Amor ao Rio
Não, a festa não acabou: o Rio é mar, eterno se fazer amar, dourado quase todo dia. Abençoado pelo Redentor, que lindo. E se você não consegue ver a festa na rua, em mãos se descobrindo em tanto azul, acorde para sorrir, anote o endereço. Ela está lá, flamejante, no lindo Teatro Riachuelo, inaugurado na Cinelândia, uma irresistível declaração de amor à cidade: corra para conhecer. Programa im-per-dí-vel!
No palco, alegre como a luz, um musical de alto padrão, um eloquente ato da história da vida do Rio de Janeiro – Garota de Ipanema, o amor é bossa, libreto escrito sob a liderança da novelista Thelma Guedes, estreante em teatro. Trata-se de um belo pretexto para encantar o público com um roteiro de canções de louvor à alma da cidade.
Sim, esta é a face pulsante, de grande impacto, do espetáculo. Roberto Menescal, ele próprio nome decisivo da magia musical carioca, assinou a supervisão do roteiro. O resultado é previsível: emocionante. Simples assim. Muito do melhor da Bossa Nova se apresenta em cena.Um torvelinho de emoções arrebatadoras, memórias urbanas queridas, abençoa a nova casa, sagrando-a como oportuno templo de carioquice. Estava fazendo falta, chegou em boa hora. A direção musical e os arranjos de Delia Fischer, requintados, traduzidos na regência de Claudia Elizeu, garantem a qualidade da partitura.
Compreenda-se a importância do momento: após os anos sessenta, no século passado, a época áurea da Bossa Nova, o Rio de Janeiro só tem vivido o lado pedreira da vida urbana, como se não pudesse mais ser feliz à beira-mar, na praia, ao sol. Um ritual soturno de ofuscamento e dor envolveu a velha capital, como se ela fosse incapaz de existir distante de qualquer tristeza. Toda a tristeza se tornou nossa.
Curiosamente, ao longo deste processo, o teatro musical entrou em eclipse. O ciclo de recuperação do teatro musical, linha de arte muito identificada com a alma da cidade desde o século XIX, foi iniciado nos anos 1980, se tornou uma fortaleza e talvez (tomara!) sinalize o tímido fim da fase sombria do Rio, a decadência que se almeja superar. Assim, com a saudação à Bossa Nova, a nova montagem chega num momento em que talvez se possa falar numa guinada histórica, de forte significado para a cidade.
Mas nem tudo é tão simples como um banquinho e um violão. Se o roteiro das canções é a grande chave que assegura este feito, o seu alcance nasce, na verdade, do tratamento dado ao tesouro sonoro pelo experiente Gustavo Gasparani, na direção, autor de obra sublime. A arquitetura da cena é um achado. Diante de um elenco notável, numeroso, integrado por 22 atores sensacionais, o diretor desenhou um espetáculo inteligente, espécie de retrato humano da grande metrópole musical, em que personalidades raras circulam em meio a um burburinho existencial constante.
Nos idos de 1950 e 1960, a cidadania brasileira desabrochou e a opinião pública começou a ter voz forte no país; para alguns estudiosos, a Bossa Nova foi justamente a expressão de uma classe média emergente, a voz de Copacabana e, logo, de Ipanema. Na cena de Gasparani, o elenco enorme garantiu os meios para materializar a multidão expressiva, liderada por seus poetas, logo garroteada pelo golpe militar de 1964.
Curioso observar a profunda harmonia entre o cenário despojado, limpo e sugestivo, de Hélio Eichbauer, a luz requintada, contundente, de Maneco Quinderé, e a concepção do diretor. A cenografia propõe a cena como espaço livre, seco, entregue à ação humana. Raios de luz e fluxos de cores sublinham protagonismos, ações, emoções. Delicados origamis em suspenso no ar sugerem o mar, com suas aves, a lua, a noção de paraíso tropical; portas praticáveis, móveis, permitem criar interiores, cadeiras em profusão viabilizam os bares, os lares e até o autoritarismo, cortinas de tiras insinuam o fechamento e as frestas da opressão.
