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Por um teatro morto

 
Uma palavra apenas define Killer Joe, de Tracy Letts, cartaz do Teatro Poeira: horrível. Portanto, a montagem é um grande sucesso, pois tudo o que a equipe deseja é deixar a plateia em estado de choque, horrorizar o público. Isto eles conseguem – dá para sair do teatro com os cabelos em pé.

 

A encenação, do grupo paulista Cemitério de Automóveis, sob a direção do sombrio Mario Bortolotto, dramaturgo devotado ao submundo, surpreende por sua qualidade técnica notável. Sob este aspecto, a montagem é impecável. Para todo o resto, prepare-se para mergulhar no subterrâneo mais sinistro que alguém possa cogitar desenhar para sacudir a plateia.

 

Não é teatro para almas delicadas, espíritos cor-de-rosa ou adeptos da filiação intelectual ou metafísica do teatro. Na verdade, tudo é pesado demais, violento demais e o conjunto acaba, involuntariamente, muito perto do caricato. A um só tempo, a plateia se vê diante de uma trama esquemática, resolvida em cena com tintas fortes, fosforescentes, corrosivas.

 

A trama é um primor de baixaria, pastiche perfeito da vida medíocre da baixa classe média norte-americana. Sob o foco, aquele pessoal que mora em trailer, vive com a televisão ligada, fala alto, come com a mão, sorve litros de cerveja nas latas, larga o lixo ao redor, convive bem com a casa tomada pela bagunça, desrespeita qualquer valor civilizado ou afetivo.

 

Escrita em 1991 sob ácido colorido hiper-realista, a peça integra a corrente interessada em desnudar o mito da América-Miss-América, loura, linda, limpa, distinta e moral. A este pobre estereótipo oficial, se contrapôs um indigente estereótipo teatral. A concepção da peça deriva, assim, de um cálculo mecânico e reducionista, um jogo de direito e avesso, maniqueísta, logo se pode pensar, para perguntar a que serve, lá como aqui, este mergulho na miséria humana mais rasteira.

 

No entanto, há uma ressalva importante a fazer: se por lá estas são imagens do gueto, surpreendentes para a classe média, aqui parece que a situação é um pouco mais complexa. No Brasil, ninguém precisa ir ao teatro ou chafurdar na periferia para enfrentar cenas de horror humano e social. Elas estão sempre ao alcance dos olhos, antes da esquina.

 

Na cena, uma família grotesca. O pai, rústico trabalhador braçal, amante das cervejas e de um baseado, um homem experiente, mas crédulo de dar dó, vive com uma periguete muito disponível, sem notar o quanto ela oferece de sua intimidade para o mundo ao redor. Ainda que saiba da vida desregrada do filho – um jovem sem estudo, sem emprego, viciado em drogas e bebidas, avião do tráfico, aprontador – ele embarca na proposta mirabolante do jovem para ganhar dinheiro fácil, um plano canhestro para assassinar a ex-mulher e desfrutar de um seguro, cuja apólice estaria em nome de Dottie, a filha do casal.

 

O rapaz está sob ameaça de morte de perigosos traficantes e causa espanto o fato de que ele consiga chegar ao final da trama sem que os bandidos tomem qualquer decisão a respeito de suas faltas. No Brasil, os bandidos costumam ser mais rápidos.

 

A moça, pretensa herdeira do seguro, o recorrente anjo torto da trama convencional de bandidos norte-americana, é visível portadora de distúrbios psicológicos e mentais, ainda que adepta decidida dos valores tortuosos dominantes na casa. Para completar o elenco de personalidades patológicas, contrata-se um detetive profissional, funcionário público, porém especialista em assassinatos por encomenda nas horas vagas. Como não há dinheiro, o matador de aluguel aceita como parte do pagamento a jovem tonta que vaga pela casa-trailer e desempenha (mal) algo das poucas tarefas domésticas.

 

É evidente que o plano não funciona – ao menos no sentido estratégico arquitetado pelos mandantes, toscos bandidos de ocasião. E aí o policial – um tira em todo o sentido da expressão – fica furioso e se torna o justiceiro ao contrário, espécie de negativo dos velhos xerifes americanos, que botavam tudo a limpo. Neste caso, o matador põe tudo “a sujo”, digamos. E a peça acaba em pancadaria e tiroteio, para gosto supremo de quem ama o gênero.

 

Não é o meu teatro de eleição – logo se percebe. Considero bastante rudimentar o moralismo assustador deste tipo de arte, inclinada a provocar a repulsa (por falta de identidade com os “heróis” da cena, supõe-se) e o pavor (por conta da profunda violência de tudo o que é mostrado no palco, com certeza). Penso que a lição a extrair desta linha de trabalho, apresentada ao público seleto que vai ao teatro, é a banalização da violência, uma possibilidade de catarse muito discutível para a realidade que se vive hoje por aqui.

 

Mas, apesar das ressalvas, louvo o brilhantismo de toda a equipe envolvida, artistas que dignificam um texto a meu ver esquemático. De saída, a direção de Mario Bortolotto é primorosa tanto no desenho da cena como na linha das interpretações. Ainda que o ambiente do trailer, na cenografia de Mariko e Seiji Ogawa, pareça menos claustrofóbico e opressivo do que a realidade sempre sugere, a construção responde bem à ambientação da ação, aos indicativos de vida precária e desleixada, em particular.

