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FLIP/2017: O luto e as pedras do caminho da cultura

 
Paraty se torna uma linda festa: é tempo de FLIP. FLIP quer dizer um recanto raro de encontro brasileiro com a vida intelectual mais legítima e plena, atual, vibrante. Durante uns poucos dias, com alguns estrangeiros de recheio, uma massa ávida por ideias, saberes, letras e alento intelectual vaga pelas ruas de pedras tortas e pelos arredores da vila histórica em busca de um modo de viver outro, civilizado. Acontece de tudo na cidade, de apresentações intelectuais sofisticadas a debates antenados com as exigências imediatas da vida, passando por videoarte e pelos mais curiosos eventos de rua. É festa mesmo, vale tudo a favor da cultura.

 

Não deixa de ter um toque irresistível de ironia, um pouco na velha tradição ibérica, velha de Cervantes ou, de logo agora, de Eça, ver um pequeno povoado histórico, cercado de mitos piratas e lendas transgressoras, encravado no litoral serrano entre as pretensiosas capitais da cultura nacional, Rio e São Paulo, se tornar o coração letrado do Brasil. Sim, a graciosa Paraty, refúgio dos piratas, flibusteiros, contrabandistas de ouro e de escravos, sacode a poeira mental movediça (de uma areia movediça intelectual mortal) que sufoca o país e instaura um lugar nacional outro, paraíso de letras. Uma fenda no tempo dos tempos sorri para as almas inquietas.

 

Eu também fui para a velha cidade, não resisti. No entanto, não andei pelas vielas de Paraty em busca de mesas e debates oficiais – neste ano de 2017, a feira foi dedicada a Lima Barreto. Paixão da minha adolescência, meu velho mestre íntimo de inquietude e estranheza, suburbano como eu de vida e de alma, ele me guiou em andanças anônimas pelas ruas de geometria imprevisível, caminhos bons para desestabilizar a certeza dos pés, em busca de surpresas mentais.

 

Ouvi pessoas, contemplei encontros, avaliei perdas, dimensionei o fluxo de gentes interessadas em comprar e vender os sublimes artigos que tecem a sensibilidade humana. Existe um mercado cultural brasileiro?, perguntei diversas vezes, tentando vislumbrar a prática de um mercado de ideias e de bens culturais nas rotinas expostas nestes dias de quermesse.

 

A primeira surpresa foi constatar a pobreza material de tudo. É chocante concluir que esta é a décima quinta edição da feira, sempre um evento de grande sucesso, e apesar de tudo isso a FLIP não tem sequer um barraco para chamar de seu – a singela sede da Casa Azul, fora do Centro Histórico, não funciona como centro de atividades e de referência durante a FLIP. E, passado o turbilhão de almas, a sua atividade é ainda modesta para o vendaval anual que organiza. Não seria absurdo desejar que um evento de tal plenitude tivesse gerado um centro cultural forte bem no meio da cidade histórica, ali por perto da Casa de Cultura de Paraty.

 

Os efeitos da FLIP para a cidade de Paraty também não parecem indicar o adensamento de um mercado cultural expressivo. Há uma ativação da vida hoteleira, do comércio oficial e da economia informal. Porém, a rigor, tudo parece ser sazonal e efêmero, sem resposta estruturante para o segmento econômico da cultura, a um ponto que, nesta edição, foi ocupada a Igreja da Matriz (relíquia histórica e simbólica) para sede dos grandes encontros e, de novo, armada uma grande tenda na Praça, para receber o telão de divulgação pública dos eventos centrais.

 

Se o inusitado do lugar escolhido para os grandes debates causou frisson e repercutiu, o fato tem o seu lado sombrio – sugere um pouco como se a FLIP fosse fraca em si, precisasse de escândalo para se justificar e atrair as atenções. Na mesma praça, praticamente, sobrevive fechado, cercado de tapumes, o velho cinema de Paraty, que poderia ser um dos pontos centrais da festa. Poderia ser um belo teatro.

 

Não dá para evitar a ponta de tristeza. Paraty não conta com um teatro sequer, descontada a pequena sede do Grupo Contadores de Histórias, o Teatro Espaço. A limitação de ordem objetiva tem efeitos importantes: para a festa literária, fora os espaços um tanto improvisados arquitetados para os debates, resta a rua e outros abrigos de ocasião. Portanto, nenhuma chance de trabalhos mais densos e de forte estruturação profissional serem apresentados na festa, a não ser sob redução objetiva de sua qualidade artística e estética.

 

Paraty, há tanto tempo empenhada na oferta de um acontecimento tão generoso, merece mais do que a oportunidade episódica de celebrar nomes e trajetórias e de vender livros. Há uma linha de produção de arte hoje, no país, reunindo literatura e formas belas de representação que deveria estar na agenda da festa, caso a cidade contasse com um teatro para abrigá-la.

 

Além das performances de rua, vivazes, banais, fortes, impactantes, canhestras, oportunas, loucas, arbitrárias, irresistíveis, a FLIP ofereceu uma abertura dramatizada sobre a vida de Lima Barreto, com o sempre excelente Lázaro Ramos e a notável historiadora Lilian Moritz Schwartz. E apenas dois delicados espetáculos teatrais, apresentados em espaços modestos, despojados.

