O teatro, o sonho e a revolução

 
Talvez você tenha um sonho de teatro. E, no seu sonho, o teatro transforme os homens, faça com que eles honrem a própria carne e a própria alma, se reconheçam como gente, esta coisa que todos são. Pois acorde, pare de sonhar agora, corra para o Teatro Ginástico: a sua vez chegou.

 

O Topo da Montanha, de Katori Hall (1981/), traz este teatro, o teatro eletrizante do seu sonho, para a sua vida. Sim, é o teatro de ideias capaz de sacudir a visão de mundo de todos e de cada um, mudar o eixo da existência. Não pense duas vezes, vá ver. Este espetáculo, você não vai esquecer jamais.

 

E se você se importa de verdade com a vida humana, prepare-se para chorar. Chorar muito. Chorar o choro do bem. A cena é emoção viva, um turbilhão afetivo em homenagem à luta histórica contra a desumanidade ocidental. Você nunca viu nada igual no palco, não pode perder!

 

E não pode perder também porque no palco está um ator chamado Lázaro Ramos, um daqueles seres sublimes que um dia os céus nos enviam para resgatar a pureza da nossa alma. Vertiginoso e delicado no seu desempenho, ele comanda a noite como se presidisse uma assembleia destinada a decidir os destinos do mundo – é um gigante de emoção e pensamento, um mago da sensibilidade, uma notável máquina humana de palavras e sensações.

 

Lázaro Ramos é Martin Luther King (1929-1968), o reverendo que ensinou o mundo a honrar a fraternidade, instaurou a urgência da luta contra o preconceito racial na ordem cotidiana, clamou por justiça social diante da pobreza devastadora. Inteligência pura, ele articulou a forma mais requintada de reação social pacífica contra a discriminação de que se tem conhecimento.

 

A sua herança, é de todos nós: ele foi um nome fundamental para a estruturação do homem-cidadão do nosso tempo, um homem que lutou para que a nossa voz – a nossa pequena voz – ecoasse e fosse ouvida. A lucidez de Martin Luther King está presente nas vitórias conseguidas pelo movimento negro norte-americano. Mas foi mais longe: está em cada uma das manifestações pacíficas, inteligentes, por um mundo melhor, que presenciamos. Está em todos os instantes em que percebemos que somos um todo, somos humanidade.

 

A peça, um belo exemplo das enormes possibilidades oferecidas pela carpintaria de texto norte-americana, o velho e bom playwriting, faz um uso inventivo das ferramentas do realismo para expor a densidade do herói e arrebatar a plateia, envereda pelo simbolismo e pela magia. Mas, ao lado da elevação do espírito, no rigor da cartilha realista, também aflora o cotidiano, a existência miúda, a vida rasteira.

 

A força impetuosa do original foi reconhecida por todos os mecanismos possíveis: aclamado na sua estreia londrina, recebeu o prestigiado Prêmio Laurence Olivier de Melhor Peça Estreante, Katori Hall se tornou a primeira dramaturga negra a receber o Prêmio Laurence Olivier. Mas irritou os fãs radicais do líder, por suas ousadias iconoclastas, e atiçou a fúria das plateias racistas e conservadoras norte-americanas, ao migrar para os Estados Unidos.

 

A trama parte de uma situação dramática a um só tempo simples e impactante. Na sua última noite de vida, véspera de seu covarde assassinato, num quarto singelo de hotel, Martin Luther King prepara o seu último discurso e revela a sua grandeza intelectual e política, a sua eloquência e o seu carisma, ao lado de sua dimensão cotidiana simplória – o chulé, os pequenos vícios, a carnalidade sensual, a vaidade. Ele clama por café e cigarros.

 

Homem pensante e homem desejante, ele se projeta diante de nós, na plateia, como alguém capaz de nos tocar, por sua igualdade, e nos elevar, ao nos reconhecermos nas suas palavras, inclinadas a demonstrar que somos todos capazes da maior nobreza humana.

