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Feche os olhos e imagine o Rio de Janeiro sob um bombardeio. Os tiros de canhão partem da Baía de Guanabara e têm como alvo os pontos mais movimentados e ilustres da cidade. Você ia fugir correndo? Com a roupa do corpo? E ia para onde – para a Tijuca?

Pois a confusão acima aconteceu: foi a Revolta da Armada, em 1893. A Marinha queria a renúncia do Presidente Floriano Peixoto, que, vice-presidente, assumira o cargo após a renúncia de Deodoro da Fonseca. Para tentar forçar a mudança, a Marinha, com apoio dos deodoristas, começou uma revolta. Não foram vitoriosos, mas sacudiram a vida dos cariocas de forma trepidante.

Morro do Castelo, 1890, soberano frente à Baía de Guanabara. Foto Marc Ferrez, IMS.

O feito foi imortalizado numa peça de teatro que causou muita sensação ao longo da História: a burleta Pum!, de Artur Azevedo (1855-1908) e Eduardo Garrido (1842-1912). O nome escolhido já dá uma ideia da situação paradoxal que a população viveu. Os disparos contra a cidade, apesar de buscarem atingir pontos fortificados, com frequência erravam os alvos. Assim, ao lado das mortes e dos ferimentos de civis, dados até hoje não contabilizados, dos prejuízos materiais e do medo, o humor do carioca logo tratou de qualificar os tiros como puns. A deixa capturou a pena dos dois grandes dramaturgos afiados do momento e a mistura de trama cômica e música foi encenada em 1894, no Teatro Apolo.

Apesar do título ousado, o desenho geral do texto é bastante singelo. Duas histórias de amor entrelaçadas constituem a espinha dorsal da ação, cercadas pelos obstáculos tradicionais da oposição do pai irredutível e favorecidas pela confusão urbana que a revolta provoca no Morro do Castelo, onde moram os personagens centrais. Atingido pelos balaços, o morro se torna vulnerável e todos são obrigados a fugir para uma Tijuca entre o rural e o paradisíaco. 

A produção foi assinada pela Empresa Heller e contou com atores consagrados no teatro musical, mas, ainda assim, a peça não alcançou grande sucesso. Ela contava, além da qualidade técnica da encenação, com dois conteúdos importantes para a conquista de uma forte bilheteria: a busca do escândalo, já no nome, e a presença de tipos populares. Contudo, o escândalo do nome, neste caso, parece que foi um pouco longe demais…

Uma segunda encenação foi feita ainda em 1894, também de curta duração, e a peça viajou pelo país. Uma montagem foi feita em Portugal, em 1904.  A burleta esteve comprovadamente em Belém e talvez no Recife (1896) e em Porto Alegre (1921). Mas, até o momento, só foram localizados documentos atestando a montagem de Belém. 

Um indicador forte de que a peça, provavelmente por causa do título irreverente demais, não alcançou forte consagração é o fato de não ter sido publicada. Em Lisboa foram publicadas, em 1904, as coplas – sob o título Pum! Peça de grande espectaculo. Mas o texto não mereceu a mesma sorte. E desapareceu.

Quando o serviço Nacional de Teatro, numa política exemplar de apoio ao teatro, decidiu publicar (quer dizer, tentar publicar…) as obras completas de Artur Azevedo, o original apareceu na listagem. O organizador da edição, professor Antônio Martins, mencionou a existência de um manuscrito, pertencente ao ator Ângelo Labanca (1913-1988). No entanto, o exemplar sumiu e não foi incluído na edição.

A partir daí, foram várias as histórias de aparecimento e desaparecimento do Pum!, um texto que foi se tornando famoso por ser um andarilho. Para comemorar o centenário de morte de Artur Azevedo, em 2008, comecei a buscar o original – soube que um grupo de artistas, liderado por Ronaldo Tasso, encenou uma versão infantil do texto em 1999, na Casa de Cultura Laura Alvim. Em contato com a equipe, consegui uma cópia do texto da montagem e a notícia de que consultaram um manuscrito do  original, pertencente a Fernanda Montenegro.

A atriz confirmou a versão – no entanto, feliz com a eleição de Sábato Magaldi para a Academia Brasileira de Letras em 1995, presenteara o novo acadêmico com o manuscrito raro. A cópia que possuía fora recebida como um presente do ator… Ângelo Labanca! Apesar do círculo insinuar que se fechava, o desfecho foi bem inesperado. 

