O Jornal do amor e da dor
Um dia alguém decide o que você pode ou não pode ser. Desenha a arquitetura dos seus sentimentos, pensa a engenharia das suas crenças, sinaliza a geografia do seu coração. E pronto – você se torna prisioneiro de uma brutal escola de vida, tudo para o seu bem. Parece coisa do passado remoto. Mas não é: está bem aqui ao redor, você está ao alcance da camisa de força. E não é só: por suas escolhas de amor, você pode ser condenado à morte, trucidado. Ou pode perder alguém próximo, uma pessoa querida do seu coração.
Como estas tramas se armam para aprisionar as pessoas? São garras remotas, de poderes arcaicos, estranhos, ou partem de colos amorosos, braços fortes de apoio, familiares? As perguntas são incômodas, ácidas. E necessárias, urgentes. Elas constroem a estrutura dramática de O Jornal, de Chris Urch, cartaz precioso do Teatro Poeira, tradução esmerada de Diego Teza. Se você acha importante pensar o mundo em que vivemos, corra para ver. Por amor, apenas por amor, podemos ser varridos do mundo. Portanto, prepare-se para se emocionar profundamente com a constatação da precariedade humana nossa de todo o dia.
Amém. Para atiçar o fogo do pensamento, estimular a liberdade para pensar o tema, o texto simula uma distância dos fatos, situa a ação em Uganda. Não é uma escolha arbitrária. O ponto de partida foi a atitude fascista do jornal ugandense The Rolling Stone, que publicou em 2010 uma lista de 100 nomes de homossexuais, sugerindo aos leitores o seu enforcamento.
Portanto, a trama foi inspirada por fatos reais e, infelizmente, eles não são ocorrências remotas para nós. Ela mostra uma família dizimada por mentes retrógradas, escravas de mesquinhas visões da vida, impostas por pessoas incapazes de abrir os olhos para a grandeza do amor. São três irmãos sob luto, desorientados pela morte recente do pai e pela brusca mudança de vida resultante.
O mais velho, Joe, se prepara para ser pastor, mergulha numa outra realidade, etérea, busca a devoção à alma inflamada de retórica, flamejante desempenho de André Luiz Miranda. O casal mais novo deve estudar para superar a crise, porém nem tudo funciona em sintonia com o lado comportado do figurino cinza, preto e bege, límpida criação formal de Tereza Nabuco, capaz de vestir as pessoas com variações do mesmo.
Dembe, jovem, lindo, diferente e irreverente, se inclina para camisas de colorido forte e desenho impactante, fora do esquadro imposto pela comunidade. Ele se apaixona por Sam, deixando aflorar na cena uma teia humana sensível, comovedora. Graças à delicada atuação de Danilo Ferreira, Dembe se revela por inteiro na doce insegurança do amor e no ato humano sublime de procurar olhar a vida sem antolhos.
Wummie, a irmã cúmplice, traduz uma outra medida amorosa, a devoção fraterna. Indira Nascimento alcança a felicidade cênica mais cristalina na tradução da trajetória afetiva da irmã, um percurso veloz, do companheirismo ao medo desesperado, passando pelo reconhecimento do jogo sombrio ao redor, para chegar de volta ao mais puro amor.
Marcos Guian defende com garbo o apaixonado, o jovem médico estrangeiro nem sempre consciente do vertiginoso abismo sobre o qual acredita, a princípio, se equilibrar. Heloisa Jorge, a Mama, surpreende ao tecer a impressionante figura totêmica da mãe fálica protetora e castradora, filigrana de afeto, poder e destruição. Marcella Gobatti, encarregada do papel de Naome, responde com garra ao desafio de traduzir, na presença intensa e muda, o ato cáustico da liquidação doméstica.
Atenta aos valores tradicionais da comunidade, preocupada com o que julga ser a felicidade de todos e a religião salvadora, Mama, a vizinha matriarca, amiga gentil, dissimulada o bastante para não ser detida nos seus propósitos, não se intimida diante de nada para instaurar a ordem do passado e incitar o clamor por sangue. No seu entendimento, não há limite afetivo para impor o bem – estraçalhar pessoas queridas ou mesmo condená-las à morte são preços aceitáveis.
Há em cena uma obra teatral densa, fruto de um uso requintado da linguagem teatral, e impactante por seu desejo extremo de ser eloquente e atual. A direção de Kiko Mascarenhas, em parceria com Lázaro Ramos, optou por uma concepção não realista, despojada, mas icônica. Tudo começa a partir de uma sugestão de terreiro – um círculo de giz faz a roda da vida comunitária acontecer, o lugar de pertencimento.
Na cenografia elegante de Mauro Vicente Ferreira, uma barca praticável e alguns módulos de madeira manipulados pelos atores sugerem, em traços mínimos sutis, os ambientes da trama. A trilha sonora original, de Wladimir Pinheiro, simplesmente linda, explora a linha da ação e as curvas dos sentimentos, mas, em especial, traz uma sonoridade AfroBrasil de grande beleza. O mesmo sentido plástico AfroBrasil emana dos delicados movimentos físicos entre a dança e o jogo, segundo a direção de movimento de José Carlos Arandiba (Zebrinha).