Estas intervenções se unem, se materializam como obra coletiva, se transmudam num amálgama criativo, num cadinho capaz de combinar profundamente os atos do diretor, do cenógrafo e do iluminador. Há um tom minimalista precioso, sintonia fina com a Bossa Nova. O desejo diabólico do diretor é o de sugerir a permanente ação dos indivíduos, dos atores, movimentando tudo, por vezes compondo a cenografia com os seus corpos e movimentos, num intenso teatro físico – algo espetacular num sentido amplo da palavra.
Nesta cena fluída, a coreografia de Kátia Barros é peça importante. Ela se beneficia do excelente padrão artístico do elenco: a turma move a cena sob total intensidade física, deliciosa de se ver. Os atores dançam até mesmo sentados. Sim, talvez falte uma certa cor de época nos gestos, a indicação de como a multidão começou a dançar sozinha sem par, depois da explosão do rock, como foi conciliado o rosto colado com o iê-iê-iê. Mas isto é apenas um detalhe: afinal, a cena não deseja reconstituir o passado, mas, antes, homenagear a garra do Rio, um colorido em vigor também nos figurinos de Marília Carneiro e Reinaldo Elias, capazes de citar o tempo que passou sem se fixar nas tramas nítidas de outrora.
A trama do libreto, aliás, também segue um tanto por aí, mas com maior liberalidade. Deixa evidente o ponto mais frágil da montagem: a trama cita a época, usa a fortuna do passado, porém envereda por um caminho de liberdade de criação forte demais, bastante barroco, em conflito frontal com as linhas puras da Bossa Nova. Assim, a Garota de Ipanema é titular, mas ela não está em cena, é mera citação ocasional, a protagonista é a sua rival anônima, a garota do subúrbio – do Méier, mais exatamente.
A opção é divertida, mas não é sequer formulada com humor, é proposta a sério. E é muito discutível, pois, apesar de todo o encanto do Rio, a cidade até hoje é uma cidade classista, preconceituosa, em que a Zona Sul figura como o lugar da cidadania e do poder, o resto é território de exclusão. O Rio dourado Zona Sul cultiva um desprezo solene pelo subúrbio. E a tal garota do Méier – como provam os registros históricos da MPB – jamais poderia alcançar o protagonismo suposto, no seio da turma da areia banhada de sol.
Existem mais alguns problemas no libreto. O mais grave é o tratamento geral da ação, pouco teatral e muito novelesco, televisivo. Ele oferece peripécias implausíveis para o tempo do palco e para o tema. Predomina no texto um ar de melodrama mexicano incômodo. A Bossa Nova trouxe um padrão novo para a MPB, uma batida nova e um humor, um astral, corrosivos, frente ao sentimentalismo derramado do lamuriento samba-canção e à impostação herdeira do bel-canto. Da mesma forma, o recurso aos procedimentos caros à teledramaturgia poderia ocorrer, mas deveria ter se inclinado mais para Beto Rockfeller, menos para A Moça que Veio de Longe.
Em consequência, há uma contradição flagrante, insolúvel, entre a leveza da Bossa Nova e o tom sentimentalóide da ação. Este sentimentalismo imediato determinou linhas estreitas para o perfil dos protagonistas, figuras apenas esboçadas, impregnadas por coloridos simplistas, tons maniqueístas difíceis de conciliar com o tom bossanovista, moderno.
Ao lado da direção inteligente, contudo, um elenco áureo permite tudo: todos os pecados podem ser perdoados. Thiago Fragoso faz um perfeito Garoto de Copacabana – sustenta um desempenho de tirar o ar de qualquer plateia. Há emoção, sentimento, intenção e leveza no seu galã tímido, capaz de fortes cenas dramáticas, belas cenas cantadas. Ele defende Zeca, herdeiro da Zona Sul recatado e amoroso, o papel mais difícil da peça, pois é um herói sentimental fracassado, implausível mistura de amor desenfreado e incapacidade de perdão.