 

Já os figurinos, de Letícia Madeira, não são fiéis à época e enveredam por certa atemporalidade; são eficientes, porém, como indicadores da pobreza e do horizonte social das personagens. A luz (Fernando Azevedo) e os efeitos especiais (Kapel Furman, Rodrigo Telles e Victor Akkas) funcionam como elementos decisivos para a configuração da atmosfera de brutalidade. A cena, sempre muito crua, depende muito do profissionalismo e da maestria da técnica.

 

E atenção: falar em cena crua significa dizer à plateia para ter cuidado com os próprios sentimentos. De acordo com o perfil de sua personalidade, a sua tecla mariadapenha, aquela que vibra indignada diante de qualquer violência contra as mulheres, pode entrar em curto. Mas releve, esqueça, não se assuste. Aline Abovsky (Sharla, a madrasta), o principal saco de pancadas da noite, é dublê de ação, especialista técnica em cenas violentas e uma atriz de intensa expressividade. Alerta e dedicada, ela atravessa sequências brutais com um desempenho técnico de extrema sofisticação, imprime à sua presença fidelidade absoluta (e muito sentida) ao que acontece.

 

O detetive matador bárbaro, Joe Cooper, o Killer Joe do título, impressiona de imediato graças às minúcias de sua partitura atoral. O detetive se impõe desde a sua primeira cena como resultado de um desempenho filigranado, um trabalho realista de tons profundos e sutis, em que pese a contradição dos termos, pois se trata de uma vida humana barata, esquemática. O ator Carcarah vence um desafio difícil, domina a cena sem caricatura ou apelação. Cada gesto, cada trejeito, cada entonação das falas, toda expressão do rosto denunciam a grandeza do intérprete.

 

Fernão Lacerda, responsável pela triste figura do pai, e Gabriel Pinheiro, encarregado de materializar o filho medíocre, correspondem bem às linhas de ação fixadas, mas por vezes trabalham tons exacerbados demais, distantes de um realismo mais plausível. Ana Hartmann resolve com elegância a filha castrada e oprimida, aponta para uma humanidade maltrapilha que luta para sobreviver num forno de cremação de almas.

 

Vale ver a montagem em especial por causa da história do grupo, uma equipe longeva, dedicada ao teatro de pesquisa desde 1982, quando foi fundada em Londrina (PR). Eles têm uma história pródiga e um programa de ação explícito, desejam apresentar cenas relevantes para o nosso tempo, para dialogar com a vida ao redor.

 

Um bom debate provocado por esta nova montagem do grupo diz respeito, exatamente, ao sentido do teatro na sociedade – além da pergunta já esboçada, sobre a pertinência e a necessidade da cena violenta na sociedade selvagem brasileira de hoje, vale a pena pensar um pouco sobre o “efeito de realidade” sobre o palco, de certa forma o contrário do “efeito de distanciamento” brechtiano.

 

Até que ponto uma cena hiper-realista tão crua como esta funciona apenas como um simulacro mesquinho do real, de alcance limitado? Seria uma canhestra válvula de escape para uma sociedade exausta, cansada de apanhar, seria algo como uma vivência placebo inócua? A violência se tornaria, neste caso, uma forma de diversão, à maneira dos velhos filmes de pancadaria de Charles Bronson? Ou seja, em resumo: para o teatro, o risco é sério, a situação é grave. Este pode ser um exemplar de um teatro morto, posto que inclinado a conciliar as pessoas com uma vida barateada, derrotada, mera sucata humana, o resultado de um palco incapaz de sacudir as vidas a favor do novo.


Ficha Técnica
 
Texto: Tracy Letts / Tradução: Maurício Arruda Mendonça
Direção: Mário Bortolotto
Assistentes de Direção: Gabriella Spaciari e Valentine Durant
Ator / Personagem: Carcarah / Joe Cooper (Killer Joe); Fernão Lacerda/ Ansel (pai); Gabriel Pinheiro / Chris Smith (filho de Ansel); Ana Hartmann/ Dottie (filha de Ansel); Aline Abovsky / Sharla (madrasta)
Cenário: Mariko e Seiji Ogawa
Figurino: Letícia Madeira
Iluminação: Fernando Azevedo
Sonoplastia: Mário Bortolotto
Inserções Sonoras: Gabriella Spaciari e Ninguém
Operação Técnica: Gabriel Oliveira (Little Beat)
Efeitos Especiais: Kapel Furman, Rodrigo Telles e Victor Akkas
Fotos: Hudson Motta e Leekyung Kim
Programação Visual: André Kitagawa
Produção: Aline Abovsky (SP), Ana Hartmann (SP) e Ana Nero (RJ)
Produção Executiva: Carcarah
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

Serviço
Estreia: dia 07 de julho (terça), às 21h
Local: Teatro Poeira – R. São João Batista, 104 – Botafogo, RJ Tel: (21) 2537-8053
Horários: terças e quartas, 21h / Ingressos: R$50,00 e R$25,00 (meia entrada) /
Horário bilheteria: 3ª a 5ª das 16h às 21h; 6ª e sábado das 16h à meia-noite; domingo das 16h às 20h
Formas de Pagamento: dinheiro e todos os cartões de débito e crédito (não aceita cheque) Vendas: ingresso.com / Duração: 90 min / Capacidade: 90 espectadores (acesso a cadeirantes)
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Temporada: até 26 de agosto