Elza: eu, mulher, agradeço e retribuo

 
Por você eu faço tudo: existem mulheres assim. Elas movem o mundo com a força do seu amor à existência, elas querem uma vida melhor e seguem adiante sempre, para chegar lá. Ou tentar, até o último limite de suas forças. Elas são Elza. E Elza está em cena num esplendor só, nunca pensado, num ato de justiça à grandeza deste monumento-mulher.

 

Elza está em cena no Teatro Riachuelo, uma das casas nobres dos musicais cariocas. A partir de um projeto idealizado por Andrea Alves, produtora da Sarau, a vida da cantora Elza Soares explode como criação e força de vida – o resultado é imperdível. Há em cena muito material para debater: as infinitas possibilidades do musical, uma parte nobre da história da MPB e as arenas de luta do feminismo e do combate ao racismo.

 

A ideia central, fascinante, não é exatamente a biografia, mas o fato de que Elza Soares nunca foi uma pessoa só. Ela foi e é um emaranhado de perfis guerreiros, alguém com uma garra para enfrentar o mundo que não se poderia explicar a partir apenas de uma pessoa ou de uma visão linear. Viveu tensões absolutas, o nascimento na favela de Moça Bonita, filha de um pedreiro e de uma lavadeira, a pobreza da infância em Água Santa, o casamento obrigado aos doze anos, a maternidade aos treze, a morte de filhos por fome, o estrelato, uma grande paixão histórica, a projeção mundial, o reconhecimento de sua arte e da beleza de sua voz.

 

O conceito formulado é irresistível – tira o chão e o ar da plateia, pois permite apresentar de imediato, através da grandeza de Elza, não só a cantora-caleidoscópio, mas também muito da odisseia das mulheres no nosso tempo, mulheres fortalezas obrigadas a desempenhar uma infinidade de papéis na vida cotidiana. Traz os desafios das mulheres negras, sujeitas a múltiplas discriminações e opressões. Traz as lutas da música brasileira e dos musicais nacionais, desejosos de materializar a nossa sensibilidade.

 

O tom surpreendente revelado pela montagem é precisamente este, o fato de Elza transbordar em cena múltipla e, por fim, simbolizar todas nós, mulheres de um tempo hostil. Mas a coisa vai além, bem além. Elza Soares nos ultrapassa a todas, ela nos redime, pois indica um caminho iluminado, graças à sutileza de sua arte, ao seu astral, o seu humor, a sua capacidade para sacudir a poeira e dar a volta por cima, qualidades muito bem trabalhadas no palco. Uma pergunta natural se impõe, como o espetáculo chega a este efeito?

 

A montagem registra um encontro poético redondo, em que a produção acionou um autor-ator músico, Vinicius Calderoni, uma diretora teatral coreógrafa e especialista em corpo, Duda Maia, e um diretor musical performático, Pedro Luís. Há um encontro poético contundente, gerado pelo fato de que cada criador da equipe tem um olhar múltiplo para o palco, um olhar que extrapola cada especialidade, e total disposição para trocar.

 

As características deste núcleo impuseram ao processo de criação um tom ágil, revolucionário mesmo, moderno: a prática colaborativa, a criação dialógica. A partir dela, a equipe chegou a um musical de alta voltagem, um musical total. A proposta não foi gerada na mesa ou no gabinete, mas na sala de ensaio, e levou tudo de roldão. Incorporou as atrizes e as instrumentistas, o figurino, a cenografia, o cenário e a iluminação.

 

Há algo mais, porém. A linha de trabalho escolhida trouxe para o palco um outro personagem, o hoje. Falar de Elza é falar de uma gente que está sempre em sintonia fina com o presente, com o aqui e o agora, uma gente atenta ao mundo e pronta para lutar.

 

Assim, os figurinos de Kika Lopes e Rocio Moure são contemporâneos, são arrojados, despojados, libertam os corpos e ao mesmo tempo apontam fagulhas dos momentos históricos objetivos vividos. Quase sempre formam um painel, uma sugestão de coro, com eloquentes detalhes de cor, corte ou composição indicando fatos, personagens, situações.

 

A concepção ressoa na cenografia de André Cortez, diabólica e objetiva. A cena está quase vazia. Há apenas um tablado no fundo, lugar dos músicos, apoiado em latas, latas d’água e baldes de lavadeiras estilizados, adereços que são usados na ação com total criatividade. Uma placa aérea, atrás do tablado, se move e se transforma ao longo da ação com a ajuda da luz – sugere parede de lajota de casa pobre, parede de estúdio e de ambiente moderno, aparato celeste para a vida de estrela. Carrinhos cenográficos praticáveis, de rodinhas, sugerem a correria dos fatos e da vida, o fluxo febril da vida da estrela.

 

A mesma visão, em ruptura ácida do tempo e do espaço, impondo uma visão vertiginosa da realidade e da cena, está presente na direção musical de Pedro Luís. Ela norteou a escolha do repertório e a criação do desenho musical – duas canções inéditas trazem o presente. Os sucessos de Elza Soares misturam as épocas e receberam arranjos, de Letieres Leite, aptos para projetá-los no nosso tempo. Também aqui aflora a urgência do hoje, a sensação que presidiu a vida da cantora. As musicistas, responsáveis por uma sonoridade quente e antenada – Antônia Adnet, Georgia Camara, Guta Menezes, Neila Kadhí, Marfa e Priscilla Azevedo –, incorporaram o mote e interagem vivamente com a ação dramática. A luz de Renato Machado sublinha as tensões da ação, trabalha as emoções a partir das cores, estabelece planos precisos de movimentos e confere intensidades diferenciadas aos números musicais.

