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Corpos opacos, almas reluzentes

Mistérios femininos. Corpos Opacos, em final de temporada no Mezzanino do SESC Copacabana, traz para a cena teatral a delicadeza do olhar feminino e a aura radiosa dos mistérios. Abre uma fresta de seda, entre a onda engajada e os mantos de flores, para sugerir o pensamento a respeito deste abismo, interesse de todos. A pergunta antiga – o que é afinal a mulher? – desponta revisitada sob novas tonalidades surpreendentes.

 

Mistérios femininos – eles estruturam muito da vida do mundo. Impossível traduzir em língua cartesiana regular certas tramas de afeto e de pertencimento, volteios do espírito de matriz telúrica, alheamentos e ausências da obrigação gregária. Até que ponto ir para um convento é uma derrota, uma perda, uma castração? Pode ser uma conquista, a conquista de uma liberdade indizível, de um outro corpo, um corpo desejante absoluto, uma vitória contra o mundo banal?

 

Mistérios femininos! São temas ousados, em boa parte ainda impensados, desafios para o feminismo que se quer imediatidade e ação. Eles confinam com os limites tensionados da vida da mulher em nossa sociedade. Como ser feliz num jogo social em que as cartas são marcadas e representam sempre a escravidão – ou a submissão, no melhor dos casos – da mulher?

 

Mistérios femininos, a vida reclusa e modesta em claustros totalmente refratários ao que é mundano. Uma vida de renúncia a tudo o que os mortais materialistas consideram como prazer. A escolha ousada apagaria os limites triviais da rotina feminina, acenaria com a suposição de uma possibilidade radical, a possibilidade de viver, em corpo, um estado etéreo, a pura abstração.

 

Mistérios femininos: o ponto central da peça é este enigma, mulheres convertidas à vida monacal, irmãs clarissas noivas de Cristo, jovens capazes de entregar toda a vida a um cotidiano de rezas, estudos, tarefas domésticas e criativas, enquanto aguardam o momento iluminado de suas núpcias, o casamento após a morte com Cristo. Enquanto esperam, se preparam para a morte, tecem o manto e a coroa de flores com os quais se entregarão ao amor supremo.

 

Mistérios femininos… a atriz Carolina Virguez, impressionada com a história das religiosas colombianas, reclusas amantes de Cristo, concebeu o projeto em parceria com a atriz Sara Antunes. O ponto de partida foi uma exposição em Bogotá, a exibição de quadros pintados com as imagens das freiras mortas, decoradas com suas flores e mantos nupciais, uma prática iniciada no século XVII que se prolongou até o século XIX. Enclausuradas, apenas neste momento os seus corpos se tornavam públicos, vistos através de gelosias por homens pintores. Depois, os cadáveres eram sepultados nas catacumbas do convento, um espaço-tabu recentemente revelado por um terremoto.

 

Mistérios femininos? Como trazer à luz esta trama tão subterrânea em dias de corpos nus e virgindades impossíveis? A direção de Yara de Novaes, assistida por uma equipe de arte de extrema experiência transgressora, deu vazão ao jorro de inquietude palpitante do tema. A ação parte da palavra engajada atual, com direito a vestidos de corte militar e botons de mobilização. O cenário traz na cor e na forma envolvente a força da terra, uma terra arenosa, com uma fresta-óculo aberta numa ampla superfície onipresente, logo transformada num céu de terra. A direção leva as atrizes a uma performance-desempenho, isto é, narração, performance e representação, uma linha capaz de reunir o vigor e a delicadeza, a ousadia e o recolhimento, a exaustão e a contemplação. Sob sons inquietantes, do terremoto ao batido para remexer as cadeiras, as duas atrizes eletrizam a cena. O arco de emoções vai do cotidiano ao transe místico. A sugestão da conversão histérica, nervosa e visceral, surge dilacerante, em Carolina Virguez, e épica, em Sara Antunes.

 

Mistérios femininos; todavia, a cena é cristalina, rebrilha, sob a luz mágica de Wagner Antônio, um pouco como o olhar livre das mulheres de hoje. Irradia o desejo de compreender uma longa dolorosa história. Além e adiante da religião, a montagem soa urgente no campo de batalha atual. Do mistério antigo nasce um novo mistério, para perguntarmos em que medida a escravidão foi de tal ordem que a prisão voluntária, para muitos espíritos descontentes, soou como a melhor liberdade.

 

Enfim, mistérios femininos, não perca, Corpos Opacos está logo ali bem ao alcance para desdizê-los. Ou dizê-los em outras vozes, vozes corajosas, dedicadas a destecer flores enigmáticas metafísicas que travam a comunhão com o mundo. A peça é, portanto, um ato singelo de falar de almas reluzentes, almas que sabem que o valor maior é a liberdade de ser, muito embora tal liberdade possa parecer, para mentes distraídas, uma prisão. Livres, hoje, no absoluto, ou em estado de luta em cena, os corpos opacos de outrora retornam, para nos perguntar sem rodeios sobre os mistérios do feminino que, ao nosso redor, ainda agora tecemos.

 

FICHA TÉCNICA

Copos Opacos
Idealização, dramaturgia e atuação: Carolina Virgüez e Sara Antunes
Direção: Yara de Novaes
Direção de arte: Márcio Medina
Luz: Wagner Antônio
Direção musical: Natalia Mallo
Assistente deDireção: Ana Paula Lopez
Colaboração Artística: Marco André Nunes e Pedro Kosovski
Preparação Corporal: Ana Paula Lopez e Mary Kunha
Produção: Gabi Gonçalves – Corpo Rastreado
Estagiária (RJ): Ana Paula Rolon
Assessoria de Imprensa: Bianca Senna

 

Serviço

De 10 de outubro a 4 de novembro
Local: Sesc Copacabana – Mezanino
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana.
Dias e horários: De quarta a domingo, às 20h
Ingressos: R$ 30 (inteira), R$15 (meia-entrada) e R$7,50 (associados do Sesc)
Informações: (21) 2547-0156
Bilheteria: segundas, de 9h às 16h; de terça a sexta, de 9h às 21h; sábados, de 13h às 21h e domingos, de 13h às 20h.
Duração: 50 minutos
Capacidade: 60 lugares
Classificação indicativa: livre