As artes de cupido: o novo musical brasileiro
Amantes do teatro musical brasileiro, atenção: libertem o coração cansado da mesmice, corram para o Méier. Há um fato importante para comemorar. Estúpido Cupido, de Flavio Marinho, cartaz no Imperator, assinala uma conquista decisiva para a dramaturgia do gênero, o trabalho numa linha que deve ser chamada de partitura dramática. Vale conferir.
Como se não bastasse, outros marcos estão em cena. Além de o espetáculo comemorar os 45 anos de carreira de Françoise Forton, ela se revela uma atriz de musical completa, sensacional. E o veterano diretor Gilberto Grawonski, célebre por sua habilidade na condução de atores em textos densos, estreia no gênero com absoluta felicidade. Coisas para fazer vibrar corações livres, já se vê.
É importante frisar: trata-se de uma montagem de primeira importância para os debates acerca dos caminhos atuais do musical brasileiro. E isto também por algo mais do que fatos técnicos, pois a cena é pródiga naquela poética de libertação sentimental típica dos musicais, aquela mania de andar nas nuvens, que as pessoas sérias odeiam e condenam tanto no gênero. Portanto, aviso aos conservadores vetustos – passem longe, vocês correm o risco de se apaixonar. E pior, para quem é reacionário convicto, há o risco de se libertar.
Sim, a peça é totalmente impregnada pela alegria de viver, pelo prazer solar de estar em cena, um astral juvenil radioso. Da abertura ao final, há um amor à vida, uma leveza de sensações, um flerte com as firulas superficiais do cotidiano irresistível. E não é para menos.
O tema é simples como uma paixão juvenil de verão. O ponto de partida, para homenagear o aniversário de carreira de Françoise Forton, é a novela homônima, enorme sucesso de Mario Prata nos anos 1970, folhetim em que a atriz defendeu a jovem protagonista Maria Tereza, a Tetê. Mas ninguém pense em exumação do passado, nada restou da trama original, além da música, dos nomes de alguns personagens e do jogo com os desencontros afetivos.
Para saudar a comemoração, Flavio Marinho concebeu uma trama fiel ao espírito da novela, de certa forma o tema do amor errante, mas totalmente antenada com o presente. Transformou Tetê numa atriz de sucesso, ainda ligada a uma amiga fiel dos tempos de escola, Ana Maria (a genial Clarisse Derzié Luz). As duas se tornaram corações solitários, por diferentes razões. Por causa da nostalgia dos belos tempos dourados, graças ao facebook, elas têm a chance de ir a uma festa temática, inspirada nos anos 1960/70, de reencontro com a antiga turma da escola, recordação dos velhos tempos.
Assim, há um jogo curioso, sonhador, entre a saudade do passado e a realidade do presente, um inventário de memórias afetivas, expectativas, frustrações. A trama passeia livre entre os dois tempos, num movimento lindo. A espiral sentimental é muito bem construída, bem humorada, encantadora. De certa forma, lembra aquele impulso adolescente, universal, de arrastar as cadeiras da sala e dançar, soltar as amarras das sensações.
Ao escolher uma festa para centro da situação dramática, o autor viabilizou boa parte das inserções musicais. Mas não há qualquer simplismo na opção – as canções e os números coreografados surgem sempre do interior do jogo dramático, de maneira orgânica. A ação se transmuda em música. Como a escolha das músicas, em geral de época, foi feita pelo próprio autor em sintonia com a trama, uma nova forma de texto para musical é delineada aqui – uma partitura dramática, união entre drama, libreto, e música. O termo é exato para definir este novo formato, original, de texto de musical.
A direção de Gilberto Gawronski explorou o jogo passado presente até as últimas consequências, em belas marcações, como se o palco fosse um caleidoscópio. O grupo dos atores protagonistas, o presente, se vê desdobrado, no passado, na juventude, graças aos atores do coro. Há um curioso espelhamento, propício ao adensamento do tom emocional. O efeito é fortalecido pela cenografia despojada, plástica, dinâmica, de Clívia Cohen, permeável à criação de múltiplos lugares de ação. Como a vida, a cena se move, incessante.
Outro tanto de impacto nasce da luz, eficiente para sublinhar o complexo movimento das cenas, de Paulo Cesar Medeiros, e dos figurinos, peças de época em dois momentos diferençados, também assinados por Clívia Cohen. A delicadeza de concepção chega ao requinte de tingir de tons esmaecidos, envelhecidos, os figurinos do passado.
Liliane Secco, responsável pela direção musical, assina uma concepção e uma regência inspiradas, altamente especializadas. Ela transformou as cenas musicais em acontecimentos naturais, necessários. A sintonia entre a partitura dramática e a direção musical levaram a coreografia, de Mabel Tude, para o mesmo universo de coerência.
No centro da cena, Françoise Forton é protagonista preciosa, responde com brilho ao desafio de estrelar um musical. Atriz delicada, de expressão altiva, refinada, dotada de extremo encanto pessoal, ela faz de Maria Tereza, na maturidade, um resultado consequente da adolescente compenetrada, amorosa, bonita, vencedora de concurso de miss que marcou época, Senhorita Rio.
As suas cenas de canto e dança são deliciosamente sedutoras, sintonia fina com o melhor espírito juvenil. O grande destaque, contudo, é Estou aqui, versão inspirada de I’m still here, do musical Follies, de Sondheim. O número forte registra a virada de Tetê, decidida a assumir a própria vida de frente, uma força vital que Françoise Forton decididamente possui.
