A loucura e a realidade
Sina de brasileiro. Roteiro de cabeça para baixo. Voltar de férias, com frequência, parece um trajeto ao contrário. A pessoa sai, circula pelo desconhecido pacífico, volta e mergulha num turbilhão guerreiro surpreendente novidadeiro. Confusão para todos os lados. Em poucos dias, perde-se o pé. Dá para suspirar – que país!
Ao menos desta vez a reviravolta foi positiva, na minha opinião. Sim, lá vem polêmica. Adoro. Surge a chance, para os que não estão na vida para fazer política por política, mas, sim, antes, política para a vida, de chegarmos a uma situação mais positiva.
Sei bem que este pensamento desagrada aos que desejam a revolução amanhã de manhã e ponto. Já passei desta fase: hoje, luto por melhorias de vida na sociedade aqui e agora, não importa quem está no poder, se foi alguém que recebeu o meu voto ou não. O meu interesse é o jogo democrático em benefício da vida coletiva. Não vou desistir de cobrar o melhor de quem está no poder.
Entendi esta lição política simples a partir da ação de Betinho, o sociólogo Herbert de Souza (1935-1997). Outrora, eu achava que agir desta forma, em sintonia com o andamento da realidade, era concessão política inaceitável. Depois, diante das argumentações – e dos resultados – da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, concluí que no Brasil é fundamental um movimento cidadão amplo a favor da mudança da sociedade.
Quem tem fome não pode esperar, a frase é célebre e fundamental. E sanar a fome significa caminhar para a completude cidadã. Isto, cidadania plena. Portanto, o movimento passa pela expansão máxima da cultura na vida brasileira. Lembro sempre da música: “…não é só café que nós temos pra vender, dribla, dribla, Mané, para o mundo todo ver…”
Existe uma genialidade brasileira que brota nas esquinas, nas várzeas, nas escolas arruinadas que nós dedicamos, desleixados, para as nossas crianças. No carnaval, nas festas populares, nas feiras, por toda a parte se pode ter ideia desta alma brasileira criativa infinita. Portanto, há uma fome simbólica, imaginária, criativa, pressionando para ter voz, espaço e alimento. Talvez seja a hora de reconhecer que fracassamos em tudo: ciência, tecnologia, saúde, educação… Nestes setores, precisaremos de investimentos brutais e só veremos resultados em vinte anos ou mais. Mas, na cultura, não.
A cultura é aqui e agora. A cultura é a nossa única esperança para alcançarmos dignidade humana na vida social. E lavarmos um pouco a alma diante do mundo. Investimentos consideráveis precisam ser feitos, a atitude do poder diante da cena da arte e da cultura precisa ser radicalmente nova, e os resultados surgirão com bastante rapidez. Os artistas estão aí – a população, no seu conjunto, tem um imenso potencial para a arte. Precisamos libertar a arte e a cultura, lançá-las nas ruas.
Neste quadro, sim, foi muito difícil, lamentável mesmo, constatar o fracasso vertiginoso, dia a dia, de Roberto Alvim à frente da política cultural do país. Além do seu despreparo e da sua imaturidade, tornou-se constrangedor perceber que, afinal, ele não sabia o que fazer com o poder que, de repente, alcançou. Creio que este foi o ponto nevrálgico: ele não sabia o que fazer com o brinquedinho novo que lhe deram.
Apenas um brinquedinho novo: o gatilho para a instalação completa da loucura. Pois, vale frisar, e ter até alguma compaixão por causa disto, Roberto Alvim enlouqueceu completamente. A insanidade ganhou a pessoa do artista. Ele não aguentou o fardo.
O episódio final da sua curta gestão foi altamente constrangedor. No vídeo, ele se empolou de arrogância como um louco varrido para o anúncio do que seria o novo prêmio das artes, na verdade (que ridículo!) o anúncio do velho edital para distribuição de verbas (pífias) para a produção de arte. Era simplesmente uma versão modesta do visto e revisto Prêmio Myriam Muniz.
Numa cena-paródia-a-sério de Goebbels, personagem execrável imitado do figurino ao visagismo, o secretário apresentou o que ele pretendia que fosse o início de uma nova era cultural do país. Um montante de verba ridículo, distribuído irmãmente por regiões do país absolutamente diferentes em suas dinâmicas culturais, seria, a seu ver, a grande notícia da noite. O efeito não poderia ser mais catastrófico – nenhuma voz se projetou em defesa do pobre miserável, incapaz de efetivamente apresentar um projeto para a cultura nacional. Foi um escândalo internacional. A própria Alemanha repudiou a atitude.