 

Apesar da unidade criativa, evidente na estrutura pulsante da cena, é impressionante a liderança de Duda Maia diante do conjunto. Ela traz desde Auê um dado novo a considerar: a sua capacidade para criar uma obra autoral de contorno nítido, inovadora, de ruptura das convenções, mas em estado de criação coletiva. A intensa presença do corpo das atrizes – neste caso, até mesmo das instrumentistas – deve ser reconhecida como a sua maior marca poética.

 

E importa destacar – atrizes notáveis estão em cena. Larissa Luz, Janamô, Júlia Dias, Késia Estácio, Khrystal, Laís Lacôrte, Verônica Bonfim são intérpretes maduras com respostas excelentes para o desafio expressivo contido na montagem. Elas se projetam como coro, ato de representação coletiva, a unidade multifacetada de Elza Soares, uma forma-mulher coletiva. E alcançam destaque expressivo nas cenas e solos individuais, quando expõem as facetas originais da artista, as várias mulheres únicas que Elza Soares consegue ser.

 

Larissa Luz traz a força e a disposição cega para a luta que é o motor existencial de Elza. O poder da cantora se agiganta com a excelente performance em Língua, de Caetano, e A Carne, de Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette. Mas há ainda a mulher apaixonada, sensual e envolvente, a deusa do amor total, uma torrente vibrante de sentimentos densos exposta por Késia Estácio em Dindi, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, o número mais arrebatador do espetáculo. Késia do Estácio, que vem de trabalho em trabalho numa bela progressão poética em cena, faz aqui o seu primeiro grande solo de estrela.

 

Observe-se um detalhe importante: como a montagem não pretende ser uma encenação enfadonha da vida de Elza Soares, o melhor do seu repertório está presente, mas algumas escolhas surgiram em função do desejo de traduzir na cena o conceito-mulher em foco. A mesma opção envolveu a escolha dos fatos biográficos – os criadores privilegiaram tudo o que revelasse o sentido de sua vida. Não pretenderam, porém, contar a vida da estrela ou narrar de forma linear as suas vivências ou apresentar de forma objetiva a sua fortuna musical.

 

Nesta concepção ultramoderna, as atrizes narram, cantam, dançam, representam. Com alguns adereços simples ou com singelos recursos de composição, elas materializam múltiplos personagens, além de Elza em várias fases da vida. Assim, elas conseguem materializar os pais, Ary Barroso, o primeiro marido, Garrincha, entre tantos outros personagens fundamentais. Há em cena uma atmosfera de criação em estado livre muito favorável ao formato do musical, lugar por excelência, no teatro, da liberdade humana. E a irreverência diz muito de uma concepção brasileira. Seria bem importante que o trabalho viajasse – fosse para apresentações na Argentina e em Portugal.

 

Portanto, a proposta é muito clara, há um convite para você vivenciar um pouco este tesouro humano brasileiro chamado Elza Soares. Não perca. Trata-se de um trabalho teatral instigante, revolucionário e muito brasileiro, feito de uma vontade de criar vital e, por isto mesmo, arrebatadora.

 

No subtexto, flui uma linha de ação artística inclinada a focalizar este mistério que intriga tanta gente, a grandeza existencial das mulheres. Você não vai sair do teatro com mais clareza a este respeito. Mas vai ter uma imagem bem mais precisa da garra de Elza Soares e da força das mulheres deste nosso tempo. Corra, vá ver.

 

Ficha Técnica
 

Texto: Vinícius Calderoni
Direção: Duda Maia
Elenco: Janamô, Júlia Dias, Késia Estácio, Khrystal, Laís Lacôrte, Verônica Bonfim e a atriz convidada Larissa Luz.
Direção Musical: Pedro Luís
Musicistas:Antônia Adnet, Georgia Camara, Guta Menezes, Neila Kadhí, Marfa e Priscilla Azevedo
Arranjos: Letieres Leite
Idealização e Direção de produção: Andréa Alves
Cenário: André Cortez
Figurinos: Kika Lopes e Rocio Moure
Iluminação: Renato Machado
Design de som: Gabriel D’Angelo
Diretora assistente: Letícia Medella
Coordenação de produção:Leila Maria Moreno
Produção executiva:Rafael Lydio
Projeto gráfico: Beto Martins
Fotografia:Silvana Marques
Vídeos: Elisa Mendes

Serviço:
Espetáculo: Elza
Temporada de 19 de julho a 30 de setembro
Quintas, às 19h. Sextas e Sábados, às 20h. Domingos, às 18h
TEATRO RIACHUELO
Rua do Passeio, 38/40 – Centro
Vendas na bilheteria do teatro e site da Ingresso rápido.
Ingressos:
Quintas: R$ 40 (Balcão Superior), R$ 80 (Plateia e Balcão Nobre), R$ 100 (Plateia VIP).
Sextas: R$ 50 (Balcão Superior), R$ 100 (Plateia e Balcão Nobre), R$ 130 (Plateia VIP).
Sábados: R$ 50 (Balcão Superior), R$ 100 (Plateia e Balcão Nobre), R$ 150 (Plateia VIP).
Domingos: R$ 40 (Balcão Superior), R$ 80 (Plateia e Balcão Nobre), R$ 100 (Plateia VIP).
Classificação etária: 14 anos.
Duração: 120 minutos.

Informações para a Imprensa
Pedro Neves / pedro@factoriacomunicacao.com
(21) 2249-1598 / 2259-0408