Mas ela não está sozinha em cena: o palco abriga um elenco no melhor sentido da palavra. O contraponto com Clarisse Derzié Luz, uma atriz de extrema inteligência cênica, voltada para a linha caricata e humorada, alcança forte impacto teatral. A parceira ágil, dotada de intensa expressão física, eficiente capacidade para explorar as sutilezas do texto, se revela: embora não tenha sido até aqui uma atriz de musical, sustenta a contracena num alto padrão artístico e, se não se projeta no canto, resolve muito bem a sua participação nas cenas de dança.
Aloísio de Abreu, o Frankie, desenha com maestria o mocinho bem comportado, galã discreto, romântico e tímido, consagrando-se também numa linha de trabalho nova. Depois de se tornar célebre na comédia, hábil no calor do improviso, espécie de ator-show-man, o ator enveredou pelo gênero dramático, e revela aqui total desenvoltura na comédia sentimental. Nos quadros de dança e canto, eletriza a plateia. O seu contraponto é o galã bandido, rebelde de jaqueta de couro e lambreta, Carlos Bonow, o Teddy, retrato apurado do transviado dos anos dourados. Da envergadura atlética aos tiques e maneirismos, Bonow traduz o playboy inconsequente, conquistador barato, caçador de almas incautas.
As garotas podiam se interessar por Frankie, mas os corações disparavam mesmo diante de Teddy – e a namoradeira venenosa, Wanda, divertida composição assinada por Sheila Matos, fiel ao passado, aparece fulgurante na festa para atiçar a disputa. Como numa boa trama juvenil, os cálculos de conquista das veteranas são atrapalhados por Danielli, a jovem namorada de Teddy, um furacão de irreverência assinado por Carla Diaz.
A inserção pelo autor desta figura bem mais jovem na trama central é um grande achado, gera oportunidades para belos efeitos textuais – além da incorporação de referências atuais, como o funk, surge um olhar crítico, distanciado, diante do grupo de velhos amigos. Carla Diaz não hesita em aproveitar as deixas mordazes, hilariantes, oferecidas pelo texto.
Os atores do coro – Luisa Viotti, Julia Guerra, Ryene Chermont, Mateus Penna Firme e Ricardo Knupp – compõem o passado com trabalhos límpidos e bem resolvidos. São responsáveis pelos papéis protagonistas na juventude, como se fossem um pano de fundo, e pela composição das cenas coletivas. Luísa Viotti, a Tetê jovem, se destaca pela beleza da voz e pelo porte altivo, Julia Guerra revela forte densidade teatral ao impor a caracterização de Aninha como a gordinha da turma.
Em resumo, o cartaz arrebata por ser um musical de alto padrão técnico e bela concepção. O resultado alcançado surpreende por sua grandeza, pois o orçamento é discreto, mas o segredo pode ser percebido em cada detalhe da proposta: se chama trabalho. A presença de apenas três músicos (Guilherme Viotti, Felipe Aranha e Jean Campelo), considerando-se a massa musical da cena, é um indício desta condição.
Por tudo isto, no final, a vontade de dançar reina por toda a sala. O teatro está em festa. Como não ter vontade de cantar Banho de Lua, Erva Venenosa ou Estúpido Cupido? Como resistir à ideia de que, por mais velhos que estejamos, nossas almas são, em algum ponto, rebeldes, jovens, alegres, celebrações gratuitas da pura força da vida? Por mais que o cupido, estúpido, erre as suas flechas no amor, na vida, não tem jeito: as flechas do musical tem mira certeira e acertam todos os corações. Estúpido Cupido faz exatamente isto, entrega a liberdade do seu coração para você mesmo. Mesmo que você more longe, vá ao Méier, vale a pena. Você não vai se arrepender: Cupido continua a ser um deus adorável e, aqui, ele dá uma nova vida ao nosso musical.
Texto: Flávio Marinho
Direção: Gilberto Gawronski
Elenco: Françoise Forton, Aloísio de Abreu, Clarisse Derzié Luz, Carlos Bonow, Sheila Matos, Carla Diaz, Luisa Viotti, Julia Guerra, Ryene Chermont, Ricardo Knupp e Mateus Penna Firme
Stand in: Maria Sita (Françoise Forton) e Orlando Leal (Aloísio de Abreu/Carlos Bonow)
Músicos: Guilherme Viotti, Felipe Aranha, Jean Campelo
Direção Musical:Liliane Secco
Coreografia: Mabel Tude
Cenário e figurinos: Clívia Cohen
Iluminação: Paulo César Medeiros
Direção de Produção: Denise Escudero e Elaine Moreira
Produção e Assessoria de Imprensa: Barata Comunicação
Temporada: 14 de agosto a 20 de setembro
Imperator – Centro Cultural João Nogueira
Rua Dias da Cruz, 170, Meier
Dias e horários: Sextas e sábados às 21h e domingos às 19:30h
Ingressos:
Sextas: balcão / plateia – R$ 40,00 (inteira) / R$ 20,00 (meia)
Sábados e domingos: balcão – R$ 40,00 (inteira) / R$ 20,00 (meia)
plateia – R$ 50,00 (inteira) / R$ 25,00 (meia)
Duração: 90 minutos
Classificação indicativa: 12 anos
Cabe ressaltar que o grande Gilberto Gawronski foi assistente do diretor Luís Antônio Martinez Corrêa na montagem original de THEATRO MUSICAL BRAZILEIRO 1914/1945 em 1985. Viva o teatro musicado brasileiro! Abração, Tania