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O projeto viking e o teatro cotidiano

Cada alma tem os seus segredos. Não existe a menor chance de encontrarmos uma alma transparente, cristalina. Confesso aqui um segredo guardado a sete chaves desde a infância: adoraria ser prefeita da muy leal e histórica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Um outro segredo paralelo soa doloroso: sei muito bem que jamais seria eleita, pois os meus projetos para a cidade desagradariam aos gregos, aos troianos e até à torcida do meio, aquele povo insípido que não sai nunca de cima do muro. Seria unanimidade negativa.

Lembro, nestas horas, para me consolar, de um funcionário de uma escola em que trabalhei. Ele sempre se candidatava, a cada eleição. E, no resultado final, nunca conseguia sequer um voto, nem ele votava nele. A eleição servia para que ele tirasse uns meses de licença e, assim, fizesse uns extras para engordar o magro contracheque.

Não, eu não seria um blefe comparável, não seria uma candidata decorativa, só para constar ou ter uns meses de férias de mim. Eu seria candidata para valer. Projetos impactantes sacudiriam o chão sofrido desta urbe, de Copacabana a Santa Cruz. Confesso que o eleitorado nem sequer imagina as coisas loucas que já criei para transformar em paraíso esta cidade perdida.

Com certeza tenho amor ao leitor e não vou aqui cansá-lo com estes projetos delirantes, concebidos ao longo de tantas eleições, projetos hábeis para transformar a cidade giasminosa na nova maravilha do mundo. Quero apenas divulgar este meu grande segredo e, já que as eleições se aproximam, dar a conhecer um projeto que desta feita eu, eleita, colocaria em prática.

Seria algo simples, bem mais barato do que despoluir a nossa água definitivamente poluída e arruinada,  deste rio defunto chamado Guandu. Conheço o Guandu desde a minha infância, visitei as obras de construção do reservatório e posso garantir que a sua água já tinha aparência mais do que duvidosa naquela época. Não, proponho modéstia. Vejamos.

O projeto seria chamar todos os meus concidadãos para o meu sonho. Opa! Quer dizer, faria uma campanha para que se tornassem todos, sem exceção, prefeitos. E cuidassem da cidade e de seus interesses como as velhas raposas felpudas da política nacional cuidam dos cofres públicos e dos próprios bolsos.

Neste meu projeto – grande surpresa – apesar de tantas cabeças para alojar no palácio do governo, não faltariam cadeiras. Pois o nosso palácio seria um deslumbrante teatro. Não construiria um prédio novo, de saída, de jeito algum, o Teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes, seria a sede do governo.

Ainda que sem fazer reformas onerosas, o palácio viveria em festa, portas abertas para os cidadãos. Como o prédio é enorme, tem muitos espaços, várias atividades de formação, difusão e de aperfeiçoamento em teatro seriam oferecidas.

Mas, atenção – considerando a situação de calamidade da sofrida cidade, os dois primeiros anos, emergenciais, seriam de ‘cura’ urbana, um projeto monumental para revirar a alma da cidade pelo avesso. Qual seria este projeto imediato, inicial?

Um acordo internacional para transformar o Rio de Janeiro e Oslo em cidades irmãs. Faríamos uma troca cultural intensa – eles nos mandariam teatro clássico, de alta envergadura, nós mandaríamos carnaval. Confesso que o meu olhar para este tal teatro clássico, grande teatro, tem endereço certo. E tem nome: Henrik Joahn Ibsen (1828-1906).

Sob a orientação de um diretor norueguês aclamado – poderia ser o meticuloso Erik Ulfsby, um nome adequado para tratar o belo autor – teríamos um programa Ibsen de dois anos. Uma peça, O Inimigo do Povo, versão integral, ficaria em cartaz todo o tempo. Aliás, eu própria lideraria um movimento para que O Inimigo do Povo ficasse em cartaz aqui para sempre, tipo cena imortal carioca.

Para o teatro ser mesmo uma festa e ficar ocupado a todo o pano, cortinas abertas, seriam encenados, estudados, lidos, trabalhados todos os textos do autor. O cidadão ficaria impregnado de Ibsen, do cocuruto da cabeça até a sola dos sapatos. Ninguém passaria de ano, no segundo grau, se não fosse capaz de recitar Ibsen de cor e salteado.

A casa seria aberta para escolares, claro, sempre. Especialistas fariam palestras, comandariam debates. O foco maior seria, a partir de O Inimigo do Povo, debater o que é o cidadão, o que faz a grandeza humana, de que carne cívica, abstrata, não-humana, uma cidade precisa ser feita.

