14 anos. Até 29 de abril.Estreia quinta, dia 14.

 
O preço – Texto: Arthur Miller. Direção: Gustavo Paso. Com Romulo Estrela, Erom Cordeiro, Glaucio Gomes e Luciana Fávero. Sesc Copacabana. (Teatro de Arena): Rua Domingos Ferreira 160, Copacabana — 2547-0156. Qui a dom, às 19h. R$ 30 (quem levar 1kg de alimento paga meia). 90 minutos. Não recomendado para menores de 12 anos. Até 31 de março. Estreia quinta, dia 14.

 
O som e a sílaba. Texto e direção: Miguel Falabella. Com Alessandra Maestrini e Mirna Rubim. Teatro XP Investimentos: Jockey Club. Av. Bartolomeu Mitre 1.110, Leblon — 3807-1110. Qui a sáb, às 21h. Dom, às 20h. R$ 50 (plateia superior), R$ 100 (plateia). 90 minutos. Não recomendado para menores de 14 anos. Até 21 de abril. Estreia quinta, dia 14.

 
Cole Porter – ELE NUNCA DISSE QUE ME AMAVA – Direção – Charles Möeller. Direção musical – Claudio Botelho. Com Alessandra Verney (Bessie Marbury), Analu Pimenta (Elsa Maxwell), Bel Lima (Kate Porter), Gottsha (Ethel Merman), Malu Rodrigues (Angelica) e Stella Maria Rodrigues (Linda Porter). Coreografias – Charles Möeller. Arranjos musicais – Marcelo Castro. Figurino – Marcelo Marques. Cenário – Rogério Falcão. Design de Som – Marcelo Claret. Iluminação – Paulo Cesar Medeiros. Coordenação artística – Tina Salles. Produção – Luciana Conde. Produção executiva – Carla Reis. Theatro Net Rio – Tel (21) 2147-8060. Rua Siqueira Campos 143, Copacabana Temporada de 15 de março a 28 de abril Sexta 20h, sábado 21h, domingo 17h Duração: 100 minutos Ingressos: Sextas: R$ 130,00 plateia e frisa; R$ 100,00 Balcão 1; R$ 50,00 Balcão 2