Teatro e teatro e teatro e teatro
Posso adivinhar a sua paixão, como se fosse antiga pitonisa: é o teatro. Então, não perca tempo, corra para o Teatro dos Quatro, aquela casa que quase se transformou na mais importante cena de repertório de qualidade do Rio. Agora, a história se repete fugaz, naturalmente como comédia, como manda a lei número um dos historiadores – está em cartaz por pouco tempo a montagem esfuziante de Vanya e Sonia e Masha e Spike, de Cristopher Durang. Uma palavra apenas para orientar o seu destino: imperdível. Além da direção magistral de Jorge Takla, o original reúne um elenco de monstros de teatro, digno de toda a mitologia teatral tupiniquim, apesar da juventude de alguns – Marília Gabriela, Elias Andreato, Patrícia Gaspar, Teca Pereira, Bruno Narchi, Juliana Boller.
A fascinação começa pelo texto, como reza a mais velha prática da arte. Cristopher Durang (1949\), premiado autor norte-americano, comprova a importância das escolas de teatro para a história da dramaturgia, pois obteve a sua formação na Yale School of Drama. E este original, uma brincadeira hilária e ácida com as maiores agruras da vida de classe média no presente, estrutura-se inteiramente a partir de um jogo com soluções históricas da dramaturgia, em particular ao redor de temas, personagens, situações e cores de Tchekhov. Nada poderia soar mais irresistível sob as luzes do Teatro dos Quatro, a casa que tanto cortejou o autor. Em especial porque a leitura do texto pelo diretor caminha no sentido da celebração de valores teatrais puros, absolutos.
Na trama figuram três irmãos, filhos de um casal de professores falecidos, apaixonados por Tchekhov a ponto de batizar os filhos sob a inspiração do dramaturgo. Impregnados por conflitos insolúveis em sua aparência, os irmãos se encontram na velha propriedade familiar para uma tentativa de redefinição da vida. A irmã mais velha, atriz rica e bem sucedida, agora se distanciando dos melhores dias de glória, Masha, nome emprestado à peça As três irmãs, de Tchekhov, pretende liquidar a velha casa, cara para suas posses declinantes, um pouco como se liquidasse um velho cerejal, referência recorrente ao longo do texto. A casa, na cenografia de Attilio Baschera e Gregorio Kramer, possui um toque solar curioso para o desfecho da trama. O cenário é de emocionar todo aquele público que ama teatro – é teatro puro, madeira pintada em requintada forma, iluminado com brio por Ney Bonfante, perfeito para receber Masha, a grande atriz de sucesso. E que atriz.
O impacto de Masha nasce direto do glamour e da força expressiva de Marília Gabriela, uma presença sempre incandescente no palco, ágil na exploração das nuanças do texto, senhora do gesto, mestra nos caminhos da comunicação. Uma figura de porte, sua silhueta alcança intensa projeção graças aos figurinos bem pensados, de Theodoro Cochrane, hábeis para explorar os melhores recursos da estrela.
Ao seu lado, na fluidez da melhor contracena que se possa imaginar, o poder dos dois irmãos se projeta de forma arrebatadora, se torna questionador e retumbante, permite vislumbrar uma brincadeira requintada com as figuras derrotadas e sem saída que tanto impressionam nos textos do autor russo. Os dois vivem sofridos na casa e sobrevivem graças ao dinheiro da irmã, depois de vegetarem à sombra dos pais, cuidarem de suas doenças senis, sem construir uma vida e a própria autonomia.
Vanya, nome célebre da dramaturgia tchekoviana, é o irmão parceiro rival inimigo de Sonya, nomes extraídos de Tio Vânia, mas preenchidos por tons teatrais novos. E é Vanya, esta festa de teatro completa chamada Elias Andreato, um dos atores seniores mais viscerais do palco brasileiro, quem preside a cena, instaura uma revolução sensível, capaz de dar sentido a um camisolão de dormir cáustico, a uma peruca de circo, complementos teatrais antológicos para a transformação do patético Tio Vânia original num marionete cômico, mas capaz de, afinal, tomar os cordéis da vida e acionar um sentido novo para a trivialidade do existir, um pouco como se o russo fosse reencarnado numa lição norte-americana de crença no indivíduo.
A Sonia de Patrícia Gaspar consagra no palco carioca uma atriz notável ainda sem obter aqui a projeção que merece. O seu movimento, claro, é complementar ao de Vanya. Irmã adotada, ressentida, carente, enjoada, apagada, serviçal, resmungona, Patrícia Gaspar impõe em cena sem reservas a enjeitadinha chata, sob um humor requintado, e brilha no golpe de teatro central para que a tese do autor possa ser bem desenhada. Para uma festa a fantasia na vizinhança, programada pela irmã triunfante, ela envereda pelo sonho de libertação, veste a roupa da rainha madrasta malvada, mas imaginando-a como se fosse Maggie Smith a caminho do Oscar. Impagável. A irmã escolhera ir de Branca de Neve, enquanto o seu séquito, por sua deliberação, deveria complementar a velha trama, como anões. A rebeldia é tudo, Sonia, teu nome é rebelião.
