Um vulcão chamado teatro
Imagine um vulcão humano em cena em plena erupção, uma torrente de sentimentos em explosão vertiginosa. Você está diante da fenomenal atriz Bárbara Paz. Assim como não se deve jamais ignorar a chance de ver a eclosão de um vulcão, assim não é possível sonhar em perder este trabalho da atriz: é um fenômeno surpreendente da natureza, algo como se o ser humano fosse apenas sentimento, carne, pulsação, matéria insana capaz de governar a alma. Corra para o CCBB, a temporada está no fim: Gata em Telhado de Zinco Quente é o acontecimento teatral do momento na cidade.
Na verdade, é tudo bem mais complexo. Ainda que o desempenho da atriz justifique todo e qualquer esforço para ver a peça, o problema central é que este está longe de ser o único motivo para impor a ida ao teatro. A força avassaladora do espetáculo não é resultado apenas do histórico desempenho da notável jovem atriz. Um vulcão não se faz sozinho, o caso aqui é de tectonismo teatral total.
O que torna tudo tão incandescente no palco é a existência em cena de um elenco no sentido pleno da palavra, um coletivo de trabalho de arte, um corpo em movimento em que todas as partes interagem em perfeita sintonia, harmônicos. E, claro, este elenco existe porque foi regido por um encenador de absoluta grandeza, capaz de formular um conceito de direção a partir do total mergulho no texto e de exercer a sublime (e difícil) arte da direção de atores. A magia da cena é assinada pelo Grupo Tapa, sob a direção de Eduardo Tolentino, magna puro.
Portanto, o vulcão-atriz acontece como epicentro de uma noite de teatro em estado de excelência, alquimia transcendental requintada, um engenho de arte raro de se ver por aqui. Se você é apaixonado pelo palco e deseja ter certeza a respeito da importância do trabalho de grupo para a densidade da cena, vá conferir.
A matéria-prima processada pela equipe é ouro de alto quilate: o texto de Tennessee Williams (1911-1983), de 1955, tem história no tablado e na tela. Registra a maturidade do autor, o momento em que a sua arte consegue tocar temas estruturais, abissais, da existência humana, a partir de uma combinação sofisticada em que a concepção realista se harmoniza com uma elevada criação poética.
Ao lado da exposição da saga do individualismo triunfante, um dos valores supremos do ocidente e da nação americana, despontam os grilhões, as algemas e as formas de liquidação da liberdade individual, formas hábeis, ainda que sutis, para transformar este mesmo individualismo em escravidão, derrota. A engrenagem do jogo social, governada por tramas subterrâneas de riqueza e poder, determina a falsidade das relações, a liquidação dos desejos verdadeiros, a submissão à hipocrisia e ao desespero.
A trama mostra um quadro familiar rascante, a comemoração do aniversário do self-made-man Paizão, à beira do fim sem o saber, vítima de um câncer fulminante. Ao seu redor, o filho amado, Brick, devastado pela morte de seu amigo mais querido, talvez uma trama homoafetiva proibida, sofre impassível o assédio da mulher (Maggie), pobre alpinista social interessada em assegurar um quinhão superlativo do direito de herança, frente ao irmão enjeitado quadradinho (Gooper) e à sua mulher doméstica (Mae), dupla desprezada até mesmo pela matriarca (Mãezona), velha parceira destratada pelo marido.
O turbilhão incandescente flui célere como a lava vulcânica, graças ao cenário despojado, de Ana Mara Abreu e Alexandre Toro, à luz cirúrgica, de Nelson Ferreira, ao figurino preciso, de Glória Kalil. Para sedimentar a cena no tom do autor, entre o peso do real e o voo poético, foram usados panos de saco de algodão, o mesmo algodão que construiu a fortuna capaz de obcecar a todos na cena. Os panos de algodão compõem lugares reais de ação, objetivos, mas estes lugares são esboçados apenas, para a ação física, não definem época ou lugar concretos – apontam, portanto, para um outro lugar, o lugar da abstração da ação.
A mesma delicadeza estrutura os figurinos. Com predomínio de cores alvas, pastéis ou beges, são evocações de tons do algodão, diferentes tons de nude, discreta insinuação de carne como objetificação da pessoa e materialização do desejo. A supervisão musical e o Sound Design de Marcelo Pellegrini seguem a mesma elegância expressiva, inclusive na sugestão do som de trens e de fogos.