 

Lázaro Ramos destila inteligência teatral em toda a sua aura, nos gestos bem desenhados, na emoção cristalina, na elegância do confronto com o mundo. E o mundo é Taís Araújo, impressionante presença cênica de oposição, desafio, enfrentamento, vulgaridade, doçura e acidez, sensualidade e idealismo, esperteza popular.

 

O grande truque do texto, que parte do realismo para sacudir a convenção teatral em direção ao mágico, é justamente a irrupção em cena desta intrigante figura feminina, ficcional, inventada pela autora. Chove, faltam cigarros, a noite envolve a vida ao redor do quarto de hotel. A ansiedade, atmosfera natural para a concepção de um novo discurso inflamado, preenche a vigília. A aridez do quarto, a chuva e a escuridão são bem desenhadas na cenografia de André Cortez, na iluminação de Walmyr Ferreira e nas projeções de Rico e Renato Vilarouca.

 

Para dissolver a tensão e reverter o desenho bem comportado, surge a camareira, figura ambígua, um ser difuso, carnal e etéreo, algo entre a providência divina e a providência terrena, o plausível socorro do serviço de quarto. Mas a bela mulher, ironia ácida, é um anjo da noite: traz o anúncio da solução definitiva de todos os problemas.

 

E Taís Araújo materializa este impasse genial, formulado com extrema irreverência pela autora, com sensibilidade notável. Explora o humor e o drama presentes no texto sob forte colorido histriônico, aciona o riso e as lágrimas.Tira partido da surpreendente definição de Deus. Em certos momentos, evoca um Grande Otelo de saias.

 

Taís Araújo é chão e céu, café/cigarro e delírio, fumaça e carne, vida e morte. A sofisticação do seu desempenho eleva a atriz ao patamar das estrelas absolutas do teatro brasileiro: agora ela é diva, definitivamente. Ousada, petulante, a sua Camae faz Lázaro Ramos disparar na espiral interpretativa mais vertiginosa que já se viu no palco nacional. Sim, Martin Luther King teria tido a consciência de sua morte iminente. Sim, é para perder o fôlego.

 

A autora Katori Hall faz justiça às lutas atuais do gênero feminino ao reconhecer, graças à licença poética, o protagonismo anônimo das mulheres contemporâneas, aptas a movimentar os cordéis do mundo mesmo recolhidas aos bastidores – agir só para ver a vida mudar, melhorar, ato puro de doação.

 

A excelente química do casal de atores explora o truque, e, afinal, a generosidade da força feminina anônima amplifica a voz obrigatória de Martin Luther King, permite que ela reverbere de verdade e arrebate a todos. Quer dizer, cumpra o seu papel necessário e legítimo. E aí… a realidade da cena se transmuda, se torna magia transformadora, se torna concretamente revolução.

 

Naturalmente, a partir do manuseio pelos atores da composição realista da cena, reforçada pelos corretos figurinos de Teresa Nabuco, a representação se abre para propor a união entre a cena e a plateia. Sim, os contornos da cenografia são dissolvidos. Sim, as tênues paredes são rompidas, o quarto de hotel se abre, abriga a emoção do público, em comunhão com os atores, propondo um culto teatral peculiar.

 

Para chegar a este clímax, a camareira enfrentou o reverendo. Ardilosa, ela expôs as fraquezas humanas do religioso, contrapôs ao seu discurso, sempre pacifista e de união, as falas radicais de Malcom X, dos Panteras Negras e dos movimentos reivindicatórios mais inclinados ao sangue do que ao amor. Taís Araújo faz com que o pastor se curve, se ajoelhe diante do abismo humano assustador, perca o medo.