Na verdade, há o final feliz, em que ele reencontra a deusa da sua vida – Dindí, ou Deolinda, a Garota do Méier, entregue a Letícia Persiles. Ela também é um desafio notável, um malabarismo existencial impressionante para a atriz. Afinal, a suburbana Deolinda consegue se impor por sua voz e beleza ao pessoal do Beco das Garrafas – ao redor e acima de Zeca, estão os ídolos nascentes, a turma liderada por Vinicius de Morais, defendido pelo compenetrado Will Anderson, ao lado dos discretos Tom Jobim (Guilherme Logullo) e Roberto Menescal (Ditto Leite). Ao conciliar meiguice e resolução, Letícia Persiles aciona a melhor chave para impor a protagonista, uma jovem mulher a um só tempo capaz de seduzir o galã-zona-sul e de ser alvo fácil para o sentimento destrutivo do vilão-bárbaro-suburbano.
E que vilão. Claudio Galvan mergulha sem amarras no lado sombrio da trama, materializado por Jurandir, o marido suburbano bestial. Ele assina uma das grandes cenas da noite, ao virar um monstro humano de carcaça hedionda, uma carcaça resolvida graças aos corpos dos atores e a pernas de cadeiras ao ar.
Mas, acredite se puder, a mocinha vai ainda mais além, ela também encanta o americano Steve, um fantástico galã caricato discreto e elegante, muito bem resolvido por Claudio Lins, artifício para levar a moça ao exterior e, assim, falar do título da peça e do tema que conquistou o mundo – a Garota-de-Ipanema-canção. Trata-se de uma vingança suburbana, de certa forma, em que a Garota do Méier vira a Garota de Ipanema. Inacreditável…
E tem mais, afinal a jovem simpática também alcança sucesso junto ao time feminino. Ela conquista a amizade de Amélia, amiga e confidente de Zeca, desempenho límpido, forte, de Stephanie Serrat, jovem atriz absoluta. Diante da ditadura, Dindí acaba se sacrificando para conseguir libertar a amiga, numa das sequências mais surpreendentes da ação. O ato heroico extremado faz com que o seu amado Zeca se revolte – logo ele, que se apaixonou por uma mulher casada que já estava namorando o amigo americano! Por isto, ele rompe o romance e retorna para a antiga namorada, a rica, reacionária e antipática Lígia, eficiente construção de Luciana Bollina. Mas não se preocupe: Dindí, ao final, irá conquistar a própria Lígia, assim como conquistara a amizade até de Nara Leão, um belo trabalho de composição de Nay Fernandes. O povo do Méier é imbatível!
A leitura deu a sensação de um emaranhado confuso, prolixo? Pois bem, este é o ponto nevrálgico, o problema gerado pelo intrincado caminho do novelão. A enumeração sugere um redemoinho acelerado de ações, muitas delas inverossímeis e incríveis, movimento contrário à delicadeza da Bossa Nova. Em consequência, a peça ficou pesada, longa.
Existe, porém, um mérito no esforço, importa destacar: o de estimular um debate oportuno a respeito do playwriting de musicais. O desenho do enredo traduz mais uma tentativa ousada para fortalecer o musical nacional original, mas a solução mais adequada não parece caminhar por aí. Não há necessidade de complicar tanto para justificar o uso de canções consagradas da memória histórica, músicas que não foram concebidas para o palco do teatro musical, mas que, usadas pelo teatro, precisam brotar em cena dentro de uma dinâmica dramática consistente.
De toda forma, esqueça os senões, a noite é um luxo. A oportunidade de ver atores experientes no gênero, dotados de vozes belíssimas e corpos esculpidos para a cena, não pode ser perdida. A direção de ator de Gustavo Gasparani extraiu o melhor deles e não há caricatura ou apelação nas performances. Thiago Fragoso, Letícia Persiles, Claudio Lins, Stephanie Serrat, Luciana Bollina e Claudio Galvan são líderes incontestes no palco, é um privilégio acompanhar os seus trabalhos.
