High-res version

A arte e a marcha do mundo

Importante frisar, destacar, chamar a atenção: obras de arte não são registros objetivos de fatos e situações. São criações simbólicas, imaginárias, obras de fantasia estruturadas para ampliar a noção do humano. Não são panfletos. Não são pregação.

Portanto, uma obra a respeito do universo gay pretende nos levar a perceber a pluralidade do humano hoje e não nos revelar o que é a vida dos gays. Nesta altura da idade do mundo, o ato importante – e urgente – é a compreensão mais ampla do humano. Transformar o humano, sob a ordem do amor.

Uma prova? Corra para ver A Golondrina, de Guillem Clua, cartaz do Teatro Ginástico. É teatro no sentido maior da palavra – a boa e velha dramaturgia está em cena sob um tom novo, com o seu arsenal de procedimentos mais requintados, para mergulhar a sensibilidade da plateia numa torrente arrebatadora de humanidade. É imperdível.

A direção de Gabriel Fontes Paiva explora a inteligência do texto no mais alto grau. Através de um diálogo poético exemplar com  a cenografia preciosa de Fabio Namatame (também criador dos figurinos, exatos) e a luz, desenhada com rigor, de André Prado e do diretor, Paiva revela de saída a escolha de focalizar a estrutura rígida do jogo da vida. A cena da abertura, linda, um quadro vivo, indica o caminho.

Nesta linha, a sala da casa de Amélia, musicista e professora de canto, mas uma mulher de natureza seca, evasiva, aparece como uma estrutura elegante, mas exaurida. Ela perdeu o seu único filho no atentado ao bar Pulse, em Orlando. O jogo das luzes na estrutura retilínea das estantes sugere o propósito da cena: iluminar a aridez, para vencê-la.

Tania Bondezan (Amélia) domina o palco como uma espécie de mãe-fera, com um amor capaz de governar o mundo, ainda que às cegas. O seu desempenho comove pelo preciosismo, pela densidade e pelos matizes arrebatadores. A rigor, ela nada sabe a respeito de seu próprio filho: a grande história de amor que os uniu foi tão monumental que o essencial nunca foi dito, foi uma história de não ditos. A peça é o desvendamento deste lugar de segredo, para a eclosão de um vendaval de amor ainda maior, muito maior do que o amor de mãe corrente, habitual. Um desafio que a atriz vence com extremo brilhantismo.

Luciano Andrey se beneficia de sua juventude técnica para realçar a timidez, a insegurança e o desconforto do namorado – Ramón é um personagem-ferramenta cujo sentido é, exatamente, levar a mãe de Danny à transformação profunda. Apaixonado, de luto ainda pela morte do homem de sua vida, com quem ia se casar, ele conduz o caminho da ignorância para a consciência, uma espécie de platonismo pagão.

Ao final, o estado de emocionante amor ao mundo que se instala no palco envolve a plateia de uma forma arrebatadora. Não se trata de reedição do velho melodrama, o caso não tem qualquer proximidade com as desgastadas dramaturgias lamurientas ou sentimentalóides. A cena – lamento contrariar os ácidos pós-modernos de plantão – não representa um uso, para um tema novo, de uma forma antiga.

Trata-se, na verdade, da nova dramaturgia – algo assim comparável, em pintura, com a nova figuração. A reforma só podia ser proposta pelo poderio teatral espanhol-catalão, uma terra em que o arte do teatro está profundamente alicerçada por toda a parte.

Na obra, Guillem Clua usa as estruturas dramáticas convencionais, os procedimentos clássicos, para não apenas servir a um assunto do presente, mas para demonstrar, em cena, o processo de transformação do ser humano, processo essencial para a marcha do mundo hoje. É, portanto, uma dramaturgia em movimento, na qual a dolorosa peripécia do papel protagonista não significa uma derrocada, mas, antes,  uma elevação, com a sua transformação num ser outro, melhor.

Sim, somos mutantes – estamos passando de formas rígidas, pouco maleáveis, moldadas por instituições, jogos de poder antigos e formas de pensar cristalizadas, a estruturas inteligentes flutuantes, dinâmicas, em interação livre com a realidade. Esta é a nova forma humana que o mundo precisa. E exige. Urge soprar a poeira dos séculos amontoada nos cérebros e nas almas.

Neste jogo, não há mais lugar para o desrespeito ou até mesmo o descaso frente às múltiplas formas da individualidade. O ser humano tem que ser livre. Pode ser gay, lunático, roxo, fosforescente, estratosférico ou o que for – cabe a nós respeitá-lo, amá-lo, reconhecer nele a beleza da vida, a força existencial geradora de tudo.

Quem nos guia o caminho? A arte. Para isto inventamos a arte. Ela não obedece à ninguém, segue apenas as necessidades da sensibilidade no mundo. Este é o grande propósito da arte. Por isto precisamos tanto dela por aqui.

Ficha Técnica

Autor: Guillem Clua

Tradução: Tania Bondezan

Direção: Gabriel Fontes Paiva

Elenco: Tania Bondezan e Luciano Andrey

Cenógrafo e figurinista: Fabio Namatame

Assistente de direção: Ana Paula Lopez

Desenho de luz: André Prado e Gabriel Fontes Paiva

Trilha Sonora: Luisa Maita

Preparação Vocal: Jonatan Harold

Montagem/Direção de Cena/Contrarregra: Tadeu Tosta

Produção: Ronaldo Diaféria, Odilon Wagner e Tania Bondezan
Produção executiva: Marcos Rinaldi

Foto: João Calda Filho

Assessoria de imprensa: Ney Motta

Serviço

A Golondrina

Autor: Guillem Clua

Tradução: Tania Bondezan

Direção: Gabriel Fontes Paiva

Elenco: Tania Bondezan e Luciano Andrey

Teatro Sesc Ginástico

Endereço: Av. Graça Aranha, 187, Centro, Rio de Janeiro.

Telefone: (21) 2279-4027

Temporada: 16 de janeiro a 16 de fevereiro de 2020.

Quintas, sextas e sábados, às 19h, e domingos, às 17h.

Ingressos: R$ 30 (inteira), R$15 (meia-entrada) e R$ 7,50 (habilitado Sesc)

Doação de 1kg de alimento garante 50% de desconto em todas as categorias.

Capacidade: 500 lugares

Duração: 90 minutos

Classificação: 14 anos

Atendimento à Imprensa: Ney Motta