Podem deduzir logicamente que não seria um projeto radical, nem penso que o seu custo fosse proibitivo. As montagens seriam teatrais, cenográficas, nada de vanguardismo, mas se resumiriam a servir aos textos.

Talvez convencêssemos o planalto central a fazer um acordo de amizade fraterna com a Noruega: Brasil e Noruega se tornariam países irmãos. Eles nos trariam a sua seriedade, a sua profunda dimensão humana e dramática. Nós lhes daríamos aulas de carnaval, inconsequência, gingado e a alegria gratuita inexplicável que brota por aqui.

Estudantes de teatro noruegueses fariam residência no sambódromo e na Cidade do Samba, exportariam algo desta festa monumental. Nossos estudantes, em contrapartida, mergulhariam na armadura técnica reluzente de um teatro oficial que honra a sua história e se respeita.

Eles são campeões em IHDL – nós somos diplomados na indiferença frente à miséria. Eles pagam impostos altíssimos, elegem políticos preocupados em servir à nação e têm serviços públicos de alto padrão. Nós pagamos impostos altíssimos, elegemos políticos que, como nós mesmos, têm imensa dificuldade para entender o que é a coisa pública e temos serviços públicos miseráveis.

Talvez ao final dos dois primeiros anos de projeto concluíssemos que vikings somos nós. De toda a forma, a ideia central prima pela positividade: a defesa de uma rotina cívica de celebração, festa, impregnada por grandes textos e ideias transcendentais de alto coturno. Sem ironia, celebraríamos de verdade a grande arte pública.

Sim, temos grandes festas teatrais – nesta terça, o Prêmio Cesgranrio de Teatro, o maior prêmio do teatro brasileiro, vai fazer a nossa maior festa, na noite linda Copacabana Palace. O ar de Copacabana vai ferver de alegria artística, com uma celebração grandiosa do talento brasileiro. Mas um dia é pouco para mudar uma cidade que afunda na falência histórica. Precisamos de uma obra de reforma urgente.

O que vamos providenciar como alicerce? O valor humano, claro, o sentido maior da Humanidade. Não está à venda. Isto só se consegue com o teatro – remédio testado e aprovado desde a Grécia. Ele está ao alcance da mão, mas nós não estamos cuidando nada desta farmácia.

Basta olhar os cartazes teatrais – inclusive em São Paulo – para constatar como estamos respirando leve, boiando ao largo, alheios à gravidade do momento. Estamos fazendo um teatro pedestre, de superfície. Não é errado ter enxurradas de stand up, montanhas de comédias, maremotos de textos-espelho da vidinha ao redor.

O problema é ter só isto, viver sempre na ausência de produções dramáticas monumentais, tragédias, clássicos, voos poéticos densos, visões da história e da tradição. Os grandes textos passaram a aparecer por aqui sob foco reduzido, apenas para funcionar como pretexto para alguma discussão imediata, experimentações, vanguardite.

Ok, mas falta mostrar o tal do grande texto… perceber as linhas fortes que estão ali e resistem ao tempo. Um dado curioso precisa ser sublinhado – os grandes temas até aparecem por aqui, confinados nos musicais. Já estamos colecionando gerações que nunca viram em cena um grande texto.

Portanto, não hesitem: se quiserem uma mudança radical desta cena de sensações epidérmicas, na próxima eleição, acabou o mistério: votem em mim. Isto, fique bem claro, se eu realmente me decidir a assumir o partido viking e, afinal, me candidatar.

Serviço:

Foto – Teatro Nacional, Oslo, Noruega.

Decida aqui quais são os seus candidatos – finalistas do Prêmio CESGRANRIO de Teatro de 2019:

MELHOR FIGURINO

João Pimenta por “Ao Som de Raul Seixas ‘Merlin e Arthur, Um Sonho de Liberdade’”

Marcelo Marques por “Cole Porter – Ele Nunca Disse Que Me Amava”

Marcelo Marques por “O Despertar da Primavera”

Ney Madeira e Dani Vidal por “A Cor Púrpura – O Musical”

Ronaldo Fraga por “Nastácia”

Tiago Ribeiro por “Interior”

MELHOR CENOGRAFIA

André Cortez por “Sísifo”

Bia Junqueira por “Eu, Moby Dick”

Natália Lana por “A Cor Púrpura – O Musical”