Diante dos olhos estarrecidos do país, uma cena de hospício. Creio que se o desempenho de Roberto Alvim fosse analisado por uma equipe de psiquiatras e de psicanalistas, o diagnóstico seria conclusivo e unânime: enlouqueceu. Fora a insanidade absoluta, da qual já dera mostras anteriormente, nada explica a performance canhestra. Nem a política, pois a proposta não tinha consistência, não tinha a menor monumentalidade para ser o que poderia pretender ser. O projeto em si era tão modesto que não dava nem para ser uma proposta nazista, além da casca da representação.
Conheci Roberto Alvim jovem, autor e diretor de teatro, ambicioso e bastante autoritário. Tinha liderança natural forte, mas incomodava por ser um pouco mais impositivo do que o aceitável. As qualidades, apesar de seu alcance negativo, foram alavancas eficientes para que liderasse uma turma de sua geração, devotada à nova dramaturgia e à invenção teatral.
Naqueles tempos, empreendedor, ativo, dedicou-se sempre a um teatro de experimentação avançado – um pouco aquilo mesmo que, recentemente, passou a repudiar. Um teatro para plateias pequenas engajadas na visão do futuro. A sua pressa fazia com que os seus textos, muito embora marcados pela inventividade e pela força criativa, sofressem com a sua falta de paciência para burilar a dramaturgia. Eram, digamos, mal acabados, apressados.
Acompanhei algo de sua carreira no Teatro do Jockey e na Sala Paraíso do Teatro Carlos Gomes. Rapidamente, portanto, no Rio, Alvim conquistou poder junto à Prefeitura para se dedicar às suas pesquisas formais. Não acompanhei a sua trajetória após a transferência para São Paulo, onde criou o Club Noir.
Ao que tudo indica, a mudança levou-o mais profundamente para a vanguarda, dedicando-se à direção, assinando uma cena preocupada com pequenas plateias, sombras, contenção gestual. Desta fase, vi apenas Tríptico Beckett, um espetáculo difícil, hermético, que reuniu Juliana Galdino, notável atriz com quem se casou, e a sempre sensacional Nathalia Timberg.
O mais curioso nesta história é pensar este caminho impossível, de um diretor-gestor de um palco de vanguarda devotado ao experimentalismo, encerrado numa casa de modestos 50 lugares, que se proclama administrador-gestor da cultura de um país gigantesco como o Brasil. Nada habilitava Roberto Alvim para o cargo: não tinha formação nem experiência considerável como produtor, não tinha bom trânsito na classe teatral ou no meio cultural, não tinha respeito pelas formas teatrais várias praticadas por todo o país.
O comentário não pretende ser nem maledicência, nem falta de compaixão ou de respeito para com alguém que foi rudemente repudiado. Afinal, alguém que enlouqueceu. Não se trata de chutar cachorro morto. Aliás, até certa altura, em consideração à sua história de arte, não hesitei em conceder ao diretor uma carta de crédito, um voto de confiança no seu trajeto para se tornar gestor. Contudo, vale assinalar algo grave: Roberto Alvim não foi capaz de transformar o Club Noir numa instituição estável. O Club Noir faliu.
O ponto a ressaltar, no entanto, é, antes, mais grave, é a imensa dívida do governo Jair Bolsonaro com a cultura brasileira. Os fatos elencados aqui apontam, no meu entender, não para a existência de uma lógica nazista do governo, como deseja acreditar uma boa parte da esquerda. Os próximos atos do governo elucidarão este ponto. Continuo acreditando que se trata de um governo de direita, por vezes radical demais, por vezes excessivo em tudo. E, por isto, penso que os fatos, infelizmente, apontam para um descaso inaceitável diante da cultura.
Exatamente isto: apesar da imensa importância da arte e da cultura para a sociedade brasileira, o governo Bolsonaro não formulou um projeto cultural compatível com as necessidades do país, nem mesmo para sustentar a sua visão conservadora, de direita e de luta contra a esquerda e o esquerdismo que, segundo tantas vezes se declarou, no poder, seriam as formas naturais do mundo cultural nacional.