Em uma palavra, o conjunto dos elementos cênicos funciona de tal maneira que desconcerta a fortaleza emocional do público. O resultado é uma mandala da vida humana indefesa desenhada no espaço, efeito muito favorecido pela sofisticada luz de Paulo César Medeiros, um rendilhado capaz de materializar tons humanos sutis e jogos de poder surpreendentes.
Assim, a montagem se impõe como referência cultural de primeira ordem – pois ela aciona elementos cênicos e artísticos do universo afro-brasileiro mais fundante e busca uni-los à cartilha da linguagem teatral de hoje, para revelar o embate humano mais rascante do mundo atual – a luta aguerrida a favor do respeito total ao livre exercício do amor. Portanto, este é um dos espetáculos históricos do ano, programa obrigatório para todos os que se interessam de verdade por teatro. Além do tema, de importância imediata, há uma linguagem teatral renovada, em que a pulsação negra, sempre recalcada no palco brasileiro, aflora com extrema beleza.
A lição é dilacerante. Não há como escapar à percepção da nossa profunda fragilidade diante do mundo: quando alguma ordem arbitrária decide impor leis rígidas para a vida de todos e de cada um, o que desaba é a sociedade. Se a felicidade e a beleza de amar, a suprema benção que recai sobre o ser humano livre, aparece como maldita, não são apenas os amantes os sacrificados – a sociedade como um todo gangrena, se condena à vida de trevas, vegetal, pois o amor sob todas as formas é a lei primeira da vida humana.
Negar esta verdade tão profunda leva ao conforto de recusar uma das grandes lutas do nosso tempo, desposar o passado, engrossar um fluxo devastador. Vale, portanto, aproveitar o caminho aberto – ver a peça e pensar a respeito, pois mais do que nunca importa saber o que é mesmo, de verdade, o direito de amar. Ele envolve as escolhas mais essenciais da vida, aquelas que, afinal, ninguém pode – nem deve – fazer por você.
Texto: Chris Urch
Tradução:Diego Teza
Direção: Kiko Mascarenhas
Codireção: Lázaro Ramos
Elenco: André Luiz Miranda (Joe), Danilo Ferreira (Dembe), Heloísa Jorge (Mama), Indira Nascimento (Wummie), Marcella Gobatti (Naome) e Marcos Guian (Sam)
Assistência de Direção: Ana Luiza Folly
Direção de Movimento: José Carlos Arandiba (Zebrinha)
Preparação vocal: Edi Montecchi
Realização e Produtores Associados: Lázaro Ramos e Kiko Mascarenhas
Produção: KM ProCult e BR Produtora
Direção de Produção: Viviane Procópio e Radamés Bruno
Produção Executiva e Administração: Viviane Procópio
Assistência de Administração: Jandy Vieira
Equipe de Produção: Igor Dib, Milena Garcia e Diego Teza
Iluminação: Paulo César Medeiros
Assistência de Iluminação: Júlio Medeiros
Montagem de Luz: Boy Jorge, Luíza Ventura, Fabiano Gomes, Vilmar Ollos e Rodrigo Emanuel
Operação de Luz: Walace Furtado
Trilha sonora Original: Wladimir Pinheiro
Operação de Som: Marcito Vianna
Estúdio de Gravação: “DRS” e “FD”
Cantores: Flavia Santana, Lu Vieira, Renato Ribone, Wladimir Pinheiro
Cenografia: Mauro Vicente Ferreira
Assistência de Cenografia: Rogério Chieza
Construção de Cenário: Em Família Cenografia e Eventos
Adereços: Mauro Vicente Ferreira
Figurinos:Tereza Nabuco
Assistência de Figurinos: Júlia Custódio
Costureiras: Adélia Andrade e Severina da Silva Viana (Mainha)
Calçados: Jailson Marcos
Assessoria de Imprensa: de Antonio Trigo
Comunicação:Web Urgh
Arte e Lay Out do Projeto: Léo Dória / BR Produtora
Projeto Gráfico: Novo Traço
Fotos de Estúdio: Jorge Bispo
Temporada De 03 de novembro a 25 de fevereiro, de quinta a sábado. às 21h, e domingo às 19h, exceto feriados de Natal, ano novo e carnaval.
Teatro Poeira: Rua São João Batista, 104, Botafogo, Rio de Janeiro.
Bilheteria de terça a sábado, das 15h às 21h, e domingo das 15h às 19h. Tel. 21 2537 8053. Capacidade: 160 lugares.
Duração e classificação: 90 minutos / 14 anos
Ingressos R$80 inteira e R$40 meia. À venda na bilheteria do Teatro Poeira ou por meio do site www.tudus.com.br.
Observações: Descontos de meia entrada previstos pela Lei e 20% de desconto do ingresso no valor de inteira para os clientes do Clube Eu sou + Rio
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