Rodrigo Portella e Julia Deccache por “As Crianças”

Ronaldo Fraga por “Nastácia”

Stephane Brodt por “Jogo de Damas” 

MELHOR ILUMINAÇÃO

Paulo César Medeiros por “As Crianças”

Paulo César Medeiros por “O Despertar da Primavera”

Renato Machado por “3 Maneiras de Tocar no Assunto”

Renato Machado por “Eu, Moby Dick”

Renato Machado por “Jogo de Damas”

Rogério Wiltgen por “A Cor Púrpura – O Musical”

MELHOR ATOR

Caio Scot por “Como Se Um Trem Passasse”

Kiko Mascarenhas por “Todas as Coisas Maravilhosas” 

Leonardo Netto por “3 Maneiras de Tocar no Assunto”

Mario Borges por “As Crianças”

Odilon Esteves por “Nastácia”

Thelmo Fernandes por “Diário do Farol – Uma Peça Sobre a Maldade”

MELHOR ATOR EM TEATRO MUSICAL

Alan Rocha por “A Cor Púrpura – O Musical”

Patrick Amstalden por “Ao Som de Raul Seixas ‘Merlin e Arthur, Um Sonho de Liberdade’”

Saulo Segreto por “Ao Som de Raul Seixas ‘Merlin e Arthur, Um Sonho de Liberdade’”

CATEGORIA ESPECIAL

Anna Turra, Camila Schmidt e Rogério Velloso pelo Set Design, videodesign, cenografia e iluminação de “Ao Som de Raul Seixas ‘Merlin e Arthur, Um Sonho de Liberdade’”

Bel Kutner pela direção artística da Cidade das Artes

Celina Sodré pelos 10 anos de atividades do Instituto do Ator

Diego Teza pelas traduções de “As Crianças”, ‘’Todas as Coisas Maravilhosas” e “Meninas e Meninos”

Marcia Rubim pela direção de movimento de “3 Maneiras de Tocar no Assunto”

Valéria Monã pela direção de movimento de “Oboró – Masculinidades Negras”

MELHOR ATRIZ

Ana Beatriz Nogueira por “Relâmpago Cifrado”

Analu Prestes por “As Crianças”

Claudia Ventura por “A Verdade”

Flávia Pyramopor “Nastácia”

Jéssika Menkel por “Cálculo Ilógico” 

MELHOR ATRIZ EM MUSICAL

Bel Lima por “Cole Porter – Ele Nunca Disse Que Me Amava”

Evelyn Castro por “Quebrando Regras – O Musical – Um Tributo a Tina Turner” 

Flavia Santana por “A Cor Púrpura – O Musical”

Kacau Gomes por “Ao Som de Raul Seixas ‘Merlin e Arthur, Um Sonho de Liberdade’”

Letícia Soares por “A Cor Púrpura – O Musical”

MELHOR DIREÇÃO

Daniel Herz por “Cálculo Ilógico”

Fabiano de Freitas por “3 Maneiras de Tocar no Assunto”

Felipe Hirsch por “Antes que a Definitiva Noite se Espalhe em Latino América”

Marcio Abreu por “Por que não vivemos?”

Miwa Yanagizawa por “Nastácia”

Rodrigo Portella por “As Crianças”

MELHOR DIREÇÃO MUSICAL

Claudio Botelho por “Cole Porter – Ele Nunca Disse Que Me Amava”

Fabio Cardia e Jules Vandystadt por “Ao Som de Raul Seixas ‘Merlin e Arthur, Um Sonho de Liberdade’”

Marcelo Castro por “O Despertar da Primavera”

Tony Lucchesi por “A Cor Púrpura – O Musical”

Tony Lucchesi por “Quebrando Regras – O Musical – Um Tributo a Tina Turner”

MELHOR TEXTO NACIONAL INÉDITO

Jéssika Menkel por “Cálculo Ilógico”

Leonardo Netto por “3 Maneiras de Tocar no Assunto”

Luciana Pessanha por “Os Desajustados”

Márcia Zanelatto por “Ao Som de Raul Seixas ‘Merlin e Arthur, Um Sonho de Liberdade’”

Miriam Halfim por “Freud & Mahler”

MELHOR ESPETÁCULO

“3 Maneiras de Tocar no Assunto”

“A Cor Púrpura – O Musical”

“Diário do Farol – Uma Peça Sobre a Maldade”

“As Crianças”

“Cálculo Ilógico”

“Todas As Coisas Maravilhosas”