Sob a encenação, há uma pulsação intensa permanente, uma atmosfera inquieta, gerada por uma compreensão requintada do texto pelo diretor. Em contraste com a vibrante exposição de Bárbara Paz (Maggie), carne viva catalisadora, emociona a presença fria, corroída e magnética, subterrânea mesmo, de Augusto Zacchi.
O seu Brick faz história graças ao tom surdo, ao uso sutil das emoções, traduzidas num corpo expressivo notável, em estado de latência e de exposição, capaz de impregnar os menores gestos com as forças em jogo na cena. A tradução corpórea da escalada do álcool ao longo da ação é um dos pontos altos do seu desempenho. O confronto do casal produz algumas cenas memoráveis, em que a lava varre a terra, ainda que não consiga transformá-la.
A força destas escolhas ganha impacto diante da histeria velada, conspiradora e maligna, emprestada por Fernanda Viacava à figura da parideira Mae. Ao seu lado, Noemi Marinho comove graças ao desenho hierático da Mãezona, a um só tempo manipuladora e dissimulada, mas intensa, opressiva. André Garolli, em atuação refinada, concilia um perfil hiperativo com uma presença sempre calculista no interesseiro Gooper.
E a cena ferve como uma cratera selvagem com as intervenções explosivas, rudes, contundentes do Paizão de Zécarlos Machado, um desempenho primoroso, elegante tradução de uma trajetória brutal, do poder, vindo do nada, para a ruína. Vale ressaltar que o elenco, atores na plenitude de sua arte, consegue envolver todo o jogo cênico em fina atmosfera de humor, como o vapor que emana do rio de lava para avisar da temperatura elevada.
Não se pode nadar em lava incandescente, é verdade. Mas a lava teatral pura é um bálsamo para as nossas almas. Constate: vá ver a peça. Você vai sair do teatro singrando um fluxo de pensamento precioso para a batida da vida hoje. Qual o limite imposto por nosso mundinho para o autêntico florescimento do ser? Quais as explosões humanas legítimas, verdadeiras, necessárias para honrar os valores maiores, a liberdade de ser e de viver? Qual a importância de contarmos, diante de nós, no teatro, com a oportunidade de contemplarmos autênticos vulcões humanos – será para, enfim, lutarmos em prol de telhados menos quentes, melhores para o mundo?
Patrocínio: Banco do Brasil
Realização: Centro Cultural Banco do Brasil
Texto: Tennessee Williams
Tradução: Augusto Cesar
Direção: Eduardo Tolentino de Araujo
Elenco/Personagem:
Bárbara Paz / Maggie
Augusto Zacchi / Brick
Fernanda Viacava / Mae
Noemi Marinho / Mãezona
André Garolli / Gooper
Zécarlos Machado / Paizão
Figurino: Gloria Kalil
Cenário: Ana Mara Abreu e Alexandre Toro
Luz: Nelson Ferreira
Cenotécnicos:Jorge Ferreira e Denis Nascimento
Supervisão Musical e Sound Design:Marcelo Pellegrini
Produção musical:: Surdina
Hair Stylist: Ricardo Rodrigues
Fotos:: Ronaldo Gutierrez
Arte: Rafael Branco
Produção executiva: aloma Galasso
Produção geral: Cesar Baccan / Baccan Produções
Idealização: Grupo TAPA
Assessoria de imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
Gata em Telhado de Zinco Quente
ESTREIA PARA CONVIDADOS: dia 29 de junho (4ªf), às 20h
ESTREIA PARA PÚBLICO: dia 30 de junho (5ªf), às 19h
LOCAL: Teatro I do CCBB – Rua Primeiro de Março, 66, Centro / RJ Tel: 21 3808-2020
HORÁRIOS: de 4ªa domingo, sempre às 19h
INGRESSOS: R$20,00 e R$10,00 (meia entrada)
Funcionamento bilheteria: de 4ªf a 2ªf, das 9h às 21h / CAPACIDADE: 172 lugares / CLASSIFICAÇÃO: 14 anos / DURAÇÃO: 120 min / GÊNERO: drama / TEMPORADA: até 21 de agosto
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