A magia acontece no final, é claro. Ou antes, para o bom andamento da trama, com uma brincadeira teatral esperta a propósito da ideia de destino, um debate importante para a história da dramaturgia moderna. Cassandra, a faxineira da casa, um desempenho impregnado por um espírito cômico popular vertiginoso incorporado por Teca Pereira, eletriza as linhas da ação principal para que se chegue ao desfecho. Primeiro, através de predições que, a princípio, ninguém aceita, como as da trágica Cassandra, de Ésquilo, e, depois, graças a um vodu coletivo. Sob o comando da inacreditável profetisa, numa sequência cômica admirável aplaudida em cena aberta, a família marchará para um reencontro. Mas para se chegar a tanto, há mais.
Há ainda a tentativa de realização de algo do talento dramático de Vanya, autor de um texto evocativo da peça de Konstantin (aquele drama simbolista inserido por Tchekhov no entrecho de A Gaivota). É a oportunidade para a jovem Juliana Boller, encarregada de defender a ingênua Nina, demonstrar a grandeza de seu talento. A rigor, a personagem funciona como um artifício bem urdido para levar os irmãos e o jovem galã a reviravoltas, proeza executada com mais do que vigor juvenil. E permite a Vanya um discurso de redenção apaixonante, estratégico para encerrar a ação a favor da crença no poder libertador do indivíduo, atestado vibrante da grandeza de Elias Andreato. A longa fala, um bifão, no jargão do teatro, leva a plateia a um delírio mais consistente do que as visões das antigas sacerdotisas.
Sim, há o jovem galã, Spike, a cargo de Bruno Narchi, também um papel estratégico para o andamento da ação e para o desfecho. A destreza física do ator e a sua exposição cristalina de uma informalidade algo obtusa materializam o perfeito gabola, um casinho eventual de Masha, e impõem a figura de um artista corajoso para se expor como alpinista sexual a um só tempo oportunista e débil. Por seu intermédio, revela-se a solidão desesperada de Masha, depois do quinto casamento, a homossexualidade castrada de Vanya, a carência enraivecida de Sonia, a delicadeza inocente de Nina.
Parece muito? Passe os olhos sobre a extensão de competências incluídas na ficha técnica do programa de sala para avaliar a dimensão teatral notável do trabalho. Assustou-se? Neste caso, a sua situação é grave: você está em desconexão com os deuses do teatro, impregnado por frivolidades e ocupações triviais, perdeu o link com a alma da arte.
Na verdade, sim, a peça é longa. Mas é uma senhora peça de teatro, uma celebração irresistível à essência da arte, uma ode encantada à liberdade humana e você saberá a melhor profecia a respeito do estado de sua alma teatral ao se indagar atônito sobre o tempo transcorrido, invisível, ao final da ação. E ao sentir saudades daquilo que o Teatro dos Quatro tentou ser e, afinal, não foi.
Sem dúvida Tchekhov, Gorki, Shakespeare, Ésquilo clamaram por novos tempos e novas forças humanas para sustentá-los, forças humanas talvez, em suas épocas, hesitantes, quem sabe devastadas pelo peso de atmosferas sombrias. Talvez desde o clamor juvenil de 1968, sob o sol proclamado pelos Beatles, um novo tempo se prepare, derretendo o gelo da escravidão da espécie.
De toda forma, enquanto esperamos um indivíduo senhor de si, liberto de mesquinharias temporais, época em que, quem sabe, descansaremos, podemos rir da aventura teatral que foi construída a favor da liberdade humana, com teatro e teatro e teatro e teatro. Vá, entregue-se ao teatro. E prepare-se para cantar no final, feliz da vida, baixinho, Here comes the sun…
Direção: Jorge Takla
Texto: Christopher Durang
Tradução: Bianca Tadini e Luciano Andrey
Elenco: Marilia Gabriela, Elias Andreato, Patrícia Gasppar, Bruno Narchi, Teca Pereira e Juliana Boller
Cenário: Attilio Baschera e Gregorio Kramer
Figurinos: Theodoro Cochrane
Iluminação: Ney Bonfante
Sonoplastia: Fernando Fortes
Maquiagem: Duda Molinos
Perucas: Feliciano San Roman
Realização: Takla Produções
Produtor Associado: Luciano Borges
Temporada: de 30 de Julho a 27 de setembro
Local: Teatro dos Quatro – Shopping da Gávea – Rua Marquês de São Vicente, 52 , Gávea
Horários: Quinta a sábado às 21h; domingo às 20h
Ingressos: Quintas e sextas R$ 70,00; sábados domingos R$ 80,00
Duração:110 minutos
Classificação indicativa: 12 anos