 

Há um desenho espetacular primoroso, o maior mérito da direção, de Lázaro Ramos, codireção de Fernando Philbert. A direção materializou o desejo ativista do texto com uma precisão arrasadora. Além do jogo cênico, o cálculo passa pelas projeções biográficas dedicadas a Martin Luther King, por imagens de manifestações de rua internacionais, imagens brasileiras, eficiente exposição da força de luta do movimento negro. A cena envolve a todos no teatro ao fazer o quarto de hotel se abrir, como se desejasse nos abrigar, depois que Lázaro Ramos chega ao esplendor humano máximo do pregador.

 

Sim, estamos dentro do mesmo sonho, um sonho de teatro. Um sonho de amor e de transformação através do sentimento, capaz de levar a espécie humana à sua natureza mais profunda, de entendimento e realização de potências.

 

Sim, o teatro transforma o mundo, as vidas, os homens, as almas – ao menos enquanto pudermos contar com o luxo de atores tão imateriais, na sua beleza, como este casal de ouro, Taís Araújo e Lázaro Ramos. Eles também tiveram um sonho, um sonho de teatro. Que o seu sonho de teatro nos abençoe, sempre, esteja para sempre entre nós. Amém.

 

Ficha Técnica
 
Texto: Katori Hall
Direção: Lázaro Ramos
Codireção: Fernando Philbert
Tradução: Silvio Albuquerque
Consultoria Dramatúrgica:Angelo Flávio
Assistência de Direção: Thiago Gomes.
Com: Lázaro Ramos e Taís Araújo
Voz Inicial da Mãe de Martin Luther King: Léa Garcia
Preparação vocal: Edi Montecchi
Cenografia: André Cortez
Assistência de Cenografia: Carmem Guerra
Consrução de Cenário:Ono Zone Estúdio/ Fernando Bretas e Waldir Rosseti
Iluminação: Walmyr Ferreira
Assistência de Iluminação: Marcos Freire
Figurinos: Teresa Nabuco
Trilha Sonora: Wladimir Pinheiro
Desenho de Som: Laércio Salles
Projeções: Rico Vilarouca e Renato Vilarouca
Fotos de Estúdio: Jorge Bispo
Fotos de Cena: Valmyr Ferreira e Juliana Hilal
Projeto Gráfico: Dorotéia Design, Adriana Campos e Tamy Ponczyk
Revisão: Regina Stocklen
Serviços de Camareira: Solange Carneiro
Contraregragem: Fabiano Motomoto
Operação de luz: Kadu Moratori
Operação de som e projeção: Fernando Castro
Serviços técnicos de projeção: Bruno Mattos
Supervisão técnica de projeção: Alexandre Bastos – Novamídia
Assistência técnica de produção: Igor Dib
Assistência de administração: Jandy Vieira
Administração de Lei Rouanet: Thiago Oliveira
Produção Executiva e administração: Viviane Procópio
Administração Geral: André Mello
Direção de Produção: Radamés Bruno
Produção: BR Produtora
Produtores Associados: André Mello, Lázaro Ramos e Taís Araújo
Transportadora Oficial: Avianca
Realização: Sesc Rio, Ministério da Cultura, Governo Federal – Brasil Ordem e Progresso
Lei Federal de Incentivo à Cultura

Serviço
O TOPO DA MONTANHA
Estreia: 20/01/2017 (sexta-feira), às 20h
Temporada: 21/1/2017 a 19/02/2017, sextas e sábados às 19h e domingos às 18h
Teatro Sesc Ginástico (513 lugares): Av. Graça Aranha, 187, Centro. Tel.: (21) 2279-4027
Ingressos: R$6 (Associados Sesc), R$ 12 (para jovens até 21 anos, estudantes e maiores de 60 anos) e R$ 25 (inteira)
Bilheteria: de terça-feira a domingo, das 13h às 20h
Aceita cartões de débito e crédito
Os ingressos serão gratuitos para o público inscrito no PCG – Programa de Comprometimento e Gratuidade
Classificação: 12 anos
Gênero: Comédia Dramática
Duração: 90 minutos
Promoções:
– AVIANCA: 30% de desconto sobre a inteira para clientes e funcionários devidamente identificados + um acompanhante. Descontos não cumulativos