E mais. O que se pode dizer de Eduarda Fadini, Késia Estácio, Tatih Köhler, Ana Varella, Jhafiny Lima, Nay Fernandes, Natacha Travassos, Renata Figueiredo, Guilherme Logullo, Ivan Vellame, Will Anderson, Chris Penna, Ditto Leite, Raphael Najan, Wallace Ramires, Gabriel Demartine? De onde vem esta força expressiva arrebatadora, que incendeia o teatro, disposta a manter acesa a velha chama do teatro musical, a arte mais querida da cidade?
Pois é – não deixe de conferir o feito, em particular se você ama o Rio. A alma musical da cidade está inteira por lá. Nada consegue ofuscar o encanto da noite, o fluxo musical desencadeia um turbilhão de emoções arrasador. E para quem foi jovem nos anos 1960, o caso fica bem mais sério, dá para levar o coração de volta para o velho Rio. E cantarolar baixinho “ao encontrar você eu conheci, o que é felicidade meu amor.” Brota da cena uma verdade cristalina como a água do Arpoador em certos momentos encantadores do verão: há que amar a cidade maravilhosa, o amor é a bossa do Rio.
Texto: Thelma Guedes (colaboração de: Alessandro Marson, Maria Helena Alvim e Newton Canito)
Direção: Gustavo Gasparani
Direção musical: Delia Fischer
Supervisão musical: Roberto Menescal
Coreografia: Kátia Barros
Cenografia: Helio Eichbauer
Figurino: Marília Carneiro e Reinaldo Elias
Visagista: Juliana Mendes
Design de som: Carlos Esteves
Desenho de luz: Maneco Quinderé
Produção de elenco: Marcela Altberg
Preparação vocal: Mauricio Detoni
Assistente de Direção: Pedro Rothe
Assistente de Coreografia: Roberta Serrado
Assistente de Direção musical: Claudia Elizeu
Asistente de arranjos: Matias Correa
Asistente de figurino: Luiza Moura
Figurino ‘Dindí’: Marília Carneiro e Farm
Cenógrafa Assistente: Marieta Spada
Pesquisador musical: Rodrigo Faour
Estagiária de Direção:Giulia Grandis
Elenco: Letícia Persiles, Thiago Fragoso, Claudio Lins, Stephanie Serrat, Luciana Bollina, Claudio Galvan, Will Anderson, Guilherme Logullo, Eduarda Fadini, Tatih Köhler, Késia Estácio, Ivan Vellame, Chris Penna, Ditto Leite, Ana Varella, Natacha Travassos, Jhafiny Lima, Nay Fernandes, Wallace Ramires, Raphael Najan, Renata Nunes e Gabriel Demartine
Realização: Aventura Entretenimento
Garota de Ipanema, o amor é bossa
Teatro Riachuelo Rio – Rua do Passeio, 38/40 – Cinelândia
Estreia: 26 de agosto
Dias e horários: 5ª, 6ª e Sáb – 20h / Dom – 18h
Vendas:
– No site www.teatroriachuelorio.com.br
– Loja Riachuelo Ipanema: Rua Visconde de Pirajá, 321/ Tel: (21) 3441-6732
– Lojas Farm *em breve
Farm Centro II – Rua da Quintanda, 86/loja 102/ Tel: (21) 99852-1668
Farm Ipanema – Rua Visconde de Pirajá, 365/ Tel: (21) 99834-4486
Farm RDB – Av. das Américas, 7.777, lj. 124/125, 1° piso/ Tel: (21) 99631-0190
– Bilheteria Teatro Riachuelo Rio – a partir do dia 25/08
Funcionamento da bilheteria: 3ª e 4ª das 12h às 20h, de 5ª a domingo das 12h até 1 hora após o início do espetáculo.
Preços:
5ªs e 6ªs: R$110 – Plateia VIP; R$80 – Plateia e Balcão Nobre; R$50 – Balcão
Sábados e domingos: R$140 – Plateia VIP; R$100 – Plateia e Balcão Nobre; R$50 – Balcão
Capacidade: 1.000 pessoas
Duração: 2 horas (com intervalo de 15 minutos)
Classificação etária: Livre
Até 27 de novembro
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