A escolha de Roberto Alvim – um diretor teatral encerrado, na maior parte de sua carreira, num segmento de produção de arte de reduzida repercussão social, sem projeto fora a conquista do poder – indica uma falta política inaceitável nesta altura da história do mundo. Isolado politicamente, sem diálogo na categoria e no meio cultural e sem formação/habilidade para comandar a máquina administrativa, Roberto Alvim só poderia fracassar – e fracassar vergonhosamente, como alguém que efetivamente não sabe do que está falando, pois a arte de que ele falava, se exequível fosse, demandaria somas muito maiores do que as que conseguiu arranjar para o seu pobre edital.
Há, portanto, um terrível episódio de vergonha alheia, como dizem os jovens, a superar. Naturalmente, para vencer o débito, que agora é com todo o país e não apenas com as áreas da arte e da cultura, o mínimo que o governo precisa fazer é restabelecer o Ministério da Cultura, na certeza de que sim, a potência criativa do país importa e deve ser impulsionada.
A diferença só acontece se o MinC não for um cabide de empregos ou uma vitrine de vaidades, como já aconteceu, mas um agente efetivo para a expansão da arte e da cultura nacionais. Um imenso campo de realizações espera por gestores públicos competentes e equilibrados. Estes profissionais existem. Há uma gente que conhece a área de produção cultural com extrema acuidade: existem associações, coletivos, institutos aptos e interessados em garantir a integridade do campo.
A grande mudança que o governo deveria ter proposto é o abandono da velha política, a eterna repetição do Estado paternalista, financiador da produção, censor e formulador de políticas e diretrizes para a arte. Ninguém precisa que o Estado venha dizer o que é a arte ou a cultura – em especial , uma suposta Grande Arte.
A cultura brasileira não precisa disto: precisa de estruturas e de meios de produção. Precisa de teatros, centros culturais, galerias de arte, cinemas, restauração de bens históricos e do patrimônio histórico-cultural, edições, formação de arte e de plateia. Há toda uma herança de teatros em ruínas para reerguer – e, para ficar no mínimo, há um museu de profundo significado histórico reduzido a cinzas.
Nesta cena, Regina Duarte é um nome de grande felicidade: talvez ninguém mais ofereça a chance de reconciliação nacional que ela representa. Artista experiente, interlocutora atenta, personalidade carismática, a atriz reúne qualidades essenciais para o cargo, tais como a dimensão do nacional, a percepção da riqueza e da complexidade do cenário da arte e da cultura do país, a clareza de pensamento, a honestidade, a liderança, a sinceridade, a disposição para trabalhar em equipe.
O ponto mais importante neste momento é, sem dúvida, estabelecer o diálogo entre o poder e as classes artístico-culturais. Importa compreender que arte e cultura não poderão ficar paradas, confinadas, como se fosse possível optar por um estado de vida latente, para sobreviver nos próximos anos.
Arte de resistência é muito pouco para a voracidade criativa do Brasil. Embarcar no exercício da democracia é fundamental – democracia significa diálogo, negociação, argumentação, oposição, reconhecimento inteligente de poderes e de autoridades.
A partir da experiência sombria – sem trocadilho – recente, vale entrar em sintonia com as organizações e associações, elaborar listas de reivindicações e prioridades e botar as cartas na mesa. Os diferentes setores precisam se expressar e fazer o jogo democrático favorável à vida da arte.
Uma cidade em crise profunda como o Rio de Janeiro, marcada por impasses históricos inéditos, precisa mobilizar toda a sua inteligência para gerenciar o abismo político fatal que nos envolve a todos. Há uma necessidade extrema de investimento no Rio em múltiplas frentes – a educação pela arte precisa se instalar nas escolas, nas praças, nos teatros.
Às vezes, soluções radicais parecem sedutoras, afagam o espírito juvenil rebelde que mora em todos nós. Mas o romantismo extemporâneo acaba sendo abrigo para os loucos, os seres sem dimensão de realidade. Não é a hora para suicídios civis. Parece que, no momento, a nossa cota de loucura já extrapolou o razoável. Em lugar de jogar pedras, a melhor opção parece ser o trabalho pesado, o árduo caminho de construir. E por quê não?
Serviço
A respeito da trajetória teatral recente de Roberto Alvim, recomendo a leitura de um interessante artigo de Michel Laub, O Radical – Como Roberto Alvim Faz Teatro.