Procurei Sábato Magaldi e recebi mais uma pista para explorar: encantado com o valor da obra, ele fizera uma cópia xerográfica para guardar e doara o original para a Academia Brasileira de Letras. Na ABL, finalmente, cheguei ao fim da busca. Como, naquela época, a instituição não fazia controle de entrada e saída de exemplares, pois a biblioteca era vista como patrimônio comum dos acadêmicos, ficou impossível localizar o Pum!, pois ele saiu da casa para a leitura de algum acadêmico… e se volatizou.

A única solução possível foi fazer uma cópia da cópia em poder de Sábato Magaldi e mergulhar na árdua tarefa de decifrar um manuscrito evanescente. Um grande especialista em literatura e dramaturgia brasileira, professor Diógenes Maciel, da Universidade Estadual da Paraíba, ficou fascinado com a história e assumiu o compromisso de trabalhar em parceria comigo para decifrar o texto. Fizemos a leitura e os comentários básicos para iluminar o entrecho com o objetivo de publicar a peça e diminuir a lista de textos perdidos de Artur Azevedo.

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A publicação é o início de um trabalho ao redor do original que se estenderá de maneira imprevisível. Além da necessidade de apurar a hipótese de apresentações no Recife e em Lisboa, ainda escassamente documentadas, existe a probabilidade de uma encenação em Porto Alegre em 1921. Ao mesmo tempo, o texto da coleção do ator Labanca é uma “cópia do ponto” – portanto, apresenta marcas de leitura do ponto que merecem um estudo especializado.

E tem mais: naqueles tempos, especialmente nas viagens, em geral o único exemplar integral do texto em poder das companhias era a cópia do ponto. Os atores recebiam apenas “as partes”, quer dizer, as suas falas, com as deixas dos demais atores. Sendo assim, a cópia do ponto era, necessariamente, usada para a autorização da montagem na censura e – quando era o caso – na polícia. Também era o exemplar examinado pelo teatro… Portanto, o manuscrito exige uma leitura em diferentes camadas para revelar na íntegra a sua história.

Conclusão? O Pum! perdido que finalmente pode ser lido e estudado tanto tempo depois ainda tem um enorme futuro pela frente. Ele próprio é um tiroteio cerrado de informações decisivas para um conhecimento maior do teatro carioca e – claro – do teatro brasileiro.

A polêmica que cercou a montagem do Pum! em Belém do Pará, comentada na edição, revela um ângulo não estudado ainda sobre o teatro do século XIX:  a natureza das relações entre os diferentes palcos do Brasil. A tradição historiográfica nos leva a ver um Rio teatral, digamos, imperial, pairando soberano sobre a imensidão dos brasis. Na realidade, porém, parece que existia um tiroteio intenso ao redor da cena, por toda a parte, como se a unidade do país, hoje tão louvada, ainda fosse uma disputa. E a disputa cercava o poder do Rio de Janeiro – às vezes deflagada em guerras objetivas, como foi o encontro da Revolta da Armada com a Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, às vezes celebrada em guerras de palavras, como o confronto que cercou o inocente Pum!.

De qualquer forma, a parte pior da guerra acabou: a parte do apagamento, do desconhecimento, da ignorância. O Pum! finalmente está editado, disponível em papel, e o lançamento festivo em homenagem a Artur Azevedo será amanhã. Então, celebremos finalmente a oportunidade de termos mais uma obra incluída na fortuna deste grande amante do teatro e do Rio de Janeiro. 

Serviço

PUM! 

Burleta de Artur Azevedo e Eduardo Garrido;  

Organização de Tania Brandão e Diógenes Maciel. 

Caricaturas de época da Revista Ilustrada, editadas por Diógenes Maciel.

Edição Scriptorium/Papel da Palavra, Campina Grande, 2024, 228 p. Preço de lançamento: 50,00. 

Lançamento: 

18 de fevereiro de 2025, das 19h às 22h. 

Programação – das 19h às 19h30: palestra ilustrada com Tania Brandão, sobre o processo de descoberta e edição do original, com mediação do professor Henrique Gusmão. 

– das 19h30 às 22h – noite de autógrafos do livro. 

Local: Mezanino Sesc Copacabana. 

Rua Domingos Ferreira, 160. Copacabana. 

Realização: 

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