 

Um foi o forte solo de Hilton Cobra, Traga-me a Cabeça de Lima Barreto, texto de Luiz Marfuz, apresentado no SESC Caborê. O outro, uma ousadia poética, a montagem de Diários Marginais, Um Encontro com Lima Barreto e João do Rio, com texto, direção e atuação de Gilson Gomes e Wagner Brandi, integrantes da equipe de pesquisa artística Oráculo Cia de Teatro. Neste caso, um modestíssimo auditório escolar abrigou o trabalho.

 

Não há dúvida a respeito da importância destas apresentações e do caráter guerreiro destes artistas empreendedores, herdeiros legítimos da garra de Lima Barreto. Mas a situação em si é eloquente, denuncia a pobreza do pano de fundo da festa. Há pelo menos um grande espetáculo recente de notável significado histórico para a cena brasileira que também deveria estar em Paraty nestes dias – a encenação de Lima Barreto, ao Terceiro Dia, texto lindo de Luis Alberto de Abreu, direção exemplar de Luis Antonio Pilar, um raro nome de diretor negro na cena brasileira. Mas a peça, para flanar em Paraty, exigiria um palco bastante equipado, um teatro de verdade.

 

Há um outro dado impressionante a respeito desta teia de fragilidade institucional que envolve a vila praieira. Com certeza a projeção atual de Paraty no mundo da cultura é resultado do carinho devotado à cidade por dois ícones da cena nacional, o ator Paulo Autran (1922-2007) e, em especial, a atriz Maria Della Costa (1926-2015).

 

Sim, Maria Della Costa em especial, pois ela escolheu a cidade para viver e, a partir da Pousada Coxixo, que estruturou com o marido, Sandro Polonio (1921-1995), foi uma incansável defensora do seu refúgio de ares coloniais. Foi uma divulgadora apaixonada dos encantos históricos e naturais de Paraty.

 

Hoje, em Paraty, não há qualquer registro público visível da notável batalha dos dois atores. Na Pousada Pardieiro, em exibição privada, existem fotos do grande ator, para registrar junto aos hóspedes a importância do artista e a própria história da casa.

 

Maria Della Costa infelizmente não teve a mesma sorte: nada na atual Pousada Literária, de extremo luxo e bom gosto, relembra a grande atriz – a não ser a beleza e a elegância luminosa do espaço. Não há sequer uma foto ou uma placa para dizer que a concepção primeira do lugar e a sua preservação até tempos recentes coube a ela, à sua vontade obstinada. Os hóspedes ficam sem saber a história forte do teto que os abriga.

 

Na realidade cultural da Paraty de hoje, não existe uma rua ou logradouro público batizado em homenagem a Maria Della Costa. Não existe uma exposição de fotos que faça justiça ao seu trabalho intenso nos palcos. Na verdade, o Cais da cidade deveria se chamar Cais Maria Della Costa, simbolizaria bem o gesto da artista de apresentar a cidade para o mundo exterior.

 

Diante da ausência, a sensação incômoda é a constatação de um apagamento progressivo, o apagamento típico da fragilidade da cultura brasileira. Parece normal, neste cenário, a inexistência de um teatro em Paraty.

 

E o pior – fica a impressão de que, quando os incansáveis motores atuais da FLIP saírem de cena, por um motivo qualquer, a festa e a lembrança da festa, a sua história, o heroísmo dos seus promotores, irão todos desaparecer também, sem deixar rastros, como devem sumir no horizonte piratas clandestinos, fugidios, os que não dispõem nem mesmo de uma carta de pirataria d`El Rey. O gesto pirata é sempre puro presente, aceno para o futuro para novos saques, puro imediatismo, aversão ao passado.

 

Assim, a relação entre a festa e a cena traz a sensação de que vivemos, no campo da cultura, fazendo caminhadas de malabaristas semelhantes àquelas impostas pelas pedras do Centro Histórico de Paraty: rebolamos muito e saímos do lugar muito lentamente, sempre com o risco de torcer o pé e termos um belo prejuízo, físico até. Pouco caminhamos.

 

As ações culturais acontecem, encantam o povo, trazem uma massa faminta típica de festa de arraial, mudam cabeças, espalham ideias e, depois, fica o terreiro vazio, a praça despojada, a igreja com as missas de rotina. Quem quiser ocupar a cena, terá que começar do zero. O capital mobilizado é o que circula na sociedade, ele vem, entra veloz na vida cultural, atraído por ativos CNPJs. E se esvai para CPFs vários, sem que o mercado, este ser por aqui tão fluído, consiga mostrar a sua cara. O capital cultural é turista, vive em trânsito e leva tudo na sua mala.

 

A vida cultural persiste anêmica, entregue ao acaso e à luta ferrenha de loucos visionários, como se a cultura não pudesse ser a lei da vida em sociedade por aqui. Portanto, afinal, tudo indica que há uma certa lógica no fato de termos a nossa maior festa literária numa terra de velhos piratas. Por tortuosos caminhos herdados das trevas coloniais, parece que o acesso à cultura, em nosso país, precisa ser uma nova forma, bizarra, de pirataria. Os Paulos passam, as Marias passam, os artistas passam, fica sozinho o chão de terra batida do terreiro, cercado por ruas de pedra bruta, um chão tosco para ser lavado na próxima maré.

Ficha Técnica
 
Evento: 15ª Flip
Homenageado: Lima Barreto
Data: 26 a 30 de julho de 2017
Local: Paraty, RJ.